MIXER = LIQUIDIFICADOR
 

Se alguma vez Nam June Paik tivesse sido informado que a palavra inglesa "mixer" (literalmente, misturador) tem um de seus significados traduzidos no português para "liquidificador", ele certamente teria se divertido muito. Porque, para ele, misturar imagens nunca quis dizer outra coisa além de fazer fluir, transformar toda espécie de imagens num corpo líquido que possibilitasse a comunicação livre entre quaisquer realidades distintas, juntar no mesmo jarro (um melting pot?) uma série de imagens interessantes e observar como elas se comportam juntas. "I invented abstract television", disse o coreano Paik em 1963, quando expôs uma série de aparelhos de televisão que exibiam formas onduladas, frutos de intervenção direta no sinal eletrônico de cada aparelho, sobre fundo negro ou sobre estática. Mal sabia ele que esse tipo de operação, substituindo o fluido e informe ao palpável e formado, seria o fio condutor de uma carreira como criador de imagens e propositor de experiências televisuais (os dois trabalhos têm objetivos semelhantes, mas são formalmente distintos) que têm como objetivo principal desvirtuar a televisão, com sua função mais costumeira de transmissor de conteúdos muito bem precisos e determinados (informações, notícias, programas, filmes), e transformá-la num laboratório ativo de abstrações e misturas. Uma imagem líquida.

Uma vez estabelecido o terreno ao longo da década de 60, Paik prepara-se para um projeto que, como aponta Jean-Paul Fargier num recente artigo de homenagem-obituário, é muito maior do que simplesmente ter criado a video-arte1. Mais do que simplesmente utilizar o suporte do vídeo para criações de imagens abstratas (no que Paik é mais um pioneiro do que propriamente um mestre), o que está em jogo é um projeto de televisão que leva em conta não só os aspectos formais das múltiplas possibilidades de se fazer imagens, mas principalmente o aspecto estratégico do que é uma transmissão televisiva, e das relações sociais e culturais que a televisão estabelece com seu público. Só assim conseguiremos entender a singularidade de programas (um termo mais apropriado que "filmes", certamente) como Global Groove (1973), um "zapping mundial" (ainda Fargier) que mixa trechos de dança com John Cage com Allen Ginsberg com comerciais orientais de Coca-Cola com chineses com índios etc. ou Good Morning, Mr. Orwell (1984), um programa que, na virada do ano, ligava simultaneamente três cidades do mundo, França, Estados Unidos e Alemanha, exercitando as possibidades de transmissão via satélite. Como não ver nos dançarinos que abrem Global Groove uma continuação direta das formas onduladas dos primeiros trabalhos em videotape, como não ver na possibilidade de uma comunicação ao vivo entre três cidades – não do ponto de vista informativo, mas expressivo – uma mesma preocupação com a fluidez e com a deformação dos contornos? Nesse sentido, abstract television ganha um sentido muito maior do que simplesmente compor imagens abstratas. Se Nam June Paik é um artista decisivo do século XX, não é por ter sido simplesmente alguém que abriu caminhos para a videoarte, mas por ter acreditado num ideal de televisão que fazia as imagens dançarem. Dançarem pela superfície da tela, misturando imagens formadas (os dançarinos) junto com as formas disformes criadas pelo dispositivo eletrônico, mas também dançar entre lugares diferentes, cortando de uma realidade (geográfica, conceitual, expressiva) para outra com a irreverência de uma criança abusada.

É uma obra cumulativa e auto-referencial. Pois a televisão de Paik não propõe apenas a criação de novos conteúdos, mas também a transmissão de outros que tenham a predileção do artista. Assim, quem passeia por sua obra volta e meia se depara com apresentações de Allen Ginsberg, entrevistas e execuções da obra de John Cage, depoimentos e trechos de peças do Living Theater, gravações de performances e happenings do próprio Paik ou danças de Merce Cunningham. É claro, são todos artistas que, de uma forma ou outra, mantêm certa afinidade de princípios com as obras de Paik (é sabido, por exemplo, que sua obra tem um ponto de partida numa reflexão de John Cage sobre o zen). Mas o decisivo aqui é que são todos conteúdos privilegiados que Paik fará, através de suas obras, comunicarem-se entre si, e com mais aquilo que estiver no cardápio. Como grande artista do remix, ele fará com que essas imagens ganhem novas significações em contato com as outras, e no limite fará com que as passagens de um momento para outro sejam mais importantes do que as imagens propriamente ditas. Nesse sentido, sua magnum opus, em parte pelo lugar estratégico que ocupa ao fim de sua carreira, em parte pelo acabamento e pela velocidade com que o fluxo de imagens nos atinge, é Tiger Lives (1999), espécie de pot-pourri esquizofrênico de toda sua carreira que, de certa forma, revela o bom filho tornando à casa (o tigre é um símbolo da Coréia e o trabalho foi o representante da Coréia no projeto Millennium Broadcast).

Se Tiger Lives é a obra-soma e Global Groove é a obra-suma, podemos ainda eleger seus programinhas compilados em Suite 212 como uma espécie de obra que abre as portas para a obra de Nam June Paik. Apresentado como um "caderno de esboços pessoal sobre a cidade de Nova York", os programas são fragmentos de várias imagens da cidade que são retorcidas, tremidas e por fim recoloridas e, assim, cooptadas para o mundo de Nam June Paik. Passamos claramente – de forma quase pedagógica, até – dos registros figurativos das ruas, carros, transeuntes, e em outro momento somos tomados por formas e cores tão instáveis quanto exuberantes, que atribuem sensualidade à imagem à medida que esfacelam as imagens já formadas e transformam a imagem num fluxo líquido que pode comunicar-se com qualquer coisa. Ao contrário do mundo material, estável, Nam June Paik nos propõe um mundo maleável, fugindo da lógica dos objetos individuados, imerso numa outra dinâmica, fluida, dos objetos semi e parcialmente constituídos. Um universo que facilita as misturas e permite a utopia da comunicabilidade plena entre todas as esferas de conhecimento, entre todos os campos da arte, entre todos os pontos do planeta. Nam June Paik nos faz ver diferente. Não é esse o maior elogio que se pode fazer a um artista?

Ruy Gardnier

1. Cahiers du Cinéma 610, p. 68, março de 2006

 











Imagens de Suite 212: uma anônima
com um prato de comida e Allen Ginsberg