Quando foi
lançado em 1957, Rio Zona Norte experimentou
fracasso de público e de crítica. Os críticos que o condenaram
- entre
eles, Alex Viany e Paulo Emílio Salles Gomes - apontaram
uma espécie de involução
no estilo do jovem cineasta que iniciara a carreira de
forma impactante e polêmica com Rio, 40 Graus (1955). A novidade apresentada
pelo filme de estréia, consubstanciada numa abordagem
direta e realista, ainda que irregular, da ambiência popular
e na busca por um cinema feito nas ruas e nas favelas,
no qual o personagem central era a própria cidade do Rio
de Janeiro, dava lugar, em Rio
Zona Norte, ao recorte melodramático no tratamento
da intriga, aos recursos de roteiro e montagem típicos
do cinema convencional hollywoodiano (como o uso do flash-back)
e a um desequilíbrio na condução da mise-en-scène,
ora pendendo para um realismo difuso, ora lançando mão
de recursos expressionistas. Os famosos pressupostos
neo-realistas, sempre proclamados a propósito de Rio
40 Graus, não encontravam em Rio
Zona Norte uma tradução à altura. O segundo longa-metragem
de Nelson Pereira dos Santos decepcionou os que enxergaram
em Rio 40 Graus
o início de um cinema realista brasileiro talvez comparável
à escola neo-realista italiana.
O processo de revalorização de Rio Zona Norte se dá com a produção crítica/ensaística
do cinema novo, já nos anos 1960, notadamente a partir
das análises de Glauber Rocha reunidas e publicadas em
Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963). Anos mais tarde, o filme
será francamente elogiado num artigo escrito por David
E. Neves e publicado no número 28 da revista Filme
Cultura, em fevereiro de 1978, no qual o crítico e
cineasta define Rio Zona Norte como “um dos filmes mais
inspirados” de Nelson Pereira dos Santos. Buscando valorizar
os diversos recursos de mise-en-scène,
Glauber comparará Nelson Pereira a Luchino Visconti; David
Neves, por sua vez, destacará a estrutura do roteiro (escrito
por NPS), louvada justamente por fazer uso expressivo
de recursos como o flash-back.
Um “filme
menor” acaba por se tornar, anos mais tarde, uma “obra-prima”.
Esta é uma trajetória até certo ponto comum a filmes que,
em seu tempo, não são devidamente compreendidos por não
apresentarem à crítica e ao público o que estes esperam
assistir. Visto hoje, Rio Zona Norte assume um outro valor, diferente
de quase todas as preocupações não só dos críticos que
o rejeitaram em 1957, mas também dos que o revalorizaram
nos anos 1960 e 1970. Não é mais o caso de situá-lo entre
os filmes “maiores” ou “menores” de um cineasta consagrado
como Nelson Pereira dos Santos. Diante de Rio Zona Norte, estamos conscientes de que se trata de um filme que
adquiriu importância histórica indiscutível. Não nos incomodamos
com o fato de que seu realizador introduz, contraditoriamente,
uma estrutura em flash-back no interior de uma narrativa
que se pretendia neo-realista, justamente porque tais
questões - fidelidade
ou não aos conceitos teóricos do neo-realismo - não
são vivenciadas de forma acalorada e imediata pelo espectador
de hoje. O que antes era visto como oscilação de estilo
do jovem cineasta é hoje nosso ponto maior de interesse.
Acompanhar tal oscilação é algo muito mais revelador do
que cobrar e vigiar uma virtual coerência e fidelidade
a sabe-se lá que escola ou proposta teórica.
Rio Zona Norte é, portanto, um filme protegido
pelo tempo. Aquilo que entre nós é extremamente difícil
do ponto de vista material - preservar
um filme brasileiro da ação predatória dos anos - é sempre
possível no âmbito dos discursos ideológicos que são
a base da historiografia do cinema brasileiro. Nesse
segundo aspecto, Rio Zona Norte teve o tempo como aliado.
Um “filme clássico” naturalmente
intimida certas considerações. Nem por isso, deve ser
visto como obra intocável, como peça de museu a exigir
apenas sóbria contemplação respeitosa. Felizmente, Rio
Zona Norte possui a graça necessária que resiste a
tal postura. Talvez, passados os seus quase 50 anos de
existência, a palavra que melhor traduza a sensação que
sentimos ao assisti-lo seja encantamento.
Há encantamento de sobra na magistral interpretação de
Grande Otelo como o sambista Espírito da Luz Soares, nas
músicas de Zé Keti e Vargas Júnior, nas cenas em interior
que buscam retratar o tempo interno das ações cotidianas,
nas cenas rodadas na rua e na beira dos trilhos do trem
de subúrbio, na participação de Ângela Maria como ela
mesma, na cadência da antiga batida do samba de terreiro,
na partitura musical de Alexandre e Radamés Gnatalli,
na ambientação da rádio, no tom coloquial dos diálogos,
no uso dos recursos narrativos clássicos, na iluminação
e nos enquadramentos de Hélio Silva, na figura de alguns
dos atores-mirins. E todos esses belos momentos se tornam
ainda mais significativos quando pensamos em Rio Zona Norte num contexto mais amplo
da história do cinema brasileiro.
