NASCIDOS EM BORDÉIS
Zana Briski e Ross Kaufman, Born into Brothels: Calcutta's Red Light Kids, EUA/Índia, 2004

Nascidos em Bordéis não é um filme comovente sobre uma mulher que tenta salvar a vida de alguns meninos fadados a repetir a vida criminosa de drogas e prostituição nos guetos da luz vermelha da Índia. É sobretudo um filme de terror. Um filme sobre como uma documentarista, dotada de todas as verdades egocêntricas e etnocêntricas sobre como dar liberdade aos outros, vai num país "exótico e atrasado" para com a arte (a fotografia, o cinema) salvar quem ainda pode ser salvo do mar de lama: as pobres criancinhas filhas das prostitutas de Calcutá.

Há um quê de Michael Moore (a professora-cineasta lutando contra a burocracia terceiromundista e preconceituosa da Índia para tirar os vistos de ração de seus alunos), como há um nojento fedor de autopromoção (as crianças sendo entrevistadas pela televisão indiana dizendo como tudo que a tia Zana ensina vai direto pro cérebro, como ela é boazinha e atenciosa, etc.) nessa enquete assistencialista que tenta aplacar a culpa social através de saídas voluntaristas que "fazem a diferença". O voluntarismo, como bem se sabe, serve mais para aliviar a consciência de quem pratica do que para salvar o outro a quem ele geralmente é destinado. Assim, depois que a diretora do filme se esforça para colocar todos os meninos na escola – a toques de caixa, para mostrar que fez sua parte –, as legendas nos informam que a maioria deles voltou para a família.

A metáfora é clara: como George W. Bush concedendo aos iraquianos uma democracia que, para princípio de conversa, eles não pediram, tia Zana aparece com seus valores universais para dar "liberdade" a pessoas que vivem num contexto social e existencial em que essa liberdade não é possível. Em Nascidos em Bordéis, a arte serve como álibi para uma prática invasiva, altamente questionável, e como desculpa para ser bonzinho com os outros e, assim, conseguir suas medalhinhas da Unicef (ou o senso do dever cumprido). Todo o poder à má-consciência.

Como no igualmente lamentável Cine Mambembe, a tarefa do artista é agir como elemento invasivo porém carregando valores "universais" para iluminar a vida de pessoas humildes. Efeito "pixote": para um possível fotógrafo de carreira profissional bem-sucedida, quantos conviverão com uma lembrança frustrada de uma caucasiana bem trapalhona? A benevolência cretina de uma documentarista que vai embora enquanto os outros ficam com seus recém-criados desejos artísticos é algo de virar o estômago. Zana Briski jamais deve ter lido O Pequeno Príncipe; nele, se lê: "Tu és responsável por aquilo que cativas". De boas intenções...


Ruy Gardnier