Nota-se,
ao menos a partir de seus filmes realizados ao longo
da década de 1960, que Shohei Imamura ambiciona
em sua obra nesse período uma espécie
de mapeamento de vários aspectos sombrios da
sociedade e cultura japonesa, partindo de um rigor que
se aproxima da metodologia científica. Não
há como negar esse direcionamento autoral, que
se faz presente mesmo nos subtítulos que dá
a alguns dos filmes: A Mulher Inseto ou Tratado Entomológico
do Japão (1963), Os Pornógrafos
ou Uma Introdução à Antropologia
(1966). Estes se impõem como exemplos perfeitos
de filmes que quase nunca abrem mão de uma construção
dramática eficaz e envolvente, mas se definem
como atos de observação distanciada sobre
figuras e situações sociais marginais
do universo japonês contemporâneo a eles,
bastante diversa à promovida pelo cinema clássico
japonês dos anos 50, que trabalhavam com uma abordagem
de valores tradicionais familiares – vide toda a obra
de Yasujiro Ozu – ou na valorização de
um passado heróico – como Akira Kurosawa em seus
filmes de ação e samurais.
Se essa procura de um outro universo a ser retratado
já foi intensamente destacada como uma característica
marcante de um grupo de diretores do período
naquilo que se convencionou agrupar como "nouvelle
vague japonesa", em Shohei Imamura adquire,
pelo interesse observacional do diretor, características
bastante peculiares. É essa reprodução
do ponto de vista de quem acompanha os fatos com um
distanciamento que Imamura quase sempre busca ao posicionar
sua câmera. Ela normalmente se localiza externamente
à ação retratada, como quem a tudo
acompanha, mas evita formas concretas de intervenção.
Assim atos e personagens são geralmente apresentados
de modo isento, e mesmo que momentos de sua história
pregressa venham a ser apresentados como forma de entendimento
para suas ações, o diretor sabiamente
foge à tentação de incorrer na
armadilha de um determinismo reducionista que busque
no passado justificativas concretas para a totalidade
dos atos ou comportamentos presentes.
Com um crescimento do interesse pelo documental que
se manifestou a partir de fins da década de 60
e durante quase toda a totalidade dos anos 70, posteriormente
a Profundo Desejo dos Deuses (1968) Imamura abandona
a narrativa puramente – ou ao menos primordialmente
– ficcional. Só retorna a ela com o seminal Minha
Vingança decorridos 11 anos, com esse retorno
marcando também a retomada do estilo que já
caracterizava a observação científica
distanciada, porém com um maior depuramento desse
estilo e mesmo de uma abordagem temática. Voltando
aos filmes dos anos 60, esses eram concebidos numa quase
totalidade de planos e movimentos de câmera de
elaboração complexa, num virtuosismo que
poderia até vir a incomodar, o que não
ocorria simplesmente pelo fato de Imamura demonstrar
um domínio completo das técnicas de filmagens
e de suas próprias intenções autorais,
ou seja, sabia muito bem o que e por que estava fazendo.
Com Minha Vingança, Imamura prossegue
em seu processo de elaboração meticulosa,
mas os planos e seqüências surgem de forma
mais discreta, ou mesmo mais seca, ainda observando
personagens externamente – a câmera os acompanha
através de vidros de carros, ou junto à
entrada de portas – mas se movimentando de forma mais
suave, lembrando com freqüência uma captação
de imagens documentais, certamente tributária
à trajetória do cineasta durante a década
que antecedera este filme.
Minha Vingança tem início com uma
tomada aérea que acompanha uma caravana de carros
por uma estrada escura e sinuosa. Logo vamos descobrir
que se trata de uma operação policial
que acabara de levar a cabo a prisão de um criminoso.
Este, Iwao Enokizu (uma atuação genial
de Ken Ogata), apresenta-se como um ser que não
demonstra culpa ou remorso por seus atos, considerando
injusto o fato de sua prisão e conseqüente
condenação à pena capital o levariam
a se ver privado de uma vida e de fazer sexo com a pouca
idade de 38 anos. Sua frieza impressiona os policiais
e é, inicialmente, essa frieza que Imamura tenta
acompanhar e reproduzir ao filmar com o já citado
estilo semi-documental – utilizando-se de depoimentos
e legendas – os crimes que deram início á
perseguição de Iwao: o assassinato de
uma dupla responsável por um caminhão
de entregas, onde Iwao mata para roubar o dinheiro que
portavam.
