O ETERNO RETORNO DE LINCOLN
Uma certa perspectiva do cinema americano

Quando o assunto é cinema americano, quase sempre há uma tendência da crítica – principalmente se ela é exercida fora dos EUA – a tomar por missão a tarefa de iluminar um subtexto (ou uma mensagem de fundo) que atravessaria certos filmes hollywoodianos supostamente destinados ao puro entretenimento. Essa tendência, sem dúvida, inclui os significados políticos que hoje prospectamos dos filmes de Spike Lee, John McTiernan, Joe Dante ou George Romero. Mas a história começa muito antes: basta pensar na série de textos coletivos de revisão do classicismo hollywoodiano nos Cahiers du Cinéma no início dos anos 70, ou na afirmação de Straub, mais ou menos na mesma época, de que o mais político dos cinemas era o western de John Ford. Os nomes citados podem sugerir que um certo grau de autorismo – em particular a aplicação da antiga teoria do autor a Hollywood, onde o autor seria aquele que consegue, através da mise en scène, criar uma escritura própria mesmo em meio às regras e às pressões do sistema, suplantando a roteirocracia e a estandardização das formas – se faz necessário para atingir a instância política, ou seja, que é apenas no cinema de traços autorais que o enunciado político pode ser garimpado. A idéia, contudo, é mais ampla e se aplica desde sempre: o cinema americano seria intrinsecamente político, no sentido de que a estrutura em si, seja ela negada ou apoiada, transgredida ou reforçada, determinaria uma forma política.

O assunto está mais em voga do que nunca: do 11 de setembro às contribuições estéticas que as séries televisivas recentemente apresentaram, uma diversa gama de fatores estimulou um retorno do político no cinema americano – sobretudo de gênero. Filmes como O Plano Perfeito, Marcas da Violência, Sob o Domínio do Mal (o remake de Jonathan Demme), Terra dos Mortos e Munique, todos devidamente conscientes dos códigos e das convenções de gênero que mobilizam cada um à sua maneira, provam-se essenciais quando se debatem as formas de enunciação política no cinema contemporâneo. Os filmes de gênero são então tomados como refúgios de ficções políticas. Cria-se, digamos assim, um método de radiografia de enunciados políticos no cinema fantástico, nas comédias, no thriller de ação ou de horror. Mas a interrogação que de cara se impõe é natural e simples: há mesmo um retorno/incremento do político no cinema americano? Em outras palavras: filmes políticos estão sendo feitos em maior quantidade nos grandes estúdios hollywoodianos ou o que voltou foi a tendência e o desejo de compreender os mesmos significados políticos de sempre? Ou essa é uma falsa questão?

Falemos de dois exemplos recentes – dois filmes propositalmente pinçados de um conjunto menos badalado e menos expressivo do que os títulos mais comuns em se tratando desse tipo de especulação cinema-política (o anti-bushismo e o trauma do 11 de setembro sendo os slogans-fetiche da crítica contemporânea diante dos filmes americanos). O primeiro é um filme que passou quase desapercebido pelo nosso circuito: A Caverna, primeiro filme que Bruce Hunt dirige de fato, ele que antes havia sido diretor de segunda e terceira unidade na trilogia Matrix. O filme apresenta uma trama bem básica e nada inovadora: um grupo de cientistas e pesquisadores explora as profundezas de uma caverna, atrás de descobertas valiosíssimas para a ciência, até que eles começam a ser atacados por criaturas desconhecidas. O desenvolvimento do enredo é o mais óbvio possível: embates com as criaturas dividem espaço com os embates internos ao grupo, morre a maior parte das pessoas, um herói e uma mocinha sobrevivem, e o desfecho bloqueia o happy end para afirmar a continuidade do Mal, que pisca o olho na última cena para dizer que retornará sempre, que é eterno. Mais um thriller de horror como outro qualquer, decerto – e com o adendo de ser mal conduzido dramaticamente (Hunt se atrapalha todo quando tenta mesclar diferentes velocidades de encenação) e precariamente administrado na construção de atmosfera e tensão.

Mas o cinema de gênero é e sempre foi isso: uma sucessão de filmes como outros quaisquer, o que não os impede de exibir singularidades e, volta e meia, surpreender com o novo, o corajoso, o genial. Se há um refúgio do político no cinema de gênero, ele deve ser procurado aí mesmo, nessa coisa qualquer. No caso de A Caverna, apesar de toda sua banalidade, a questão seria: e se paralelamente ao ideal-videogame que o filme apresenta, a exemplo de tantos outros filmes de ação contemporâneos (a caverna, aqui, sendo o lugar da imersão total, do espaço concebido no limite do virtual), ele respondesse à “monstruosidade” dos novos inimigos da América, que precisam ser caçados lá embaixo em seus esconderijos subterrâneos, como Osama e sua trupe, escondidos na caverna mas prontos a chegar à superfície e se misturar com as outras pessoas, imiscuir-se na massa de transeuntes que passeia pela cidade (como no plano final) para difundir o Mal à semelhança de um vírus que só será descoberto quando já for tarde demais?

