“I’m
a failure, Kitty”
- Edward G. Robinson em Almas Perversas
Quando, após uma hora de projeção, Chris Cross – o protagonista
de Almas Perversas vivido por Robinson – revela à sua
paixão, com um certo sorriso acanhado, que é um fracasso,
nada faz além de explicitar aquilo que a obra-prima
de Lang demonstra desde o início e continuará a afirmar,
progressivamente, pela meia-hora restante de filme.
O olhar do diretor dirige-se àqueles que, por qualquer
espécie de razão, decidem alcançar um lugar ao sol na
sociedade de consumo, mesmo que a chuva seja um fim
inevitável. Neste sentido, Almas Perversas é não apenas
a tragédia de Chris, mas também de Kitty e Johnny, os
três personagens centrais que em algum momento de suas
vidas resolvem que, dentro das luzes de Nova Iorque,
alguma deveria brilhar para eles. “I’m a failure, Kitty”,
e a frase ecoa nas rugas tristes de Robinson, no rosto
esbelto de Dan Dureya, na bela face de Joan Bennett,
e o fracasso dos três transforma-se na tragédia de toda
uma sociedade. Pois, se mencionar que Scarlet Street
representa o fim do sonho americano é pouco diante do
filme, ao mesmo tempo é inevitável pensar que não são
muitos os que conseguiram, tão bem, desmascarar toda
uma cultura.
Almas Perversas é a refilmagem americana de A Cadela,
de Jean Renoir. Mais do que uma refilmagem, o filme
representa, porém, uma afirmação da visão de mundo de
cada diretor. Em A Cadela, os atos apaixonados de Michel
Simon serviam para, cada vez mais, libertá-lo do mundo
burguês ao qual estava submetido. Devido ao amor por
uma vigarista, o protagonista desliga-se da esposa,
é demitido do trabalho, assassina uma mulher, incrimina
um homem, transforma-se em um mendigo e alcança, enfim,
a liberdade. No próprio prólogo do filme, bonecos questionam
se A Cadela é uma comédia ou uma tragédia. No fim, a
resposta tende mais para a primeira opção. Pois é deste
ponto-de-partida que Lang sai para fazer seu remake.
Em algum momento o diretor alemão deve ter olhado para
o filme francês e questionado: “mas isto deveria ser
uma tragédia!”. E assim nasce Almas Perversas, uma tragédia
sim, sem sombra de dúvidas.
A mudança no local em que se passam os dois filmes serve
como parâmetro para a mudança de gênero deles. Em Paris,
desejo é poesia; em Nova Iorque, é dinheiro. Chris Cross
desliga-se da esposa, é demitido do trabalho, assassina
uma mulher, incrimina um homem, transforma-se em um
mendigo, mas, ao contrário de Simon, não alcança liberdade
alguma. Lang vai, assim, além de Renoir. Os atos do
protagonista agora não são contrários ao mundo onde
vive, mas impulsionados por ele, pois esse mundo é regido
pelo desejo, e desejo, repito, é capital. Desde o início,
esta relação fica clara. Na primeira vez em que aparecem
juntos, um longo plano mostra Chris, sentado, de costas,
enquanto seu chefe, em pé, de frente para a tela, discursa.
Pouco depois, Chris comenta que gostaria de ter alguma
amante jovem e bonita apaixonada por ele, como tem seu
chefe, e como nunca, em sua vida, teve. Quando se apaixona
por Kitty, o desejo que sente é apenas fruto daquilo
que gostaria de ser: seu chefe, portanto. Mas Lang não
deixa dúvidas; a paixão custa caro, em qualquer sentido,
e não é qualquer um que tem o direito de desejar. Se
para o patrão a questão moral não se coloca (e seria
um tanto hipócrita pensar que Chris tem mau destino
porque “peca”, quando o chefe também o faz, e mais naturalmente)
é porque ele tem dinheiro e poder para comprá-la, como
afirma a cena em que assegura a liberdade de seu funcionário
subornando os guardas com uma caixa de charutos cubanos.
Não é só Chris, porém, que deseja. Sua cruz é carregada
por todos aqueles que o olhar de Lang dá um pouco mais
de atenção. Em certo sentido, não há diferença entre
o personagem vivido por Robinson, que para conquistar
uma jovem rouba seu chefe e sua mulher; Kitty, que para
ser uma atriz de sucesso engana Chris; e Johnny, que
simplesmente para ter dinheiro transforma-se em um gigolô
de sua namorada. Todos, em suma, desejam ser outros
– e cada um deles disfarça-se, em algum momento, literalmente
em outra pessoa -, ir para o topo da cadeia social (ou
pelo menos ter as vantagens desse topo), e a impossibilidade
de concretização cai igualmente entre os mesmos. Seja
o assassinato da jovem, a prisão e cadeira elétrica
do malandro, a crise de culpa do protagonista. A questão
que se estabelece não é a da culpa, entretanto, é a
do fracasso. A voz que invade a cabeça de Christopher
quando ele percebe o crime que cometeu – voz esta que,
mais do que revelar para si mesmo um homicídio, prova
o fracasso de seu desejo, já que era outro o homem que
Kitty amava – é menos uma questão moral imposta por
Lang do que o peso imposto por toda uma sociedade.
Dessa forma, a Nova Iorque construída em cenário acaba
ultrapassando seu simples simbolismo e ganhando um caráter
físico enorme. Seja nas referências de bairros citados
pelos atores, nas luzes refletidas em poças de água
e rostos infelizes, nos cafés, pontos de ônibus e lojas
de jóias, Lang constrói um filme no qual todo gesto
participa de uma ambiência. Há, no filme, a consciência
de que a moral colocada só pode ser assim se pertencente
a um espaço concreto, real, que a justifique. Pois,
na Nova Iorque do diretor alemão, não há saída para
quem deseja. O problema é que, para que a roda ande,
para que o comércio continue, para que a cidade nunca
durma, continua a ser preciso desejar. Se as pessoas
morrem, são presas ou ficam malucas, no fundo não há
problema. Os quadros – antes objeto de arte, agora objetos
de consumo – continuam a circular, eternamente.
Leonardo Levis
(DVD Aurora)
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