O TEMPO QUE RESTA
François Ozon, Le temps qui reste, França, 2005

O Amor em 5 Tempos, agora O Tempo que Resta, e nos dois títulos a recorrência de uma palavra. Os filmes de François Ozon, trabalhando em vias opostas na idéia da duração, acabam reafirmando esse rumo inevitável das pessoas e dos acontecimentos, que a cada número somado num relógio tem um número a menos diminuído na existência. Se no primeiro filme a inversão da ordem cronológica, mais que uma estratégia estilística ou afetação pós-moderna, é mesmo a vontade de resguardar uma importância quase infantil da crença no amor diante de qualquer crise, onde começar pelo fim (pela morte, num certo sentido) acaba sendo quase uma afronta ao tempo, como um menino que desafia o garoto mais forte colocando-lhe o dedo na cara e gritando bravatas mas que, no fundo, só pode mesmo correr em volta do agressor, aplicar-lhe uma falseta, e sair do outro lado com um sorriso de satisfação que significa no máximo um “não foi dessa vez”, em O Tempo que Resta Ozon abdica das falsetas, não nega o fim, não tenta pôr o dedo na cara dele. É quase com susto que vemos o filme terminar sem que a belíssima imagem do cartaz, Melvil Poupaud e um bebê recém-nascido, seu bebê recém-nascido, iluminados pela luz do sol, se concretize. Aqui, o lugar do resguardo de qualquer puerilidade fica pendurado do lado de fora da sala de cinema.

Dentro dela, dentro do filme, sobram personagens encalacrados em seus destinos. A idéia baziniana do cinema como a retenção da duração, o domínio da existência do real capturado em sua consecução no tempo, tem aqui uma representação quase cruel. É com essa noção que vive Romain desde o momento em que lhe é diagnosticado um câncer incurável, desde que tem seus dias demarcados pela previsão médica. A negação de qualquer tratamento, paliativo diante da morte certa, mas que pelo menos poderia estender por um tanto a mais sua vida, é o reconhecimento de uma derrota, é o cansaço de correr sempre em volta do garoto brigão, para finalmente deixar-se atingir por ele, é reconhecer que sua morte “não é senão a vitória do tempo”. Esse regime de coisas aparentemente mina qualquer possibilidade de respiração, ou mesmo de transpiração, fora daquilo que já está traçado por uma instância outra que não a do próprio diretor/manipulador desses destinos. Desdobramentos naturais dessa situação, frieza e distanciamento estão totalmente fora dos planos de Ozon. Há ali no meio desse jogo de cartas marcadas um personagem que ainda vive, e que ainda tem questões a resolver, ares a respirar, e saindo de onde sua ação é limitada, O Tempo que Resta se jogará onde ainda não existe domínio, morte ou inevitabilidade. Ozon responde à crueldade do tempo com um repertório que se localiza, acima de tudo, nos espaços que Romain precisa atravessar. Essa atitude passa longe do abraço simples a um personagem carente, carinho automático que se deva ter com todo aquele que se cria numa tela. Os contornos da personalidade de Romain nunca deixam de fora seu temperamento explosivo, insuportável para alguns, sempre senhor da situação, desprezando sem cerimônia quem queira se relacionar com ele. Ozon não nega essa marca de arrogância e auto-suficiência, mas sim reconhece nela um campo de aproximação onde todas as questões acabarão se configurando em problemas de espaço.

Assim, quando confronta-se com sua irmã Sophie, a imposição não é a de um histórico de brigas e desentendimentos, a de uma relação cultivada sempre pelo conflito, mas tão somente a imposição de um espaço que coloca os dois em lados opostos da mesa de jantar da família, e a violação dessa distância, por uma briga de tapas, por exemplo, inviabiliza sua resolução. Mais adiante, diminuídas as diferenças, diante de um telefonema carinhoso trocado entre os irmãos, será novamente um espaço a questão de Romain, que se sente incapaz de aproximar-se da irmã e dos sobrinhos no parque, mesmo estando a poucos metros dela, e por isso apenas a observa de longe, incógnito. Do mesmo modo, a recuperação da memória de seu primeiro amor homossexual só poderá acontecer quando sua presença no lugar daquela experiência, a igreja da infância, se encontrar com a presença do menino que um dia fora. O choro de Romain, triste diante da firmeza do tempo, que isola o beijo dado no amigo de escola no passado e que proíbe qualquer projeção futura (com o namorado Sasha, talvez), ganha leveza e até alguma alegria quando percebe que a simples ocorrência daquele espaço já é, por si, capaz de mantê-lo vivo. É também essa idéia de continuação que se apresenta num dos planos mais bonitos de O Tempo que Resta. Depois do sexo entre Romain, Jany e seu marido, para o primeiro ainda uma manifestação confusa de vontade de permanência e resumo de todas as desculpas e reparos que devia ao mundo, para os dois últimos a realização do sonho de um filho, e para os três a certeza de uma vitória (efêmera, mas ainda assim) sobre o tempo, Ozon enquadra seus corpos unidos sobre a cama, e depois de algum tempo nesse estado entre o gozo e o cansaço, vemos a mão do marido acariciar o ventre de Valeria Bruni-Tedeschi, o espaço da existência de todos os filmes possíveis depois que este mesmo, O Tempo que Resta, terminar.

E então ele termina. Mais que um Gustav von Aschenbach que reencontra a Veneza de seus sonhos já tomada pela peste, pela inevitabilidade da morte, Ozon promove aqui o reencontro de um Melvil Poupaud com a praia francesa que um dia lhe proporcionara o destaque no cinema. Se há citação aqui, ela não está apenas no filme de Visconti, mas principalmente no Conto de Verão de Eric Rohmer, a partir do qual se notabilizou esse ator que, tanto no filme de 1996 quanto neste de dez anos depois, nunca está menos do que brilhante. Devolver Poupaud à areia e ao sol da costa norte, despedir-se desse personagem colando nele, mais uma vez, a identificação com um ambiente. Sai a juventude atrapalhada e divertida, entra o peso de uma trajetória de negativas interrompida por um fim trágico, e por trás disso tudo o pôr-do-sol. Se, em O Amor em 5 Tempos, esse mesmo último plano do horizonte funcionava quase como a utopia de um futuro que já sabíamos frustrado desde o começo, em O Tempo que Resta, ele leva uma estranha dose de realidade. O sol de Romain baixa na linha do mar, e seu corpo permanece imóvel na areia, mas não há como esquecer da imagem daquele ventre acariciado anteriormente, da imagem sonhada de pai e filho lado a lado no cartaz do filme, espaços da possibilidade de uma vida que o tempo não conseguirá encerrar.


Rodrigo de Oliveira