MINHA VINGANÇA (1979)
Ciência e arte no cinema de Shohei Imamura

Nota-se, ao menos a partir de seus filmes realizados ao longo da década de 1960, que Shohei Imamura ambiciona em sua obra nesse período uma espécie de mapeamento de vários aspectos sombrios da sociedade e cultura japonesa, partindo de um rigor que se aproxima da metodologia científica. Não há como negar esse direcionamento autoral, que se faz presente mesmo nos subtítulos que dá a alguns dos filmes: A Mulher Inseto ou Tratado Entomológico do Japão (1963), Os Pornógrafos ou Uma Introdução à Antropologia (1966). Estes se impõem como exemplos perfeitos de filmes que quase nunca abrem mão de uma construção dramática eficaz e envolvente, mas se definem como atos de observação distanciada sobre figuras e situações sociais marginais do universo japonês contemporâneo a eles, bastante diversa à promovida pelo cinema clássico japonês dos anos 50, que trabalhavam com uma abordagem de valores tradicionais familiares – vide toda a obra de Yasujiro Ozu – ou na valorização de um passado heróico – como Akira Kurosawa em seus filmes de ação e samurais.

Se essa procura de um outro universo a ser retratado já foi intensamente destacada como uma característica marcante de um grupo de diretores do período naquilo que se convencionou agrupar como "nouvelle vague japonesa", em Shohei Imamura adquire, pelo interesse observacional do diretor, características bastante peculiares. É essa reprodução do ponto de vista de quem acompanha os fatos com um distanciamento que Imamura quase sempre busca ao posicionar sua câmera. Ela normalmente se localiza externamente à ação retratada, como quem a tudo acompanha, mas evita formas concretas de intervenção. Assim atos e personagens são geralmente apresentados de modo isento, e mesmo que momentos de sua história pregressa venham a ser apresentados como forma de entendimento para suas ações, o diretor sabiamente foge à tentação de incorrer na armadilha de um determinismo reducionista que busque no passado justificativas concretas para a totalidade dos atos ou comportamentos presentes.

Com um crescimento do interesse pelo documental que se manifestou a partir de fins da década de 60 e durante quase toda a totalidade dos anos 70, posteriormente a Profundo Desejo dos Deuses (1968) Imamura abandona a narrativa puramente – ou ao menos primordialmente – ficcional. Só retorna a ela com o seminal Minha Vingança decorridos 11 anos, com esse retorno marcando também a retomada do estilo que já caracterizava a observação científica distanciada, porém com um maior depuramento desse estilo e mesmo de uma abordagem temática. Voltando aos filmes dos anos 60, esses eram concebidos numa quase totalidade de planos e movimentos de câmera de elaboração complexa, num virtuosismo que poderia até vir a incomodar, o que não ocorria simplesmente pelo fato de Imamura demonstrar um domínio completo das técnicas de filmagens e de suas próprias intenções autorais, ou seja, sabia muito bem o que e por que estava fazendo. Com Minha Vingança, Imamura prossegue em seu processo de elaboração meticulosa, mas os planos e seqüências surgem de forma mais discreta, ou mesmo mais seca, ainda observando personagens externamente – a câmera os acompanha através de vidros de carros, ou junto à entrada de portas – mas se movimentando de forma mais suave, lembrando com freqüência uma captação de imagens documentais, certamente tributária à trajetória do cineasta durante a década que antecedera este filme.

Minha Vingança tem início com uma tomada aérea que acompanha uma caravana de carros por uma estrada escura e sinuosa. Logo vamos descobrir que se trata de uma operação policial que acabara de levar a cabo a prisão de um criminoso. Este, Iwao Enokizu (uma atuação genial de Ken Ogata), apresenta-se como um ser que não demonstra culpa ou remorso por seus atos, considerando injusto o fato de sua prisão e conseqüente condenação à pena capital o levariam a se ver privado de uma vida e de fazer sexo com a pouca idade de 38 anos. Sua frieza impressiona os policiais e é, inicialmente, essa frieza que Imamura tenta acompanhar e reproduzir ao filmar com o já citado estilo semi-documental – utilizando-se de depoimentos e legendas – os crimes que deram início á perseguição de Iwao: o assassinato de uma dupla responsável por um caminhão de entregas, onde Iwao mata para roubar o dinheiro que portavam.

