TODOS PORCOS (1961)
Buta to gunkan
 

Existe a analogia com animais e insetos, sim, já muito explorada em diversos textos. Mas existe também, para muito além da fama de cruel com a humanidade que Imamura carrega em alguns círculos, uma tentativa de compreender o humano, que negaria essa fama, ou pelo menos a atenuaria. A analogia com animais e insetos é muito clara para ser negada, mas deve ser relativizada, pois pode dar a impressão de que ele é apenas um entomologista ou zoólogo aplicando seus estudos em humanos, quando, na verdade, é muito mais: um autor coerente com sua visão crítica da sociedade nipônica.

É justamente em Todos Porcos que começa a filmografia autoral do diretor. É quando detectamos uma maneira particular de olhar o mundo, uma postura diferenciada no trato dos personagens, que parecem ter toda a oportunidade para mostrar seu lado ruim, mas se revelam, por um desses milagres da arte, dignos de simpatia. Vemos o casal Haruko e Kinta. Ela, ambiciosa, e bem mais madura e consciente do que ele, um rapaz de ginga e falas malemolentes que se envolve com criminosos e se atola em sua própria ingenuidade. Ela tenta convencê-lo a abandonar aquela cidade portuária, onde eles se envolvem com comércio ilegal de porcos, mas ele não quer; prefere continuar na trilha do irmão, um gansgter, ídolo maior de suas perdições mundanas.

Por trás da bela trama de desajustados, há um esforço enorme de rompimento com o classicismo. Pode-se observar esse movimento principalmente no campo formal, no qual Imamura parece vincular um plano mais acadêmico a outro completamente despojado. A sucessão de imagens dá conta, assim, desse movimento de quebra que estava em perfeita sintonia com os cinemas novos mundo afora: a um plano de enquadramento que privilegia os atores e a dramaturgia segue um plano oblíquo, com o espaço inteiro sendo trabalhado visualmente. Os poucos contraplanos são seguidos de cortes que brincam com o eixo da câmera, ou que introduzem novos personagens no mesmo espaço. Vemos um diretor com perfeito domínio do scope, como ele confirmaria nos filmes seguintes, ainda que um delicioso ranço classicista se imponha vez ou outra, como peça necessária para que acompanhemos melhor a história de traços bem delineados.

Ao final, depois de ver os porcos invadindo as ruelas e a vida barulhenta voltando ao normal, temos o plano final, de uma genialidade assustadora. Haruko se dirige para a estação, a câmera a acompanha de longe, para que, numa panorâmica, consiga revelar seu trem saindo para as montanhas, rumo à urbanidade que ela perseguia. Se é uma elipse dentro do mesmo plano não sabemos. Afinal, ela pode ter conseguido correr e embarcar no tempo real. Mas que é algo digno de um grande artista não há a menor dúvida.


Sérgio Alpendre

 

 











A invasão dos porcos e a vida
que volta ao normal (Todos Porcos)