O
Rio Sagrado é um filme que reflete um momento único,
não somente na obra de Jean Renoir, mas também num panorama
histórico. Com o fim da 2ª Guerra, soldados e exilados
retornam aos seus lares, suas pátrias. Após emigrar
para os EUA, Renoir trabalha durante a década de 40
em Hollywood, onde, como tantos outros cineastas, teve
que submeter sua individualidade cinematográfica ao
sistema de produção dos estúdios. Isso parece ter transmitido
ao mestre, que vinha de uma sucessão de filmes excepcionais
no período imediatamente anterior à guerra (A Grande
Ilusão e A Regra do Jogo incluídos), um sentimento
de isolamento e mutilação semelhante àquele vivido pelo
Capitão John, militar americano que perdera uma perna
em combate, principal personagem masculino de O Rio
Sagrado. John é descrito como “um entre tantos outros
rapazes atingidos pela guerra e que se tornou um estranho
para seu próprio povo”. Essa mesma sensação de estranhamento
parece envolver Jean Renoir, que realiza um filme de
flagrante transição e busca de, ao mesmo tempo, retomada
e renovação na sua forma de apreender o mundo através
de sua obra, antes de voltar a filmar em sua terra natal.
Desse modo, em O Rio Sagrado Renoir retoma muitas
características do estilo que marcou sua fase pré-guerra,
dentro do que se convencionou chamar “realismo poético”,
mas faz um filme notadamente apátrida, tanto no que
se refere a sua abordagem quanto nas suas condições
de produção. Vai à Índia, trabalhar em locações, não
para contar uma história sobre o povo local, mas protagonizada
por estrangeiros – ingleses, americanos – privilegiando
esse olhar externo sobre a cultura hindu. Situando um
drama íntimo e de contornos a seu modo universais em
um cenário específico e diverso, que é interpretado
sob uma ótica de forasteiro, mas que nunca é abordado
sob uma conotação exótica, apesar do estranhamento estar
sempre evidente. Isso, além de reforçar uma certa sensação
de exílio inerente ao processo autoral, acaba sendo
uma decisão extremamente inteligente da parte do cineasta,
por não se envolver demasiadamente em retratar uma realidade
que lhe seria um tanto alheia, com a qual não manifestaria
grande intimidade, o que parece ser uma limitação presente
nos filmes de sua fase americana.
A ponte da qual Renoir parte para inserir o espectador
em sua viagem é a narradora Harriet, uma adolescente
de família inglesa na região de Bengali, situada em
uma Índia após a 2ª. Guerra, mas ainda – ao que o filme
sugere – antes da independência da metrópole britânica,
que viria em 1947, partindo de um romance autobiográfico
de Rumer Godden, escritora de origens idênticas às de
sua personagem. Harriet é a primogênita e sua visão
da cultura hindu, mesmo que impregnada de afetuosa simpatia,
permanece num distanciamento idealizado dentro do cotidiano
de sua família, em cuja intimidade se reproduzem os
rituais britânicos. Ou seja, apesar de um respeito à
cultura local, ficam os britânicos preservados no interior
de seu lar, como podemos ver durante as belíssimas seqüências
que retratam as festividades do Diwali. Apesar da narração
afirmar que “as festas invadem a rotina da família na
casa grande”, enquanto indianos perpetuam seus rituais
do lado de fora, ingleses permanecem dentro das paredes
e ensaiam um baile.