Daí pra frente, Imamura coloca o espectador praticamente na posição de policiais, que tentam descobrir a razão que levou Iwao a seus crimes, como também descortinar sua trajetória durante os meses decorridos entre a morte dos entregadores e sua prisão. É à medida que Iwao vai se revelando aos policiais, assim como no contato destes com membros da sua família (pai, esposa), que uma personalidade misteriosa e multifacetada vai sendo explorada durante 2horas e 20 de projeção. Nessa narrativa, vemos mais uma vez a aplicação, por parte do diretor, e dessa vez talvez da forma que mais se aproxima de uma perfeição na abordagem, de uma objetividade e um distanciamento científico. Dessa forma, procurando um entendimento da intrincada personalidade de Iawo, temos o cineasta partindo do personagem e estendendo sua visão a diversos aspectos da sociedade japonesa, elegendo-os – personagens e sociedade – como um objeto de estudo.

Mantendo seu foco, como nos filmes da década de 60, em figuras tangenciais do universo social japonês, vemos uma particularidade importante nas origens familiares de Iwao, pertencente a uma minoria católica. Temos então duas heranças de tradição cultural que se interpolam ou se complementam agindo fortemente sobre o protagonista: aos conceitos de "honra" inerentes ao imaginário japonês, soma-se a "culpa" eminentemete católica. Iwao, a maior parte do tempo, aparenta, a partir de seus atos, desprezá-los ou simplesmente ignorá-los. Paralelamente se faz fundamental a comparação de como os mesmos fatores "honra" e "culpa" estariam presentes sobre seu pai e a esposa que Iwao simplesmente ignora. Surge uma atração entre sogro e nora cuja consumação não se concretiza, por força das presenças vivas, porém fantasmagóricas, do filho/marido ausente e da esposa/sogra doente. Soma-se a isso a retomada de uma figura emblemática na obra de Imamura, a da mulher que ao mesmo templo é vitimada na sociedade e transfere esse poder explorando outros indivíduos, como a protagonista de A Mulher Inseto, em Haru, misto de dona de pousada e cafetina com quem Iwao se envolve, e que mantém intrincados laços de dominadora/dominada com uma espécie de "protetor" e com sua mãe idosa.

Imamura segue apresentando Iwao como um personagem a ser estudado e descoberto, mas nunca por ele julgado ou condenado. Mesmo toda a série de flashbacks que se encadeia ao longo do filme não explica totalmente as nuances de sua personalidade. Um deles em especial, ainda na infância, apresenta um fato chave na infância de Iwao, que determina algumas razões para seu comportamento sociopata, mas na verdade está longe de explicá-los em sua complexidade, à moda da psicanálise. Essa isenção toma seu ponto máximo na impressionante seqüência na qual Iwao e a mãe de Haru – que também tem em seu passado a história de um assassinato cometido – conversam sobre intenções assassinas à beira de um rio, justamente quando ela percebe que Iwao estava tentando matá-la.

O enigma chamado Iwao permanece um todo indecifrável mesmo ao final do filme, quando após a execução, pai e esposa lançam do topo de uma montanha de forma agressiva e violenta os restos mortais do protagonista. O corpo se foi, mas a presença parece se manter. Se os diálogos já citados, entre Iwao e a velha e entre Iwao e o pai, numa seqüência próxima do final, sugerem apesar de tudo uma intensa covardia do protagonista - "Você não matou quem realmente desejava.", "Você só consegue matar a quem não odeia." - a linha que esclareceria os alvos da vingança que aparece no título se mantém repleta de lacunas. É dessa forma que vemos prevalecer em Imamura o artista ao cientista. Se esse último busca em sua investigação distante e meticulosa explicações concretas que o levam a entender e definir seu objeto de estudo, Imamura demonstra, ao lhe serem cobradas conclusões definidas, fugir de tais conclusões. Como grande artista cria um universo com seu estilo peculiar. E mesmo que tal estilo venha sob a forma de um estudo metódico, deixa ao espectador o devido espaço para suas observações particulares.


Gilberto Silva Jr.

 

 









Três momentos de Minha Vingança (1979)