No
episódio que dirigiu para o filme 11 de Setembro,
Shohei Imamura filma um ex-combatente de guerra (a Segunda
Guerra) que, na volta para seu vilarejo natal, não
fala, não anda, não convive entre os homens.
Seus hábitos viraram os de uma cobra: ele rasteja,
engole ratos inteiros e, se não for cercado,
desaparece para viver na natureza. Em seu último
filme, Imamura nos deu o último cruzamento entre
humano e animal numa carreira prolífica em imagens
desse tipo: enguias, peixes de aquário, lagartas,
porcos, insetos, toda sorte de animais é chamada
a testemunhar sobre a natureza do homem. Como Luis Buñuel
e Erich Von Stroheim antes dele (e Chabrol ao mesmo
tempo), Imamura sentiu desde cedo a necessidade de se
aproximar do homem tomado em situações
em que a vontade livre é uma pura especulação,
em que as determinações de criação
e as limitações de oportunidade revelam
comportamentos que, nada "animalescos" (no
sentido de que não pertencem às opções
e vivências de outros animais), colocam em evidência
aquilo que é humano, demasiado humano. Essa imagem
do humano, no entanto, não é algo muito
cômodo de confrontar: ela carrega o infame junto
com o sublime, o alto com o baixo, e faz piada com os
anseios do espírito. O humano de Imamura nada
tem a ver com a figura criada a partir de uma ligação
privilegiada com o divino (imagem e semelhança),
e o milagre não consiste em gestos nobres em
que o humano aproxima-se do deus por sua força
de vontade ou capacidade de perdão. O único
milagre possível no cinema de Imamura é
a sobrevivência. É isso que liga a família
do "segundo irmão" em Nianchan
(1959) às famílias de A Balada de Narayama
(1983) e Black Rain (1989), ou os destinos socio-psicóticos
semelhantes da protagonista de A Mulher Inseto
(1963) e o serial killer de Minha Vingança
(1979), ou ainda os esforços de auto-determinação
que povoam Desejo Profano (1964) e A Enguia
(1997). É como se, livre das miragens de
livre arbítrio surgidas do modo de vida das classes
privilegiadas metropolitanas, o ser humano reencontrasse
sua característica última: uma necessidade
cega de continuar seguindo adiante.
Essa busca desde cedo fez com que Imamura saísse
do centro para as margens, e situasse sempre seus filmes
em cidadezinhas e vilarejos com a vida pacata, uniforme,
e as índoles mesquinhas de seus habitantes, sempre
apoiados na reprodução quase que automática
dos costumes. Onde a subsistência é mais
difícil, os valores são mais vigiados
e as possibilidades de exercer a liberdade cada vez
mais difíceis. Essa paixão pela cidade
pequena como lugar privilegiado de observação
da natureza humana nasce no período em que Imamura
era apenas um estudante, e um professor de japonês
dizia que os meninos nascidos em cidades grandes (entre
os quais estava o jovem Shohei) seriam menos bem sucedidos
na vida, porque tudo era mais fácil para eles.
A partir daí, surgiu a fascinação
pela vida de interior: "As pessoas sempre me perguntam
como é que eu, nascido e criado na cidade, sempre
filmo temas do interior. Provavelmente porque acredito
que ali é mais fácil encontrar a verdade,
porque a vida é mais sofrida".1
Mas o que Imamura vai fazer com esse tipo específico
de vida sofrida pouco tem a ver com o tipo de abordagem
que um certo tipo de cinema humanista adora fazer sobre
estes personagens, como pobres anjos caídos que
têm direito à redenção por
motivos cristãos e sociais (de Loach a Dardennes).
Sua curiosidade pelo comportamento humano é tão
enorme que ele não se apressa em conferir ao
homem nenhum feitio particular ou traço definidor.
Sua ardorosa avidez não é pelos belos
sentimentos que unem o homem, mas por uma complexidade
que torna tudo indefinível. Num filme de Shohei
Imamura, o humor surge em meio ao drama e vice-versa,
lógicas improváveis nascem, e até
o crime pode ser libertador. Como exemplo máximo
da causalidade de seu cinema, está a protagonista
de Desejo Profano, Masumi, que só depois
de ser estuprada por um ladrão (e desenvolver
com ele uma espécie de relação
que nenhum adjetivo existente é capaz de definir)
começa a tomar controle de sua própria
vida e reivindicar respeito e poder na família.
Se Imamura não recobre com ternura o destino
de seus personagens, isso não quer dizer que
ele observe o desenvolvimento deles de forma cínica
e debochada. Existe em seu cinema, ao contrário,
uma forma muito estranha e poderosa de misturar densidade
psicológica com caricatura, considerando a situação
de seus personagens ora como única e fora dos
registros costumeiros (daí a sensação
de densidade), ora como recorrente e segundo padrões
reconhecíveis e repetitivos (daí a sensação
de caricatura). Do grave ao derrisório, vai-se
em um pulo: da maravilhosa e irreverente revolta/festa
popular até a repressão pelas forças
do suserano ao final de Eijanaika (1981) até
a passagem da escorregada no gelo da secretária
para a cena de duplo suicídio fracassado no túnel
em Desejo Profano, ou a passagem dos momentos
cômicos de A Balada de Narayama (1983),
geralmente envolvendo um agregado fedorento, aos momentos
de selvageria de uma família sendo enterrada
viva.
