ALMAS PERVERSAS
Fritz Lang, Scarlet Street, EUA, 1945

“I’m a failure, Kitty”
- Edward G. Robinson em Almas Perversas



Quando, após uma hora de projeção, Chris Cross – o protagonista de Almas Perversas vivido por Robinson – revela à sua paixão, com um certo sorriso acanhado, que é um fracasso, nada faz além de explicitar aquilo que a obra-prima de Lang demonstra desde o início e continuará a afirmar, progressivamente, pela meia-hora restante de filme. O olhar do diretor dirige-se àqueles que, por qualquer espécie de razão, decidem alcançar um lugar ao sol na sociedade de consumo, mesmo que a chuva seja um fim inevitável. Neste sentido, Almas Perversas é não apenas a tragédia de Chris, mas também de Kitty e Johnny, os três personagens centrais que em algum momento de suas vidas resolvem que, dentro das luzes de Nova Iorque, alguma deveria brilhar para eles. “I’m a failure, Kitty”, e a frase ecoa nas rugas tristes de Robinson, no rosto esbelto de Dan Dureya, na bela face de Joan Bennett, e o fracasso dos três transforma-se na tragédia de toda uma sociedade. Pois, se mencionar que Scarlet Street representa o fim do sonho americano é pouco diante do filme, ao mesmo tempo é inevitável pensar que não são muitos os que conseguiram, tão bem, desmascarar toda uma cultura.

Almas Perversas é a refilmagem americana de A Cadela, de Jean Renoir. Mais do que uma refilmagem, o filme representa, porém, uma afirmação da visão de mundo de cada diretor. Em A Cadela, os atos apaixonados de Michel Simon serviam para, cada vez mais, libertá-lo do mundo burguês ao qual estava submetido. Devido ao amor por uma vigarista, o protagonista desliga-se da esposa, é demitido do trabalho, assassina uma mulher, incrimina um homem, transforma-se em um mendigo e alcança, enfim, a liberdade. No próprio prólogo do filme, bonecos questionam se A Cadela é uma comédia ou uma tragédia. No fim, a resposta tende mais para a primeira opção. Pois é deste ponto-de-partida que Lang sai para fazer seu remake. Em algum momento o diretor alemão deve ter olhado para o filme francês e questionado: “mas isto deveria ser uma tragédia!”. E assim nasce Almas Perversas, uma tragédia sim, sem sombra de dúvidas.

A mudança no local em que se passam os dois filmes serve como parâmetro para a mudança de gênero deles. Em Paris, desejo é poesia; em Nova Iorque, é dinheiro. Chris Cross desliga-se da esposa, é demitido do trabalho, assassina uma mulher, incrimina um homem, transforma-se em um mendigo, mas, ao contrário de Simon, não alcança liberdade alguma. Lang vai, assim, além de Renoir. Os atos do protagonista agora não são contrários ao mundo onde vive, mas impulsionados por ele, pois esse mundo é regido pelo desejo, e desejo, repito, é capital. Desde o início, esta relação fica clara. Na primeira vez em que aparecem juntos, um longo plano mostra Chris, sentado, de costas, enquanto seu chefe, em pé, de frente para a tela, discursa. Pouco depois, Chris comenta que gostaria de ter alguma amante jovem e bonita apaixonada por ele, como tem seu chefe, e como nunca, em sua vida, teve. Quando se apaixona por Kitty, o desejo que sente é apenas fruto daquilo que gostaria de ser: seu chefe, portanto. Mas Lang não deixa dúvidas; a paixão custa caro, em qualquer sentido, e não é qualquer um que tem o direito de desejar. Se para o patrão a questão moral não se coloca (e seria um tanto hipócrita pensar que Chris tem mau destino porque “peca”, quando o chefe também o faz, e mais naturalmente) é porque ele tem dinheiro e poder para comprá-la, como afirma a cena em que assegura a liberdade de seu funcionário subornando os guardas com uma caixa de charutos cubanos.

Não é só Chris, porém, que deseja. Sua cruz é carregada por todos aqueles que o olhar de Lang dá um pouco mais de atenção. Em certo sentido, não há diferença entre o personagem vivido por Robinson, que para conquistar uma jovem rouba seu chefe e sua mulher; Kitty, que para ser uma atriz de sucesso engana Chris; e Johnny, que simplesmente para ter dinheiro transforma-se em um gigolô de sua namorada. Todos, em suma, desejam ser outros – e cada um deles disfarça-se, em algum momento, literalmente em outra pessoa -, ir para o topo da cadeia social (ou pelo menos ter as vantagens desse topo), e a impossibilidade de concretização cai igualmente entre os mesmos. Seja o assassinato da jovem, a prisão e cadeira elétrica do malandro, a crise de culpa do protagonista. A questão que se estabelece não é a da culpa, entretanto, é a do fracasso. A voz que invade a cabeça de Christopher quando ele percebe o crime que cometeu – voz esta que, mais do que revelar para si mesmo um homicídio, prova o fracasso de seu desejo, já que era outro o homem que Kitty amava – é menos uma questão moral imposta por Lang do que o peso imposto por toda uma sociedade.

Dessa forma, a Nova Iorque construída em cenário acaba ultrapassando seu simples simbolismo e ganhando um caráter físico enorme. Seja nas referências de bairros citados pelos atores, nas luzes refletidas em poças de água e rostos infelizes, nos cafés, pontos de ônibus e lojas de jóias, Lang constrói um filme no qual todo gesto participa de uma ambiência. Há, no filme, a consciência de que a moral colocada só pode ser assim se pertencente a um espaço concreto, real, que a justifique. Pois, na Nova Iorque do diretor alemão, não há saída para quem deseja. O problema é que, para que a roda ande, para que o comércio continue, para que a cidade nunca durma, continua a ser preciso desejar. Se as pessoas morrem, são presas ou ficam malucas, no fundo não há problema. Os quadros – antes objeto de arte, agora objetos de consumo – continuam a circular, eternamente.

Leonardo Levis

(DVD Aurora)