O segundo exemplo é um filme mais interessante que A Caverna, e muito bem realizado por James Wong: Premonição 3, tranqüilamente o melhor da série, o mais inventivo e envolvente, o mais reflexivo também, mesmo que o final seja um pouco sem graça em comparação ao resto do filme, não tendo a mesma meticulosidade na decupagem. Com ótimas cenas de montagem por atração (as duas cápsulas de bronzeamento artificial cortando para os dois caixões, por exemplo) e escolhas fotográficas sempre curiosas, o filme como um todo traz um tom de apoteose macabra difícil de se manter durante 90 minutos. Mas James Wong consegue, não perde nunca o ritmo, tudo é instigante mesmo que o desfecho seja conhecido por qualquer um que já tenha visto um filme da série. As mortes de Premonição 3 ocorrem numa sucessão de gags de horror, à semelhança de um trem fantasma. O suspense não está na disputa entre os personagens e o destino, pois sabemos de antemão quem vai morrer e quando vai morrer (e até temos dicas de como vai morrer). O suspense está na forma como será filmada a morte, está na decupagem de Wong.

A composição das imagens e as relações que elas estabelecem entre si estão na verdade no centro do filme, que em dados momentos praticamente oferece uma aula de semiótica. A forma pela qual os jovens que estariam envolvidos no acidente antevisto pela protagonista (a queda do trem na montanha-russa) tentam compreender a “lógica” das mortes sucessivas é observando as fotografias que ela tirou no parque de diversões com sua máquina digital. Todas as mortes têm suas pistas dadas na imagem. As amigas que morrem torradas enquanto fazem bronzeamento artificial, por exemplo, apareciam numa foto junto a um cenário de praia artificial, e a foto estava meio velada. O rapaz que morre com a cabeça triturada pela ventoinha de um caminhão, por sua vez, estava numa foto com um ventilador apontado para sua nuca. Wendy, a menina que tem a premonição, chega a cogitar a hipótese de ser ela mesma, por uma espécie de maldição, quem precipita as mortes. Por quê? Em última análise, ela causaria as mortes por interpretar signos demais – antes mesmo da premonição, no início, ela já conferia as fotos de sua câmera digital e ficava intrigada com as associações bizarras entre os elementos da imagem. Interpretar signos, em Premonição 3, equivale a querer estar acima da morte – ou acima da experiência da vida. Prestes a embarcar na montanha-russa e se submeter a uma experiência nova para ela, correr o risco seja ele qual for, Wendy percebe os sinais da morte e arma uma confusão que acaba livrando uma meia-dúzia de pessoas do acidente. O pecado original dela é superinterpretar as circunstâncias antes mesmo de vivenciá-las. O fato de Wendy ser uma menina controladora, que gosta sempre de se manter no domínio das situações, é um dado crucial. Para controlar, ela precisa analisar as situações, enxergar o espaço como um texto a ser decifrado. O que se sacrifica ao fazer isso? A coisa em si, a experiência em si, que acaba sendo trocada por significações, análises, retórica. A uma adolescente que cresce escoltada pelo comodismo, pela facilidade de acesso às coisas (e aos significados pragmáticos das coisas), pelo hábito de programar a vida, enfim, a essa menina o filme confronta o destino, que ninguém controla ou decifra de fato. Como nos outros filmes da série, eles só ludibriam a morte até um certo ponto, pois cedo ou tarde ela vem cobrar a dívida.

Claro, tem aquela velha história de que Premonição tira o perigo que assombra os jovens americanos do terreno do inimigo que em algum momento aparece, o psico ou sociopata do slasher na linha Sexta-feira 13/Halloween, e coloca esse perigo a cargo de uma matemática insondável, algo superior, impalpável como as formas fantasmáticas do “novo mal”. E uma vez que o cinema americano tem sempre uma forma de inscrever seus códigos na sua História, o filme faz também um substancial retorno às assombrações do passado: Wendy mostra ao amigo que a última fotografia de Lincoln, tirada no dia de sua morte, possui um risco no local onde ele levaria o tiro. Lincoln retorna à cena, e retorna com ele um importante capítulo da história da crítica cinematográfica, aqui já mencionado no primeiro parágrafo.