Nesse
sentido, deve-se destacar a lucidez da proposta de Nelson
Pereira dos Santos. Rio Zona Norte é uma obra que busca dialogar com diversos estilos
característicos do cinema que se fazia aqui, nos anos
1950. Por esta razão, reafirma e antecipa questões e tratamentos estéticos. O que era considerado oscilação
de estilo pode ser visto então como estratégia típica
de uma obra que percebia uma guinada nos estatutos de
roteiro e de mise-en-scène no cinema brasileiro. Não só acusava tal guinada como
efetivamente a assumia. Por esta razão, verifica-se
o uso de procedimentos de melodrama e de chanchada e,
ao mesmo tempo, a busca pelo realismo em certos momentos
da narrativa. Rio
Zona Norte é um herdeiro direto das produções da
Atlântida, sobretudo dos filmes “sérios”, que buscavam
tematizar questões sociais. Rio,
Zona Norte aproxima Nelson Pereira do José Carlos
Burle e do Alinor Azevedo de Também
Somos Irmãos (J. C. Burle, 1949), até por também
aproveitar-se do ambiente da favela e por trabalhar
com Grande Otelo numa chave dramática de interpretação.
A
localização da trama no universo das rádios e a figura
central do sambista Espírito, isto é, de um compositor
popular inédito, também liga Rio
Zona Norte às chanchadas e ao cinema de Alex Viany,
Moacyr Fenelon, Burle e Alinor. Tal filiação indica
que Nelson Pereira dos Santos buscava realizar um filme
atraente para o público e para os exibidores, unindo
suas intenções dramáticas à estratégia dos filmes musicais
comerciais então dominantes. Uma aventura como Rio
40 Graus não poderia ser repetida. Tratava-se, isso
sim, de garantir a continuidade da carreira de cineasta.
O exemplo dos veteranos da Atlântida estava aí justamente
para ser retomado e retrabalhado.
Ao
mesmo tempo, ao contrapor dois universos bastante demarcados,
isto é, o de Espírito da Luz, sambista inédito e morador
de uma favela, e o de Moacir (Paulo Goulart), um músico
de classe-média da Zona Sul carioca que vai ao subúrbio
para tomar contato com a cultura popular e acaba fascinado com o talento
de Espírito, Nelson Pereira dos Santos vai estabelecer
numa sub-trama a principal discussão que será travada
no âmbito cultural e artístico brasileiro dos anos 1960,
entre uma cultura erudita e de vanguarda com pretensões
revolucionárias e a cultura popular tradicional, que
seria, por isso mesmo, “autêntica”. Em resumo, trata-se
do próprio dilema cinemanovista. O significativo é que
a visão que Nelson Pereira imprimirá, ainda em 1957,
será bastante pessimista, o que confere ao filme um
tom premonitório (aliás, resgatado recentemente por
Lúcia Murat num dos segmentos narrativos de Quase Dois Irmãos, de 2004). Talvez esse
pessimismo tenha sido um dos responsáveis pelo insucesso
do filme na época de seu lançamento; contudo, permanece
como seu aspecto mais lúcido.
O
confronto entre a cultura erudita e a cultura popular
não era novo. Pelo contrário: a chanchada inúmeras vezes
o tematizou. O aspecto diferencial de Rio
Zona Norte se dá na forma como esse confronto se
internaliza no próprio filme. Desde o princípio somos
colocados diante de uma situação trágica: Espírito caiu
do trem e está moribundo. O drama não se localiza em
sua possível recuperação. Nelson Pereira dos Santos
nos apresenta um herói que agoniza, e o corpo do sambista
à beira dos trilhos tem o valor de uma metáfora bastante
cruel. Diante da fatalidade é possível fazer muito pouco,
a não ser constatar que algo ali está se perdendo - uma tradição, uma criação
artística, uma obra. Cabe então aos representantes da
elite cultural resgatar esse patrimônio popular, pois
ele está à beira do desaparecimento. Mas o que dizer
do músico Moacir, que no filme seria tal “representante”?
O sentimento que parece dominá-lo é o da preguiça diante
do mundo. Donde se conclui que o trágico em Rio
Zona Norte não é tanto o acidente com Espírito da
Luz, mas a constatação algo ameaçadora de que o reconhecimento
de sua obra só se dará se ela cair eventualmente nas
mãos de um Moacir, ou seja, nas mãos da classe-média.
Assim, Rio Zona Norte pode ser visto não propriamente como um filme sobre
um sambista favelado, mas também como uma espécie de
documentário sobre o drama de um jovem artista intelectual
(Nelson Pereira) diante do problema central com o qual
se defrontava: como lidar com a missão outorgada a si
próprio de difundir e de instituir no cinema brasileiro
uma arte nacional-popular?
Em Rio
40 Graus Nelson Pereira ambicionava fazer um painel
da realidade carioca. Nos letreiros de apresentação,
ouve-se a música de Zé Keti que diz “Eu sou o samba/
A voz do morro sou eu mesmo, sim senhor”. Em Rio Zona Norte Nelson procura ocupar-se apenas com o dono dessa voz
- e com os sanguessugas que estão ao seu redor. Por ter
sido sincero em sua abordagem, Nelson Pereira realizou
um filme um tanto sombrio, o que não deixava de ser
fruto de certa maturidade: olhar para um só personagem
havia se revelado, enfim, uma tarefa muito mais complexa
e necessária do que dar conta de toda uma cidade.
Luís Alberto Rocha Melo
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