Daí pra frente, Imamura coloca o espectador praticamente
na posição de policiais, que tentam descobrir
a razão que levou Iwao a seus crimes, como também
descortinar sua trajetória durante os meses decorridos
entre a morte dos entregadores e sua prisão.
É à medida que Iwao vai se revelando aos
policiais, assim como no contato destes com membros
da sua família (pai, esposa), que uma personalidade
misteriosa e multifacetada vai sendo explorada durante
2horas e 20 de projeção. Nessa narrativa,
vemos mais uma vez a aplicação, por parte
do diretor, e dessa vez talvez da forma que mais se
aproxima de uma perfeição na abordagem,
de uma objetividade e um distanciamento científico.
Dessa forma, procurando um entendimento da intrincada
personalidade de Iawo, temos o cineasta partindo do
personagem e estendendo sua visão a diversos
aspectos da sociedade japonesa, elegendo-os – personagens
e sociedade – como um objeto de estudo.
Mantendo seu foco, como nos filmes da década
de 60, em figuras tangenciais do universo social japonês,
vemos uma particularidade importante nas origens familiares
de Iwao, pertencente a uma minoria católica.
Temos então duas heranças de tradição
cultural que se interpolam ou se complementam agindo
fortemente sobre o protagonista: aos conceitos de "honra"
inerentes ao imaginário japonês, soma-se
a "culpa" eminentemete católica. Iwao,
a maior parte do tempo, aparenta, a partir de seus atos,
desprezá-los ou simplesmente ignorá-los.
Paralelamente se faz fundamental a comparação
de como os mesmos fatores "honra" e "culpa"
estariam presentes sobre seu pai e a esposa que Iwao
simplesmente ignora. Surge uma atração
entre sogro e nora cuja consumação não
se concretiza, por força das presenças
vivas, porém fantasmagóricas, do filho/marido
ausente e da esposa/sogra doente. Soma-se a isso a retomada
de uma figura emblemática na obra de Imamura,
a da mulher que ao mesmo templo é vitimada na
sociedade e transfere esse poder explorando outros indivíduos,
como a protagonista de A Mulher Inseto, em Haru,
misto de dona de pousada e cafetina com quem Iwao se
envolve, e que mantém intrincados laços
de dominadora/dominada com uma espécie de "protetor"
e com sua mãe idosa.
Imamura segue apresentando Iwao como um personagem a
ser estudado e descoberto, mas nunca por ele julgado
ou condenado. Mesmo toda a série de flashbacks
que se encadeia ao longo do filme não explica
totalmente as nuances de sua personalidade. Um deles
em especial, ainda na infância, apresenta um fato
chave na infância de Iwao, que determina algumas
razões para seu comportamento sociopata, mas
na verdade está longe de explicá-los em
sua complexidade, à moda da psicanálise.
Essa isenção toma seu ponto máximo
na impressionante seqüência na qual Iwao
e a mãe de Haru – que também tem em seu
passado a história de um assassinato cometido
– conversam sobre intenções assassinas
à beira de um rio, justamente quando ela percebe
que Iwao estava tentando matá-la.
O enigma chamado Iwao permanece um todo indecifrável
mesmo ao final do filme, quando após a execução,
pai e esposa lançam do topo de uma montanha de
forma agressiva e violenta os restos mortais do protagonista.
O corpo se foi, mas a presença parece se manter.
Se os diálogos já citados, entre Iwao
e a velha e entre Iwao e o pai, numa seqüência
próxima do final, sugerem apesar de tudo uma
intensa covardia do protagonista - "Você
não matou quem realmente desejava.", "Você
só consegue matar a quem não odeia."
- a linha que esclareceria os alvos da vingança
que aparece no título se mantém repleta
de lacunas. É dessa forma que vemos prevalecer
em Imamura o artista ao cientista. Se esse último
busca em sua investigação distante e meticulosa
explicações concretas que o levam a entender
e definir seu objeto de estudo, Imamura demonstra, ao
lhe serem cobradas conclusões definidas, fugir
de tais conclusões. Como grande artista cria
um universo com seu estilo peculiar. E mesmo que tal
estilo venha sob a forma de um estudo metódico,
deixa ao espectador o devido espaço para suas
observações particulares.
Gilberto Silva Jr.
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