EL FAVOR
Pablo Sofovich, Argentina, 2004

Roberta (Victoria Onetto) está nua, sentada em sua cama fazendo um teste de fertilidade. Sem saber, está sendo observada por um bando de garotos, que, munidos de binóculos, se deliciam com a opulência de seu corpo. Logo nesses dois primeiros planos – o da sensual mulher examinando o corpo (ação de auto-observação) e o dos adolescentes a observando e atingindo o prazer através do olhar – somos apresentados de uma só vez ao enredo e ao entorno temático de El Favor. A trama é sugerida a partir dessa primeira ação de Roberta, que enxerga em seu corpo o espaço que lhe permitirá a viabilização de seu projeto: a constituição de uma família convencional com Mora (Bernada Pages). Tal projeto apresenta como elemento estrutural o desejo de ter um filho, figura que por definição carrega a responsabilidade de selar a união do casal e de proporcionar o estatuto de “lar” ao local que habitam. A ausência de um filho, além de ser um indicador para as duas mulheres de que elas sozinhas são incapazes de compor uma “verdadeira” família, é um lembrete de uma incompatibilidade natural: elas sozinhas também não podem procriar. Essas carências só poderão ser supridas com a atuação de um agente externo, um homem que deverá entrar em cena apenas para fecundar Roberta e assim tornar viável o nascimento de um continuador natural. O homem em questão é Felipe (Javier Lombardo), irmão de Mora, e logo o executor ideal para o feito, pois assim tudo ficaria em “família”. A encenação, portanto, se confinará em uma unidade espacial e temporal (um apartamento e uma noite) e se baseará na arapuca armada pelo casal de lésbicas para que Felipe caia como uma presa fácil. A armadilha minuciosamente preparada – Roberta e Mora fazem coquetéis à base de viagra e montam uma mesa repleta de afrodisíacos – fica prestes a falhar quando surgem os personagens-obstáculos: a namorada e um futuro sócio de Felipe, ambos convidados por ele a comparecerem ao apartamento da irmã.

A confluência de aparições dos personagens em um único cenário e em momentos distintos, aqui utilizada para demarcar o desembocar dos quiprocós, nos remete diretamente à estética de certos programas humorísticos. Embora a direção de arte tenha sido orientada para seguir um padrão realista e fugir de elementos que nos remeta a um cenário artificial, e a direção de atores tenha optado pela não impostação, a presença do referencial televisivo permanece. E essa influência da televisão, presente em diversos filmes latino-americanos contemporâneos, não se restringe ou se baseia apenas em opções de decupagem, como vemos em dois filmes brasileiros recentes: Filhas do Vento (Joel Zito Araújo, 2005) e Depois daquele Baile (Roberto Bomtempo, 2006). Ambos fazem um esforço para escapar do intercâmbio visual com a tv adotando recursos que a princípio os aproximariam do “cinematográfico”. Enquadramentos clichês e associados diretamente à estética das telenovelas são abolidos – feito que filmes como Olga (Jayme Monjardim, 2004) e Dom (Moacyr Góes, 2003) não promovem – como se isso fosse o suficiente para proporcionar um distanciamento em relação à matriz televisiva. Se o filme de Joel Zito faz questão de enfatizar sua filiação com a teleficção brasileira através de suas opções dramatúrgicas, temáticas e da escrita de seus diálogos, ele procura ao mesmo tempo atestar desesperadamente a sua condição de “filme” e o seu estatuto de “obra” cinematográfica. Depois daquele Baile sofre o mesmo choque travado entre teledramaturgia e linguagem cinematográfica. Realiza a mesma operação, em que elementos da sintaxe cinematográfica são mal utilizados porque, estão executando uma função de enfeite, ao invés de estarem a serviço da narrativa. Esses elementos se configuram nesses dois filmes como meros adornos, simples floreios que não proporcionam a atmosfera cinematográfica desejada, mas assumem antes o aspecto de serem corpos estranhos injetados em um universo divergente.

Em El Favor não encontramos esse procedimento. Não constatamos uma pretensão de elevar para o degrau de “arte cinematográfica” o seu status de produto cultural filho da televisão. O primeiro longa-metragem de Pablo Sofovich assume o entretenimento como seu propósito primordial sem culpa e sem o ressentimento de ser um produto cultural a priori considerado menor. O filme argentino tem plena consciência de seus objetivos, de seu público-alvo e não almeja ser o que não é. Se essa postura não o faz ser um filme melhor, pelo menos o faz mais sincero e ciente de suas limitações. Sofovich almeja através de uma estrutura simples, de comédia de erros ou de equívocos, divertir o espectador e ao mesmo tempo dar o seu recado acerca do tema do homossexualismo. Um dos maiores problemas de El favor não é o uso de uma fórmula gasta e pouco original, e sim a inverossimilhança de certas elaborações que pela adoção do gênero e do tom “naturalista” precisavam ser verossímeis. É um pouco complicado crer na homossexualidade de Roberta e na autenticidade da religiosidade da namorada de Felipe. A fragilidade da construção desses personagens e o de Mora se contrastam com o eficiente desempenho de Javier Lombardo. Sendo o ator e o seu personagem um dos poucos pontos positivos do filme, observamos que ele aparenta claramente estar em cena sozinho.

Um outro porém se refere à própria abordagem do tema central. O conservadorismo com que ele é tratado torna-se evidente não só pela aparente artificialidade do casal feminino, mas também por certas opções. No desfecho da trama, quando tudo já foi resolvido, Mora revela para o alívio de Felipe que a mãe deles não teve de fato uma experiência homossexual. O choque de Felipe no início, ao saber do hipotético “desvio” da mãe, desestabiliza-o. Ao receber a notícia de que isso era mentira, o conforto geral dos personagens se estabelece definitivamente. El favor é uma comédia previsível, pouco criativa e resulta igualmente esquemática ao elaborar a questão da contemplação fetichista. Os observadores que assistem, junto a nós espectadores, ao teatro encenado no apartamento de Mora e Roberta são divididos em dois grupos: o bando de garotos anteriormente mencionado e um casal de velhinhos. A descoberta, o novo e a ânsia por adquirir experiências versus a experiência esgotada e a ação interrompida. O nascimento da sexualidade versus a sexualidade paralizada.O espetáculo visto da janela faz o velhinho sair de seu amortecimento e apertar pela primeira vez em muitos anos (suponhamos) o peito de sua senhora. Aparece aqui uma interessante idéia de celebração da sexualidade que poderia ser mais bem desenvolvida ao longo do filme, assim como a relação dos observadores com os objetos observados. Essas questões, a sexualidade e o fetichismo adornam a narrativa, tornando-a mais leve e amena, de modo que o conflito principal não saia de nossa atenção e interesse. Isso de fato acontece, mas ao término do filme constatamos que, se as estratégias adotadas por El favor para estabelecer um diálogo efetivo com o espectador e para resultar num filme de fácil aceitação popular são legítimas, não é acrescentado sequer um tempero de originalidade e inteligência capaz de fazer esses preceitos não se fecharem em si mesmos.

Esperamos que mais filmes comerciais argentinos cheguem às nossas telas, e que o conhecimento dessa parcela da produção cinematográfica do país vizinho nos permita uma reflexão sobre os impasses das adoções de certas estratégias mercadológicas levadas a cabo em nosso contexto nacional e continental.


Estevão Garcia