Você
é uma rã?
O Enigma de Kaspar Hauser forma com Stroszek
(1977) uma espécie de documentário em
duas partes da tentativa de Werner Herzog entender (para
eventualmente absorver) a figura singular de Bruno S.,
seu protagonista. A fonte para o filme de 1974 é
um fato real acontecido na Alemanha de 1820, que entrou
para a História como paradigma sociológico
da aculturação. Que esse acontecimento
tenha tornado o Kaspar Hauser original um marco não
significa, no entanto, que ele seja uma exceção.
Sua existência tão pronunciada é
o que mais assegura que outros como ele sempre estiveram
por aí. Não exatamente trancafiados por
mais de trinta anos, não propriamente ignorantes
da existência de uma humanidade, não necessariamente
grandes bebês que não sabem andar, falar
ou comer decentemente. O que interessa à Herzog
não é a mitologia criada em torno de Kaspar
Hauser, mas ao contrário, aquilo que ele tem
de mais relacionável, que diferenciava sua experiência
de uma mera adaptação ao mundo para uma
aproximação frontal e direta da mecânica
que rege uma vida que não era a vida de antes.
Bruno S., internado desde os três anos de idade
numa instituição para doentes mentais
sem no entanto sê-lo, e que por volta dos trinta
anos havia sido diagnosticado como esquizofrênico
por conta dos traumas do cárcere de uma vida
inteira, era um artista de rua quando foi descoberto
e escalado por Herzog para interpretar o protagonista
de seu filme o único papel que ainda não
tinha dono, dada a dificuldade imaginada pelo diretor
que um ator "normal" teria para dar alguma
veracidade ao personagem. São famosas as anedotas
de set dos dois filmes estrelados por Bruno S. (os únicos
de sua efêmera carreira no cinema), em que o ator
fazia longas palestras caóticas e desconexas
para uma equipe que era obrigada pelo diretor a prestar
atenção em cada palavra, ou mesmo quando
simplesmente precisava gritar por vários minutos
antes de iniciar uma cena. Herzog conta que a postura
de Bruno S. nas gravações era sempre a
de alguém que desconfia de todo aquele circo,
não só o circo do cinema, mas o circo
da própria existência humana na coletividade.
Daí que a opção de Herzog por Bruno
S. talvez tenha se devido muito pouco à seu passado
enclausurado e as complicações vindas
dele, e muito mais àquilo que se exibia diante
do diretor numa rua alemã qualquer (e que se
exibe diante dos espectadores nas duas obras-primas
que protagoniza), essa sensação incomum
de estar frente à algo tão reconhecível
quanto tão completamente estranho e misterioso.
Se Bruno S. não é o outsider absoluto
que Kaspar Hauser foi, ao menos divide com ele uma característica
fundamental para Herzog e para toda uma cinematografia
que o diretor construiria dali para frente: ambos são
símbolos máximos da explosão de
uma faceta do mundo que nos é familiar, visível,
e mesmo tangível, mas cujos sentidos íntimos
nos escapam completamente.
Homem, como nós, com pernas, nariz, olhos, que
depende da respiração para viver, que
precisa se alimentar regularmente mas ainda assim,
que homem é esse? E se a aparência é
idêntica, mas todo o resto nega a proximidade,
será que ainda é homem? Kaspar Hauser
cumprirá um duplo trajeto dentro do filme, seqüência
natural de entronização dos valores que,
acredita a sociedade que o acolhe, fazem do bicho humano
um homem. Passará pela religião, mas desafia
os clérigos quando resiste à aceitação
do mistério da fé: diz que precisa primeiro
aprender a ler e a escrever para depois entender o resto.
Kaspar desconhece a idéia de um Deus como força
superior, e ao pedir primeiro o conhecimento terreno,
enquadra essa elevação divina como apenas
mais um desdobramento da inteligência humana.