No texto que inicia a série de estudos dos Cahiers du Cinéma sobre “um certo número de filmes clássicos”, a obra analisada é Young Mr. Lincoln, de John Ford. Esse texto, publicado em agosto/setembro de 1970, inaugura um dispositivo crítico destinado ao processo de reavaliação de alguns filmes clássico-narrativos a partir de uma leitura ativa (leitura não mecanicista, nem presa a um ou outro programa ideológico, mas sim dinâmica e transversal, consciente da determinação histórica de sua prática e de seu objeto-pretexto). Os filmes seriam interrogados na historicidade de sua inscrição, na relação que tinham com os outros filmes, com o estado das coisas ao seu redor, com os códigos (sociais, culturais, artísticos) dos quais representariam o local de cruzamento. O método consistia em redobrar a escritura do filme por uma leitura que faria aparecer o que já-estava-lá-porém-silenciosamente, em engajar a própria leitura no devir-texto do filme, em perscrutar nos filmes aquilo que eles “diziam ao não dizer”, salientar suas falhas constitutivas, que não eram nem defeito da obra (pelo contrário, seu grande trunfo) nem armadilha do autor, mas antes as famosas ausências estruturantes, a partir das quais os discursos se efetuavam para valer, o não-dito sendo incluído no dito e necessário à sua constituição. Com uma espécie de indiferença absoluta à recepção de seus efeitos estilísticos, John Ford praticaria em Young Mr. Lincoln, segundo a conclusão de Jean-Pierre Oudart, uma “perversão escritural”, subvertendo a “superfície falsamente tranqüila do texto” através do próprio laconismo da encenação, seu jogo de mostrar não mostrando – na brilhante cena do assassinato, Ford transforma tanto os personagens do filme como os espectadores em “míopes”.

É bastante irônico que Lincoln encontre caminho nos devaneios semióticos da Wendy de Premonição 3, logo ele que foi o centro de um filme abordado em um dos trabalhos fundadores da onda de interpretação textual que se alastraria pela crítica e pela teoria de cinema ao longo dos anos 70 – e, embora a inflação de suas funções ainda cause muito problema, as ferramentas de análise ali propostas são das mais úteis, evidentemente. Nas entrelinhas de Young Mr. Lincoln, os Cahiers encontraram um projeto idealista em cujo recalcamento da política, em prol de uma Moral superior a toda prática histórica, estavam os próprios pressupostos políticos do filme – ou seja, a política se fazia na sua negação mesma. Os anos de formação e aprendizado do protagonista, dentro de uma conhecida estrutura clássica, trazem no filme os signos premonitórios da trajetória posterior, desde a unificação da nação à morte trágica – Lincoln, o predestinado. O filme efetuaria um trabalho de naturalização do mito lincolniano: de uma parte, trabalhando por justaposição e sucessão “naturais” de eventos, como se eles não fossem regidos por nenhum determinismo e não fossem dirigidos a um fim necessário; da outra parte, trabalhando as cenas em que deve se efetuar uma escolha crucial para o personagem como se os dados não estivessem já lançados, Lincoln não tivesse já entrado na História, e como se cada uma de suas decisões se arriscasse no instante, no presente. A narrativa progride sobre o binômio acaso-predestinação por meio de uma estrutura aparentemente digressiva, distraída quanto ao fato de que o espectador conhece o destino de Lincoln. A História aparece como desenvolvimento contínuo e linear de um germe preexistente, quase uma noção biológica da História. Dentro dessa lógica, Lincoln trava no filme o primeiro contato com a Lei – sentado à beira de um lago, em intimidade com a natureza – lendo um livro segundo o qual “todas as formas de Leis (tanto a lei de gravitação como as que regem a sociedade) resultam de uma Lei natural que não é outra senão aquela de Deus”. Como Tag Gallagher disse num texto recente sobre o filme, “a magia de saber o que é certo e o que é errado habita o ar e passa para Lincoln através de rios, árvores e livros”.

Para além da citação de um trauma inaugural consoante com o papel do Destino (a foto de Lincoln lembra aos personagens de Premonição 3 que a própria história da América é marcada por essa intervenção obscura e conspiratória), a sucessão natural dos eventos, a anulação das fronteiras entre a coerência do enredo e os efeitos sensíveis do espetáculo, assim como a habilidade narrativa de negociar com o presente um evento do passado ou cuja inexorabilidade já foi anunciada ao espectador, são também aspectos que “ligam” Young Mr. Lincoln ao filme de James Wong. Nada de tese ou discurso esquemático: Premonição 3 consegue se impor sem a necessidade de uma ferramenta de legitimação do filme que esteja fora da presença bruta dos fatos, o valor de espetáculo não sendo apenas um meio mas sim uma sobreposição de estratégia e objetivos. Os sentidos se infiltram no filme, estão lá para quem quiser fazer essas “leituras no vazio” que os Cahiers tanto incentivaram três décadas atrás. Por mais que colecionemos uma série de interpretações sobre o filme, não há nada que o torne uma tese enfadonha. Premonição 3 é infinitamente bem resolvido como entretenimento – e não é “mais espetáculo” ou “menos arte” que qualquer trabalho de um Costa-Gavras (que é um grande oportunista no seu modo de assimilar os efeitos de persuasão emotiva do cinema de gênero) ou mesmo de cineastas como os irmãos Dardenne, que disfarçam os fins programados sob a urgência do registro, acrescendo aos planos um componente enérgico, uma musculação da câmera, sempre com o amparo dos “bons sentimentos”, ou da índole “humanista”.

