Existe a analogia com animais e insetos, sim, já
muito explorada em diversos textos. Mas existe também,
para muito além da fama de cruel com a humanidade
que Imamura carrega em alguns círculos, uma tentativa
de compreender o humano, que negaria essa fama, ou pelo
menos a atenuaria. A analogia com animais e insetos
é muito clara para ser negada, mas deve ser relativizada,
pois pode dar a impressão de que ele é
apenas um entomologista ou zoólogo aplicando
seus estudos em humanos, quando, na verdade, é
muito mais: um autor coerente com sua visão crítica
da sociedade nipônica.
É justamente em Todos Porcos que começa
a filmografia autoral do diretor. É quando detectamos
uma maneira particular de olhar o mundo, uma postura
diferenciada no trato dos personagens, que parecem ter
toda a oportunidade para mostrar seu lado ruim, mas
se revelam, por um desses milagres da arte, dignos de
simpatia. Vemos o casal Haruko e Kinta. Ela, ambiciosa,
e bem mais madura e consciente do que ele, um rapaz
de ginga e falas malemolentes que se envolve com criminosos
e se atola em sua própria ingenuidade. Ela tenta
convencê-lo a abandonar aquela cidade portuária,
onde eles se envolvem com comércio ilegal de
porcos, mas ele não quer; prefere continuar na
trilha do irmão, um gansgter, ídolo
maior de suas perdições mundanas.
Por trás da bela trama de desajustados, há
um esforço enorme de rompimento com o classicismo.
Pode-se observar esse movimento principalmente no campo
formal, no qual Imamura parece vincular um plano mais
acadêmico a outro completamente despojado. A sucessão
de imagens dá conta, assim, desse movimento de
quebra que estava em perfeita sintonia com os cinemas
novos mundo afora: a um plano de enquadramento que privilegia
os atores e a dramaturgia segue um plano oblíquo,
com o espaço inteiro sendo trabalhado visualmente.
Os poucos contraplanos são seguidos de cortes
que brincam com o eixo da câmera, ou que introduzem
novos personagens no mesmo espaço. Vemos um diretor
com perfeito domínio do scope, como ele
confirmaria nos filmes seguintes, ainda que um delicioso
ranço classicista se imponha vez ou outra, como
peça necessária para que acompanhemos
melhor a história de traços bem delineados.
Ao final, depois de ver os porcos invadindo as ruelas
e a vida barulhenta voltando ao normal, temos o plano
final, de uma genialidade assustadora. Haruko se dirige
para a estação, a câmera a acompanha
de longe, para que, numa panorâmica, consiga revelar
seu trem saindo para as montanhas, rumo à urbanidade
que ela perseguia. Se é uma elipse dentro do
mesmo plano não sabemos. Afinal, ela pode ter
conseguido correr e embarcar no tempo real. Mas que
é algo digno de um grande artista não
há a menor dúvida.
Sérgio Alpendre
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