As
atividades do coreano Nam June Paik foram muitas. Músico,
pai da vídeo-arte, parceiro de John Cage, adepto de
intervenções artísticas radicais, integrante do grupo
Fluxus. Tendo sido um dos primeiros a demonstrar interesse
artístico e teórico pela televisão, ele foi mentor de
um seqüestro inédito dos meios de telecomunicação pelas
artes visuais. Na mostra que o Centro Cultural Telemar
do Rio de Janeiro promoveu em junho/julho deste ano,
foram exibidos trabalhos seus em vídeo e para a tv feitos
ao longo de quatro décadas. Para quem só conhecia NJP
de ler artigos sobre sua importância ou de ouvir falar,
o fluxo audiovisual foi arrebatador, por vezes difícil
de descrever. O que se segue abaixo são algumas notas
feitas a partir dessa experiência.
Sinal x Signo
E se a maçaroca televisiva fosse de súbito desviada
de seu caminho, transferida para outro ambiente em que
circulam menos informações, textos ou mercadorias do
que simplesmente formas? Estaria ela, relapsa
e “vulgar” como sempre, insinuando que seu destino é
se tornar uma arte?
A princípio, a televisão não trabalha com signos, mas
antes com a transmissão e a preservação de um sinal.
O que ela mostra é resultado de uma sintonia, de um
canal aberto por onde passa um determinado volume de
material audiovisual. Nam June Paik percebeu, entretanto,
que a partir do momento em que ocorre uma deturpação
de alguma ordem no sinal, uma interferência, uma interrupção
ou uma desregulação qualquer, o sinal sofre uma disfunção
– e não funcionando, produz algo diferente do que se
esperava dele, alguma experiência que não estava programada,
uma imagem desmembrada, distorcida na passagem, uma
tradução para signos icônicos dos ruídos eventualmente
produzidos na comunicação, na transmissão de uma mensagem.
Televisão fora do ar, color bar, timecode,
os “fantasmas” que nas más transmissões tendem a duplicar
as figuras: na perda ou na debilidade do sinal, emerge
um magma televisivo primordial, aquilo que precede a
existência de uma “realidade” difundida, aquilo que
representa, em última análise, o grau zero do televisual.
A reapropriação artística que Paik faz da tv sem dúvida
se inscreve dentro da tradição do deslocamento duchampiano,
que libera o objeto de seu uso e, ao inverter sua posição,
confere-lhe forma, textura, conceito. Mas a operação
duchampiana é apenas um dos processos em jogo. Em Global
Groove, enxertos de ready-mades (um comercial
da Pepsi é incluído na íntegra, por exemplo) se sucedem
a experimentos e intervenções outras, como as performances
de dançarinos e da violoncelista Charlotte Moorman (que
trabalhou com Paik em diversas ocasiões) transcorrendo
sobre fundos mutantes, verdadeiras versões eletrônicas
do dadaísmo. Num dos melhores momentos do vídeo, feito
em 1973 e transmitido num canal a cabo nova-iorquino
um ano depois, vemos as manobras corporais de uma dançarina
em “primeiro plano” (na verdade não há camadas de espaço
a se distinguir, não há relações de distância no interior
da imagem), enquanto ao fundo a imagem de uma patinadora
parece ao mesmo tempo espelhar e negar seus movimentos.
Condensadas na mesma superfície eletrônica, porém nitidamente
separadas pelas diferentes cores e texturas dos dois
registros sobrepostos, as imagens da dançarina e da
patinadora ora se encontram e se reverberam, participando
de uma mesma ação conjunta, de uma mesma dança sincronizada,
ora se afastam e se repelem, como se disputassem o poder
de permanência na imagem e se insurgissem contra esse
novo regime fusional onde tudo é simultâneo e provisório.
NJP parte de uma espécie de tv disfuncional para criar
seu próprio universo de imagens, uma versão delirante
e fantasmagórica do ponto de encontro da “realidade
televisiva”, que é um “meio”, mas não é um lugar
– ninguém vai à tv (como se vai ao cinema, por exemplo).
