Nascidos
em Bordéis não é um filme comovente sobre uma mulher
que tenta salvar a vida de alguns meninos fadados a
repetir a vida criminosa de drogas e prostituição nos
guetos da luz vermelha da Índia. É sobretudo um filme
de terror. Um filme sobre como uma documentarista, dotada
de todas as verdades egocêntricas e etnocêntricas sobre
como dar liberdade aos outros, vai num país "exótico
e atrasado" para com a arte (a fotografia, o cinema)
salvar quem ainda pode ser salvo do mar de lama: as
pobres criancinhas filhas das prostitutas de Calcutá.
Há um quê de Michael Moore (a professora-cineasta lutando
contra a burocracia terceiromundista e preconceituosa
da Índia para tirar os vistos de ração de seus alunos),
como há um nojento fedor de autopromoção (as crianças
sendo entrevistadas pela televisão indiana dizendo como
tudo que a tia Zana ensina vai direto pro cérebro, como
ela é boazinha e atenciosa, etc.) nessa enquete assistencialista
que tenta aplacar a culpa social através de saídas voluntaristas
que "fazem a diferença". O voluntarismo, como bem se
sabe, serve mais para aliviar a consciência de quem
pratica do que para salvar o outro a quem ele geralmente
é destinado. Assim, depois que a diretora do filme se
esforça para colocar todos os meninos na escola – a
toques de caixa, para mostrar que fez sua parte –, as
legendas nos informam que a maioria deles voltou para
a família.
A metáfora é clara: como George W. Bush concedendo aos
iraquianos uma democracia que, para princípio de conversa,
eles não pediram, tia Zana aparece com seus valores
universais para dar "liberdade" a pessoas que vivem
num contexto social e existencial em que essa liberdade
não é possível. Em Nascidos em Bordéis, a arte
serve como álibi para uma prática invasiva, altamente
questionável, e como desculpa para ser bonzinho com
os outros e, assim, conseguir suas medalhinhas da Unicef
(ou o senso do dever cumprido). Todo o poder à má-consciência.
Como no igualmente lamentável Cine Mambembe,
a tarefa do artista é agir como elemento invasivo porém
carregando valores "universais" para iluminar a vida
de pessoas humildes. Efeito "pixote": para um possível
fotógrafo de carreira profissional bem-sucedida, quantos
conviverão com uma lembrança frustrada de uma caucasiana
bem trapalhona? A benevolência cretina de uma documentarista
que vai embora enquanto os outros ficam com seus recém-criados
desejos artísticos é algo de virar o estômago. Zana
Briski jamais deve ter lido O Pequeno Príncipe;
nele, se lê: "Tu és responsável por aquilo que cativas".
De boas intenções...
Ruy Gardnier
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