Chega à lógica, e não entende como
ela pode ser uma só, quando o mundo novo do qual
começa a tomar parte mostra-se tão múltiplo;
se a lógica, ciência do conhecimento absoluto,
não compreende nem mesmo uma pequena rã
(numa das grandes cenas do filme), talvez não
haja nela nada de tão absoluto assim. O último
estágio de aculturação se dará
tristemente depois de sua morte. A ciência o esquarteja,
fígado demasiado largo, cerebelo superdesenvolvido,
lado esquerdo do cérebro atrofiado Kaspar parece
finalmente ter sido desvendado, compreendido e dominado.
Não há tradução mais perfeita
da completa ignorância em que permanecemos diante
desta figura que a alegria incontida do velho escrivão
que comemora a resolução do protocolo
aberto para o caso Kaspar Hauser, um protocolo perfeito,
bonito, mas absolutamente irrelevante quando colocado
ao lado da memória e das marcas deixadas por
aquele que agora está exposto na frieza de um
necrotério. É na relação
com essas três grandes áreas da experiência
humana (religião, lógica e ciência)
que Herzog mostra a fragilidade de suas verdades quando
postas à prova diante de alguém que não
foi educado para aceitá-las como tal. Somente
uma quarta área, livre da obrigação
doutrinária, com menos mandamentos e mais afetividades,
terreno privilegiado do instinto e do inconsciente,
poderá receber Kaspar com a inteireza que ele
merece.
Paralelo a este trajeto prático de aculturação
corre um outro, mais livre e talvez por isso mais efetivo
na promoção de um elo entre Kaspar Hauser
e o mundo que pela primeira vez o cerca. É na
arte que ele encontra um correspondente fiel às
suas próprias perguntas diante do enigma da vida
humana, e é com ela que O Enigma de Kaspar
Hauser abraça seu protagonista. O título
original do filme significa algo como "cada um
por si e Deus contra todos". Falta, no entanto,
um complemento a esta frase tão pessimista: cada
um por si, Deus contra todos, e Herzog por Kaspar e
Bruno S., contra si mesmo e contra tudo o que vier.
A relação é recíproca: Herzog
garante à seu personagem central um sem-número
de pequenos momentos de uma amorosa singeleza, e Kaspar
devolve para o filme algumas das maiores seqüências
do filme, justamente aquelas em que a película
é impregnada dessa nova possibilidade que ele
descobre na expressão artística. Depois
de ser acossado por dezenas de curiosos, que fazem troça
de sua persona, Kaspar tem um momento de sossego na
cela em que foi novamente encarcerado pelas autoridades
locais, e atentamente segue as lições
que os filhos de seu tutor lhe dão sobre versinhos
infantis rimados. Mais adiante, chora emocionado pela
primeira vez ao ninar um bebê no colo essa cena
se repetirá em Stroszek, de maneira muito
mais pungente, quando um médico amigo do personagem
de Bruno S. o levará até um recém-nascido
prematuro, que com suas mãozinhas frágeis
se agarra bravamente nos dedos de ambos, demonstrando
uma força de humanidade que transcende a necessidade
de aceitação de valores, e que traçará
definitivamente a opinião de Herzog sobre Bruno
como não o depositário de uma "humanidade
essencial", mas como o sinal de esperança
para a recuperação de uma outra ordem
de valores. À essa atitude acolhedora (uma exceção,
se pensarmos no princípio do caos que rege a
obra de Herzog), Kaspar e Bruno S. respondem com seqüências
oníricas que atestam a entrada de ambos no mundo
não pela via pragmática, mas pela correspondência
de emoções. Só é possível
sonhar a partir do testemunho da existência mundana,
mas uma vez testemunhada, podemos embarcar numa viagem
sem limites por aquilo que nossa vontade de experiência
desejar e talvez seja esse o grande elo entre Werner
Herzog e Bruno S., esta mesma disposição
de experimentar a vida sempre de peito aberto.
Rodrigo de Oliveira
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