O não-lugar da massa televisiva está assegurado; nela,
o espaço deve deixar de existir, ou se dissolver no
tempo. O timecode desregrado (contando um tempo
que vai e volta, salta para frente e para trás quando
bem entende), que volta e meia aparece no monitor em
alguns de seus vídeos, mostra que não se trata de uma
arte da duração, uma arte de esculpir ou enformar o
tempo. Na televisão, as coisas não duram, apenas surgem
e desaparecem; não há uma medida estética do tempo,
assim como não há começo e fim – o tempo televisivo
é um tempo-total, incontável.
“O meio é o meio” é um dos refrões mais repetidos por
Paik. Sua televisão, portanto, é sem mensagem. NJP inventor
da contra-televisão?
DJ Paik
A tela é líquida e as formas são indeterminadas. Antes
de cores estagnadas e de figuras estáveis, NJP se utiliza
de formas, cores, figuras e tudo mais em um estado de
ondas e vibrações. Ele cria um diagrama luminoso do
som e do movimento, um gráfico modulatório. As figuras
não cabem em si mesmas, os únicos limites são as bordas
das telas/monitores (talvez nem isso). Suas ferramentas
são múltiplas: alteração de velocidade, imagem de trás
para frente, misturas as mais diversas, sobre-impressões,
chroma key. Se hoje o zapping é o que
faz o telespectador “administrar” o ambiente televisivo,
NJP acenou antes para uma intervenção direto-nas-formas,
e não apenas no jogo de livre associação da troca compulsiva
de canais. “Faça sua própria TV” tinha outro significado
em Nam June Paik.
Ele queria compor uma espécie de “música visual”. Em
Tiger Lives (1999), as notas que ele pressiona
no teclado vão causando alterações em um dispositivo
luminoso situado logo à frente. Cada vibração e cada
sonoridade correspondem a um comportamento da luz. A
música produz uma cor e vice-versa. Ao mesmo tempo,
a onda sonora que se propaga no ar remete ao próprio
uso que Paik faz dos mais diversos objetos visuais,
sejam eles oriundos da cultura pop, da arte vanguardista
ou da vivência cotidiana. Colocando as imagens produzidas
em qualquer parte do mundo dentro de um mesmo vagão
virtual, o universo-vídeo permitiu que ele construísse
uma rede com signos de diversos lugares e de diversas
culturas do mundo. Na cultura visual que o século XX
carregou ao auge, as imagens passaram a ser elétrons
soltos – Paik criou um campo para atraí-las. Uma vez
em sua posse, essas imagens estão sujeitas a todo tipo
de intervenção, alteração, remixagem, estilhaçamento.
O vídeo apareceu para ele não somente como uma nova
imagem, mas principalmente como uma possibilidade de
inventar novos dispositivos.
Together in electric dreams
O vídeo e o corpo se estranham; o vídeo distorce o corpo.
Mas, simultaneamente, o vídeo facilita a fusão e a hibridação
de corpos. NJP não oferece o vídeo ao corpo, mas ao
corpo + corpo, ou ao corpo + imagem. Já em Electronic
Moon No. 2 (1969), as silhuetas de um rosto, uma
mão e um seio feminino se fundem à “lua eletrônica”
(um outro tipo de rosto) como se fossem eclipses corpóreos.
Charlotte Moorman, por sua vez, toca um violoncelo formado
por três monitores de tv ligados e que mostram a imagem
dela mesma (Global Groove). A imagem de Charlotte
é reenviada a ela no corpo de um instrumento musical
que, como ocorre com todos os grandes músicos, nada
mais é que seu prolongamento.
Em contigüidade a essas operações que envolvem o corpo,
há uma dimensão arquitetural e ecológica na “televisão
experimental” de Paik. Seu projeto é intervir no espaço,
seja construindo pirâmides televisivas, seja instaurando
todo um ambiente eletrônico de proporções indeterminadas.
Como suas ambições com a transmissão via satélite demonstraram
(em Wrap Around the World, por exemplo, ele recebia
imagens de vários países, incluindo o Brasil, e as retransmitia
ao vivo), Paik sugeriu uma forma de colocar, nem que
fosse por alguns minutos, o mundo todo sob o mesmo céu
eletrônico, um céu que uniria as culturas, e que em
último caso seria sua versão pessoal para o sonho estético,
científico e político de dissolução das diferenças num
reino de energia luminosa, atualizando para a era do
vídeo o encanto de Jean Epstein com a emergência de
“um novo mundo elétrico”. Se um dia existir um planeta
iluminado por luas e sóis eletrônicos, Nam June Paik
terá sido seu criador.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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