No cinema da “transparência” da representação e da clareza da narração linear, no cinema da montagem “invisível”, dos grandes estúdios e da variedade de gêneros, matéria ficcional e efeito sensível se equivalem de maneira singular. O cinema clássico-narrativo hollywoodiano soube ser forte justamente onde havia a principal desconexão da experiência comunista, que era o divórcio entre as práticas sociais vivenciadas e seu sentido histórico (ou entre o sensível e o inteligível das lutas, como diria Jacques Rancière). É no cinema americano, mais do que em qualquer outro, que a instância infrapolítica do cotidiano se articula inelutavelmente com a esfera coletiva, cada ação, mesmo que aparentemente isolada, participando do destino da comunidade e, em último caso, da civilização como um todo (Intolerância, por exemplo). E se é verdade que essa ordem civilizatória comporta um oceano de contradições internas, é verdade ainda maior o fato de que a ficção encarregada de representá-la de dentro é aquela que mais se diverte com seus paradoxos constitutivos, absorvendo-os numa genealogia da concórdia não raro calcada na eliminação violenta do Outro. Mal ou bem, o cinema americano sempre alcança o enraizamento vitalista de suas questões políticas e históricas, inscrevendo-as como necessidades do corpo e da terra, antes de começar a falar do homem e do território.

Alguém já disse, não lembro quem, que os filmes americanos nunca falam sobre nada, e esse é seu segredo. Um boa parte do “cinema de arte” (europeu ou não) que circula pelas salas-bistrô, no entanto, quando sente urgência em falar alguma coisa faz isso de uma forma tal que retira o filme da evidência sensível das imagens, da trama feita de corpos em movimento, e transforma tudo em discurso, faz valer o texto que paira sobre o filme e do qual os personagens são os poros de acesso, os mediadores desse discurso para o espectador. O cinema americano de grande público, diferentemente, consegue tratar de seus temas sem falar deles sequer um segundo. O discurso se dilui nas ações, no sentimento de proximidade com os personagens, no puro prazer de ver a escrita luminosa do movimento. A imagem funciona como um receptáculo cego, ela “significa” na sua ignorância mesma. A função significante consegue se passar por ligação instintiva entre imagens. Isso só mesmo num cinema tencionado por mitologias aferentes, pela idéia de coletivo, de um ser-americano profundo: no limite do absurdo, as imagens promovem o retorno de algo além das intenções do cineasta; elas atualizam um imaginário coletivo. Potência narrativa, e não poder (a potência é afetiva, o poder é discursivo).

Filmes de artesãos “anônimos” como James Wong (embora ele tenha lá seus admiradores da época de Arquivo X) e Bruce Hunt reafirmam a força desse cinema tanto quanto o gênio de artistas como Shyamalan e Gus Van Sant. É, mais uma vez, a crença na imagem enquanto moldura suficientemente autônoma; o diretor não precisa ser mais que um agenciador de forças “anteriores” ao filme – um saber-fazer coletivista de todo coerente com as fundações mitológicas da história do cinema americano. As imagens, mesmo inconscientemente, acolhem uma história estética em seu seio, atualizam suas heranças, participam da permanência de uma forma-matriz no decurso de toda revolução de sensibilidades e materiais. A política, por conseguinte, passa a ser igualmente constitutiva de um pensamento geral, funcionando intrinsecamente nas narrativas. Cada filme é político sem o ser, porque ele é antes de tudo um espetáculo, e não uma reivindicação (o que faria dele a expressão automática de uma ideologia). Um cinema inevitavelmente político a partir do momento em que a própria história americana nasceu tarde demais, e foi construída direto no primado já não mais da escrita e sim da imagem e da representação. Seus dois ou três textos fundadores (a declaração de independência à frente dos outros) possuem o respaldo e o valor de farol que uma escrita acaba adquirindo em meio a uma cultura em que ela é exceção, uma cultura que antepõe a ação às letras. É uma história já elaborada à imagem do mito, e na qual o político passa necessariamente pela ação – a experiência sobrepuja o resultado. O cinema americano nasceu político porque nasceu fincado sobre os mesmos mitos fundadores da sociedade. E porque se reconheceu como arte de um povo, expressão imediata de sua visão.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 









Wendy interpreta imagens em Premonição 3


"Abe" estuda a Lei de cabeça para baixo (Young Mr. Lincoln)