Roberta
(Victoria Onetto) está nua, sentada em sua cama fazendo
um teste de fertilidade. Sem saber, está sendo observada
por um bando de garotos, que, munidos de binóculos,
se deliciam com a opulência de seu corpo. Logo nesses
dois primeiros planos – o da sensual mulher examinando
o corpo (ação de auto-observação) e o dos adolescentes
a observando e atingindo o prazer através do olhar –
somos apresentados de uma só vez ao enredo e ao entorno
temático de El Favor. A trama é sugerida a partir
dessa primeira ação de Roberta, que enxerga em seu corpo
o espaço que lhe permitirá a viabilização de seu projeto:
a constituição de uma família convencional com Mora
(Bernada Pages). Tal projeto apresenta como elemento
estrutural o desejo de ter um filho, figura que por
definição carrega a responsabilidade de selar a união
do casal e de proporcionar o estatuto de “lar” ao local
que habitam. A ausência de um filho, além de ser um
indicador para as duas mulheres de que elas sozinhas
são incapazes de compor uma “verdadeira” família, é
um lembrete de uma incompatibilidade natural: elas sozinhas
também não podem procriar. Essas carências só poderão
ser supridas com a atuação de um agente externo, um
homem que deverá entrar em cena apenas para fecundar
Roberta e assim tornar viável o nascimento de um continuador
natural. O homem em questão é Felipe (Javier Lombardo),
irmão de Mora, e logo o executor ideal para o feito,
pois assim tudo ficaria em “família”. A encenação, portanto,
se confinará em uma unidade espacial e temporal (um
apartamento e uma noite) e se baseará na arapuca armada
pelo casal de lésbicas para que Felipe caia como uma
presa fácil. A armadilha minuciosamente preparada –
Roberta e Mora fazem coquetéis à base de viagra e montam
uma mesa repleta de afrodisíacos – fica prestes a falhar
quando surgem os personagens-obstáculos: a namorada
e um futuro sócio de Felipe, ambos convidados por ele
a comparecerem ao apartamento da irmã.
A confluência de aparições dos personagens em um único
cenário e em momentos distintos, aqui utilizada para
demarcar o desembocar dos quiprocós, nos remete diretamente
à estética de certos programas humorísticos. Embora
a direção de arte tenha sido orientada para seguir um
padrão realista e fugir de elementos que nos remeta
a um cenário artificial, e a direção de atores tenha
optado pela não impostação, a presença do referencial
televisivo permanece. E essa influência da televisão,
presente em diversos filmes latino-americanos contemporâneos,
não se restringe ou se baseia apenas em opções de decupagem,
como vemos em dois filmes brasileiros recentes: Filhas
do Vento (Joel Zito Araújo, 2005) e Depois daquele
Baile (Roberto Bomtempo, 2006). Ambos fazem um esforço
para escapar do intercâmbio visual com a tv adotando
recursos que a princípio os aproximariam do “cinematográfico”.
Enquadramentos clichês e associados diretamente à estética
das telenovelas são abolidos – feito que filmes como
Olga (Jayme Monjardim, 2004) e Dom (Moacyr
Góes, 2003) não promovem – como se isso fosse o suficiente
para proporcionar um distanciamento em relação à matriz
televisiva. Se o filme de Joel Zito faz questão de enfatizar
sua filiação com a teleficção brasileira através de
suas opções dramatúrgicas, temáticas e da escrita de
seus diálogos, ele procura ao mesmo tempo atestar desesperadamente
a sua condição de “filme” e o seu estatuto de “obra”
cinematográfica. Depois daquele Baile sofre o
mesmo choque travado entre teledramaturgia e linguagem
cinematográfica. Realiza a mesma operação, em que elementos
da sintaxe cinematográfica são mal utilizados porque,
estão executando uma função de enfeite, ao invés de
estarem a serviço da narrativa. Esses elementos se configuram
nesses dois filmes como meros adornos, simples floreios
que não proporcionam a atmosfera cinematográfica desejada,
mas assumem antes o aspecto de serem corpos estranhos
injetados em um universo divergente.
Em El Favor não encontramos esse procedimento.
Não constatamos uma pretensão de elevar para o degrau
de “arte cinematográfica” o seu status de produto cultural
filho da televisão. O primeiro longa-metragem de Pablo
Sofovich assume o entretenimento como seu propósito
primordial sem culpa e sem o ressentimento de ser um
produto cultural a priori considerado menor. O filme
argentino tem plena consciência de seus objetivos, de
seu público-alvo e não almeja ser o que não é. Se essa
postura não o faz ser um filme melhor, pelo menos o
faz mais sincero e ciente de suas limitações. Sofovich
almeja através de uma estrutura simples, de comédia
de erros ou de equívocos, divertir o espectador e ao
mesmo tempo dar o seu recado acerca do tema do homossexualismo.
Um dos maiores problemas de El favor não é o
uso de uma fórmula gasta e pouco original, e sim a inverossimilhança
de certas elaborações que pela adoção do gênero e do
tom “naturalista” precisavam ser verossímeis. É um pouco
complicado crer na homossexualidade de Roberta e na
autenticidade da religiosidade da namorada de Felipe.
A fragilidade da construção desses personagens e o de
Mora se contrastam com o eficiente desempenho de Javier
Lombardo. Sendo o ator e o seu personagem um dos poucos
pontos positivos do filme, observamos que ele aparenta
claramente estar em cena sozinho.
Um outro porém se refere à própria abordagem do tema
central. O conservadorismo com que ele é tratado torna-se
evidente não só pela aparente artificialidade do casal
feminino, mas também por certas opções. No desfecho
da trama, quando tudo já foi resolvido, Mora revela
para o alívio de Felipe que a mãe deles não teve de
fato uma experiência homossexual. O choque de Felipe
no início, ao saber do hipotético “desvio” da mãe, desestabiliza-o.
Ao receber a notícia de que isso era mentira, o conforto
geral dos personagens se estabelece definitivamente.
El favor é uma comédia previsível, pouco criativa
e resulta igualmente esquemática ao elaborar a questão
da contemplação fetichista. Os observadores que assistem,
junto a nós espectadores, ao teatro encenado no apartamento
de Mora e Roberta são divididos em dois grupos: o bando
de garotos anteriormente mencionado e um casal de velhinhos.
A descoberta, o novo e a ânsia por adquirir experiências
versus a experiência esgotada e a ação interrompida.
O nascimento da sexualidade versus a sexualidade paralizada.O
espetáculo visto da janela faz o velhinho sair de seu
amortecimento e apertar pela primeira vez em muitos
anos (suponhamos) o peito de sua senhora. Aparece aqui
uma interessante idéia de celebração da sexualidade
que poderia ser mais bem desenvolvida ao longo do filme,
assim como a relação dos observadores com os objetos
observados. Essas questões, a sexualidade e o fetichismo
adornam a narrativa, tornando-a mais leve e amena, de
modo que o conflito principal não saia de nossa atenção
e interesse. Isso de fato acontece, mas ao término do
filme constatamos que, se as estratégias adotadas por
El favor para estabelecer um diálogo efetivo
com o espectador e para resultar num filme de fácil
aceitação popular são legítimas, não é acrescentado
sequer um tempero de originalidade e inteligência capaz
de fazer esses preceitos não se fecharem em si mesmos.
Esperamos que mais filmes comerciais argentinos cheguem
às nossas telas, e que o conhecimento dessa parcela
da produção cinematográfica do país vizinho nos permita
uma reflexão sobre os impasses das adoções de certas
estratégias mercadológicas levadas a cabo em nosso contexto
nacional e continental.
Estevão Garcia
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