O
Amor em 5 Tempos, agora O Tempo que Resta,
e nos dois títulos a recorrência de uma palavra. Os
filmes de François Ozon, trabalhando em vias opostas
na idéia da duração, acabam reafirmando esse rumo inevitável
das pessoas e dos acontecimentos, que a cada número
somado num relógio tem um número a menos diminuído na
existência. Se no primeiro filme a inversão da ordem
cronológica, mais que uma estratégia estilística ou
afetação pós-moderna, é mesmo a vontade de resguardar
uma importância quase infantil da crença no amor diante
de qualquer crise, onde começar pelo fim (pela morte,
num certo sentido) acaba sendo quase uma afronta ao
tempo, como um menino que desafia o garoto mais forte
colocando-lhe o dedo na cara e gritando bravatas mas
que, no fundo, só pode mesmo correr em volta do agressor,
aplicar-lhe uma falseta, e sair do outro lado com um
sorriso de satisfação que significa no máximo um “não
foi dessa vez”, em O Tempo que Resta Ozon abdica
das falsetas, não nega o fim, não tenta pôr o dedo na
cara dele. É quase com susto que vemos o filme terminar
sem que a belíssima imagem do cartaz, Melvil Poupaud
e um bebê recém-nascido, seu bebê recém-nascido,
iluminados pela luz do sol, se concretize. Aqui, o lugar
do resguardo de qualquer puerilidade fica pendurado
do lado de fora da sala de cinema.
Dentro dela, dentro do filme, sobram personagens encalacrados
em seus destinos. A idéia baziniana do cinema como a
retenção da duração, o domínio da existência do real
capturado em sua consecução no tempo, tem aqui uma representação
quase cruel. É com essa noção que vive Romain desde
o momento em que lhe é diagnosticado um câncer incurável,
desde que tem seus dias demarcados pela previsão médica.
A negação de qualquer tratamento, paliativo diante da
morte certa, mas que pelo menos poderia estender por
um tanto a mais sua vida, é o reconhecimento de uma
derrota, é o cansaço de correr sempre em volta do garoto
brigão, para finalmente deixar-se atingir por ele, é
reconhecer que sua morte “não é senão a vitória do tempo”.
Esse regime de coisas aparentemente mina qualquer possibilidade
de respiração, ou mesmo de transpiração, fora daquilo
que já está traçado por uma instância outra que não
a do próprio diretor/manipulador desses destinos. Desdobramentos
naturais dessa situação, frieza e distanciamento estão
totalmente fora dos planos de Ozon. Há ali no meio desse
jogo de cartas marcadas um personagem que ainda vive,
e que ainda tem questões a resolver, ares a respirar,
e saindo de onde sua ação é limitada, O Tempo que
Resta se jogará onde ainda não existe domínio, morte
ou inevitabilidade. Ozon responde à crueldade do tempo
com um repertório que se localiza, acima de tudo, nos
espaços que Romain precisa atravessar. Essa atitude
passa longe do abraço simples a um personagem carente,
carinho automático que se deva ter com todo aquele que
se cria numa tela. Os contornos da personalidade de
Romain nunca deixam de fora seu temperamento explosivo,
insuportável para alguns, sempre senhor da situação,
desprezando sem cerimônia quem queira se relacionar
com ele. Ozon não nega essa marca de arrogância e auto-suficiência,
mas sim reconhece nela um campo de aproximação onde
todas as questões acabarão se configurando em problemas
de espaço.
Assim, quando confronta-se com sua irmã Sophie, a imposição
não é a de um histórico de brigas e desentendimentos,
a de uma relação cultivada sempre pelo conflito, mas
tão somente a imposição de um espaço que coloca os dois
em lados opostos da mesa de jantar da família, e a violação
dessa distância, por uma briga de tapas, por exemplo,
inviabiliza sua resolução. Mais adiante, diminuídas
as diferenças, diante de um telefonema carinhoso trocado
entre os irmãos, será novamente um espaço a questão
de Romain, que se sente incapaz de aproximar-se da irmã
e dos sobrinhos no parque, mesmo estando a poucos metros
dela, e por isso apenas a observa de longe, incógnito.
Do mesmo modo, a recuperação da memória de seu primeiro
amor homossexual só poderá acontecer quando sua presença
no lugar daquela experiência, a igreja da infância,
se encontrar com a presença do menino que um dia fora.
O choro de Romain, triste diante da firmeza do tempo,
que isola o beijo dado no amigo de escola no passado
e que proíbe qualquer projeção futura (com o namorado
Sasha, talvez), ganha leveza e até alguma alegria quando
percebe que a simples ocorrência daquele espaço já é,
por si, capaz de mantê-lo vivo. É também essa idéia
de continuação que se apresenta num dos planos mais
bonitos de O Tempo que Resta. Depois do sexo
entre Romain, Jany e seu marido, para o primeiro ainda
uma manifestação confusa de vontade de permanência e
resumo de todas as desculpas e reparos que devia ao
mundo, para os dois últimos a realização do sonho de
um filho, e para os três a certeza de uma vitória (efêmera,
mas ainda assim) sobre o tempo, Ozon enquadra seus corpos
unidos sobre a cama, e depois de algum tempo nesse estado
entre o gozo e o cansaço, vemos a mão do marido acariciar
o ventre de Valeria Bruni-Tedeschi, o espaço da existência
de todos os filmes possíveis depois que este mesmo,
O Tempo que Resta, terminar.
E então ele termina. Mais que um Gustav von Aschenbach
que reencontra a Veneza de seus sonhos já tomada pela
peste, pela inevitabilidade da morte, Ozon promove aqui
o reencontro de um Melvil Poupaud com a praia francesa
que um dia lhe proporcionara o destaque no cinema. Se
há citação aqui, ela não está apenas no filme de Visconti,
mas principalmente no Conto de Verão de Eric
Rohmer, a partir do qual se notabilizou esse ator que,
tanto no filme de 1996 quanto neste de dez anos depois,
nunca está menos do que brilhante. Devolver Poupaud
à areia e ao sol da costa norte, despedir-se desse personagem
colando nele, mais uma vez, a identificação com um ambiente.
Sai a juventude atrapalhada e divertida, entra o peso
de uma trajetória de negativas interrompida por um fim
trágico, e por trás disso tudo o pôr-do-sol. Se, em
O Amor em 5 Tempos, esse mesmo último plano do
horizonte funcionava quase como a utopia de um futuro
que já sabíamos frustrado desde o começo, em O Tempo
que Resta, ele leva uma estranha dose de realidade.
O sol de Romain baixa na linha do mar, e seu corpo permanece
imóvel na areia, mas não há como esquecer da imagem
daquele ventre acariciado anteriormente, da imagem sonhada
de pai e filho lado a lado no cartaz do filme, espaços
da possibilidade de uma vida que o tempo não conseguirá
encerrar.
Rodrigo de Oliveira
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