O único membro da família que permanece interessado
numa maior inserção dentro da cultura local é o garoto
Bogey, único filho homem, que, em suas constantes brincadeiras
em companhia do amigo nativo, transpõe os muros de sua
casa desprezando os costumes paternos, tentando fugir
da rigidez colonial. Por outro lado, a governanta indiana
Nan, descrita como “a ponte para a vida, nos trazendo
dos sonhos de volta à realidade e da realidade aos sonhos”
pouco guarda de sua cultura de origem, aparecendo como
uma certa caricatura da empregadinha fuxiqueira. Uma
maior integração, uma espécie de mundo à parte entre
as duas culturas é a casa vizinha de propriedade de
Mr. John – não por acaso americano, e não inglês – viúvo
de uma esposa indiana e pai de uma filha mestiça, Melanie,
e que recebe a visita de um sobrinho, o já citado Capitão,
este último o mais abertamente exilado e deslocado de
um contexto local. No entanto, não há como negar que,
em maior ou menor escala, essa sensação de deslocamento
pode ser estendida a todos os personagens.
A presença do Capitão desperta a paixão e os hormônios
não somente de Harriet, mas também de suas jovens amigas:
Melanie – mestiça e que ao mesmo tempo tenta renegar
e se resignar à sua condição de pária, dividida entre
a atração pelo primo e a corte de um jovem hindu – e
Valery – mais rica, mais velha, mais bonita. Harriet
é o patinho feio que sublima sua aparente inferioridade
através de uma sensibilidade artística, redigindo contos
e poemas inspirados pela descoberta do amor. Renoir
constrói então seu filme, partindo de uma situação aparentemente
fútil de paixonites adolescentes, transformando-o num
rico universo, mudando constantemente o foco da narrativa,
apesar de Harriet sempre seguir como linha mestra.
O Rio Sagrado vai alternando sua ação central com
cenas documentais sobre a Índia em que a visão de Renoir
se identifica com o fascínio da narração de uma Harriet
mais madura. Assim, além da abordagem evidente e já
destacada sobre distanciamento e exílio, partindo do
que poderia ser visto como um simples romance de formação,
passando pela metáfora – um tanto óbvia, não há como
negar, mas aqui nunca banalizada – do rio como canalizador
de um fluxo constante de vida, destacada em especial
no indescritível momento em que se comenta sobre as
diferentes escadarias que partem de suas margens, Renoir
se posiciona diante de uma série de histórias a contar,
diversas abordagens a fazer, mas, com seu gênio incontestável,
dá conta de todas elas.
Surgem daí dois momentos memoráveis que vêm, em meio
a tantos outros, celebrar um artista na plenitude de
sua maturidade, que havia andado reprimido por mais
de uma década, e que une o deslumbre das imagens que
cria à sensibilidade de um poeta, construindo uma obra-prima
multifacetada e que se revela gradualmente em toda sua
grandeza. O primeiro deles se dá quando o Capitão atravessa
o mercado e é seguido à distância por Harriet, primor
de composição de quadro e utilização de campo em toda
sutileza. O outro, instante mágico e poético, vem quando
Renoir praticamente cria um filme dentro do filme, ao
dramatizar um conto que Harriet havia escrito e lê para
Valery e o Capitão, capturando, aqui com uma maior liberdade
de imaginação, um pouco do fascínio e da mitologia romântica
de uma Índia ainda misteriosa aos olhos ocidentais,
num estilo que guarda similitudes com o cinema de Bollywood.
O lançamento em DVD de O Rio Sagrado no Brasil,
mesmo que em cópia carente de extras, é de louvável
importância. Por décadas o filme permanecera invisível
aqui. Surge a oportunidade de contato com uma obra que
tem entre seus defensores nomes como André Bazin e Martin
Scorsese. E que além de sua importância dentro da carreira
de Jean Renoir, prima por ter influenciado definitivamente
a descoberta para o cinema de um nome que viria a ser
outro cineasta essencial. Foi a partir de sua participação
como assistente de direção durante as filmagens de O
Rio Sagrado que o indiano Satyajit Ray partiu para
investir decisivamente em uma carreira de diretor. Já
em seu primeiro filme A Canção da Estrada (1955),
a herança de Renoir e vários pontos de contato com O
Rio Sagrado se fazem presentes.
Gilberto Silva Jr.
(DVD Continental)
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