Os andamentos dos filmes de Imamura não se constróem
de forma harmônica e cadenciada, mas ao contrário
de forma metodicamente abrupta e dissonante, fazendo
com que o clima do filme se renda ao que está
para acontecer, e não o contrário. Pois
o verdadeiro interesse do artista está no acompanhamento,
na observação minuciosa de um processo
que se desenvolve de forma pouco previsível a
partir de certas coordenadas que são dadas: um
grupo de camponeses pobres no Japão feudal (A
Balada de Narayama), um grupo de amigos que realiza
filmes pornográficos (Os Pornógrafos,
1966), um bairro pobre afetado quando um grupo de jovens
yakuzas decide competir com os chefões do ramo
na criação e venda de porcos (Todos
Porcos, 1961). A determinação é
recíproca e a relação entre o meio
e o indivíduo funciona em mão dupla. Não
existe assimilação passiva nem gesto voluntarista:
a ação de um indivíduo (ou grupo
de indivíduos) pode criar um meio e determinar
respostas que terminam tendo a função
de cão que morde o próprio rabo: a filha
em A Mulher Inseto (1963) que ocupa o lugar da
mãe, ou o núcleo familiar do sr. Ogata
em Os Pornógrafos, que passa a desenvolver
comportamentos sexuais desviantes (sem que o filme,
é verdade, faça força em mostrar
nisso uma causalidade direta), culminando na obsessão
do próprio Ogata pela boneca sexual.
Nessa postura de acompanhamento assumida por Imamura
reside boa parte da singularidade de seu cinema. Por
ela, já se tentou chamá-lo de entomologista,
aproveitando a deixa do título A Mulher-Inseto.
Por ela, também, já se disse que muitos
de seus filmes são estudos de personagens (Desejo
Profano, Minha Vingança, A Enguia,
Dr. Akagi). Mas o que se perde nessas tentativas
de definição é a inclinação
particular e bem específica que Imamura dá
a suas narrativas e à forma de filmá-las.
Estudo, sim, mas um estudo de comportamento, mais aplicado
às condições de sobrevivência
a partir das condições e determinações
de um meio (ao contrário da construção
de ordem psicológica, que é o que se espera
de um "estudo de personagem"). Daí
o caráter de atitudes e decisões que se
realizam num mundo fechado, circunscrito pelas possibilidades
do meio, onde a metáfora do aquário de
Os Pornógrafos passa a fazer total sentido:
seus filmes podem ser vistos como verdadeiros tratados
de etologia, indagando sobre o inato, sobre o biologicamente
adquirido, sobre os limites entre decisões e
instintos, enfim, sobre os obscuros limiares entre as
atividades conscientes e os padrões da espécie.
Essa visada analítica acaba por criar uma visão
algo seca, talvez impiedosa, mas nada cínica
ou miserabilista a respeito da existência humana
(é bom não confundir Imamura com Lars
Von Trier). Há em Imamura uma extrema curiosidade
em testemunhar que o esforço vital vibra, insiste
e se expande mesmo nas condições mais
adversas. Prova disso é o final de Minha Vingança,
em que até as cinzas do assassino se recusam
a encontrar pouso final, ou o comovente esforço
dos personagens de Chuva Negra (1989) em permanecerem
vivos, mesmo expostos à radiação
da bomba atômica e com os dias contados. Por vezes,
é isolando-se ou criando fins improváveis,
quase estapafúrdios, que se revela a verdade
dessa insistência em existir: a fuga da cobra
em 11 de Setembro, o barquinho e o cogumelo-fígado
em Dr. Akagi, a casa-jangada em Os Pornógrafos,
a esperança do arco-íris em Chuva Negra,
ou o fogo que insiste em queimar em meio à neve
de A Balada de Narayama. Fazer equivaler o homem
aos outros animais não é de forma alguma
um jeito de menosprezar os personagens, mas uma maneira
de declarar uma intensa e original atenção
à vida.
Essa atenção varia conforme a época,
da mesma forma que o tratamento da câmera. Nos
anos 60, ela é virtuosa, intervencionista, conotativa.
Os posicionamentos de câmera, os travellings,
a duração dos planos criam observações
a respeito das situações e dos personagens.
A violência dos planos de Todos Porcos,
digna de um Samuel Fuller, remete à violência
da situação do pós-guerra japonês,
assim como o silêncio e a morosidade do começo
de Desejo Profano envolve e constrói a
introspecção da protagonista. Esse parti-pris
dá origem a planos magníficos, alguns
dos mais belos em todo o cinema (a imagem-aquário
tomada de cima e liquefeita de Os Pornógrafos,
a sensacional seqüência da estação
de trem ou a câmera rodando em posição
vertical em Desejo Profano). A partir do final
dos anos 70, com Minha Vingança e a "volta"
aos filmes de ficção, começa uma
outra postura, mais distanciada e denotativa, que simplesmente
observa e registra os acontecimentos e as ações
dos personagens. Nasce uma outra estética, de
maturidade, mais límpida, que persistirá
até seus últimos filmes. A serenidade
da forma faz casa a um sentimento de esperança
que se faz ligeiramente mais presente, ainda que a visão
de mundo permaneça constante: o homem é
um mistério, um mistério muito maior do
que desejariam os discursos que lhe prescrevem uma essência,
um mistério que brota da terra, de um passado
imemorial, da necessidade de sobreviver e de conviver,
de habitar, de comer, de satisfazer seus desejos, de
perserverar na existência. E nisso o homem é
um animal como outro qualquer.
Ruy Gardnier
1. Lúcia
Nagib, Em torno da nouvelle vague japonesa, Ed.
da Unicamp, Campinas, SP, 1993, p. 117.
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