O RIO SAGRADO
Jean Renoir, The River/Le Fleuve, EUA/França/Índia, 1951

O Rio Sagrado é um filme que reflete um momento único, não somente na obra de Jean Renoir, mas também num panorama histórico. Com o fim da 2ª Guerra, soldados e exilados retornam aos seus lares, suas pátrias. Após emigrar para os EUA, Renoir trabalha durante a década de 40 em Hollywood, onde, como tantos outros cineastas, teve que submeter sua individualidade cinematográfica ao sistema de produção dos estúdios. Isso parece ter transmitido ao mestre, que vinha de uma sucessão de filmes excepcionais no período imediatamente anterior à guerra (A Grande Ilusão e A Regra do Jogo incluídos), um sentimento de isolamento e mutilação semelhante àquele vivido pelo Capitão John, militar americano que perdera uma perna em combate, principal personagem masculino de O Rio Sagrado. John é descrito como “um entre tantos outros rapazes atingidos pela guerra e que se tornou um estranho para seu próprio povo”. Essa mesma sensação de estranhamento parece envolver Jean Renoir, que realiza um filme de flagrante transição e busca de, ao mesmo tempo, retomada e renovação na sua forma de apreender o mundo através de sua obra, antes de voltar a filmar em sua terra natal.

Desse modo, em O Rio Sagrado Renoir retoma muitas características do estilo que marcou sua fase pré-guerra, dentro do que se convencionou chamar “realismo poético”, mas faz um filme notadamente apátrida, tanto no que se refere a sua abordagem quanto nas suas condições de produção. Vai à Índia, trabalhar em locações, não para contar uma história sobre o povo local, mas protagonizada por estrangeiros – ingleses, americanos – privilegiando esse olhar externo sobre a cultura hindu. Situando um drama íntimo e de contornos a seu modo universais em um cenário específico e diverso, que é interpretado sob uma ótica de forasteiro, mas que nunca é abordado sob uma conotação exótica, apesar do estranhamento estar sempre evidente. Isso, além de reforçar uma certa sensação de exílio inerente ao processo autoral, acaba sendo uma decisão extremamente inteligente da parte do cineasta, por não se envolver demasiadamente em retratar uma realidade que lhe seria um tanto alheia, com a qual não manifestaria grande intimidade, o que parece ser uma limitação presente nos filmes de sua fase americana.

A ponte da qual Renoir parte para inserir o espectador em sua viagem é a narradora Harriet, uma adolescente de família inglesa na região de Bengali, situada em uma Índia após a 2ª. Guerra, mas ainda – ao que o filme sugere – antes da independência da metrópole britânica, que viria em 1947, partindo de um romance autobiográfico de Rumer Godden, escritora de origens idênticas às de sua personagem. Harriet é a primogênita e sua visão da cultura hindu, mesmo que impregnada de afetuosa simpatia, permanece num distanciamento idealizado dentro do cotidiano de sua família, em cuja intimidade se reproduzem os rituais britânicos. Ou seja, apesar de um respeito à cultura local, ficam os britânicos preservados no interior de seu lar, como podemos ver durante as belíssimas seqüências que retratam as festividades do Diwali. Apesar da narração afirmar que “as festas invadem a rotina da família na casa grande”, enquanto indianos perpetuam seus rituais do lado de fora, ingleses permanecem dentro das paredes e ensaiam um baile.

O único membro da família que permanece interessado numa maior inserção dentro da cultura local é o garoto Bogey, único filho homem, que, em suas constantes brincadeiras em companhia do amigo nativo, transpõe os muros de sua casa desprezando os costumes paternos, tentando fugir da rigidez colonial. Por outro lado, a governanta indiana Nan, descrita como “a ponte para a vida, nos trazendo dos sonhos de volta à realidade e da realidade aos sonhos” pouco guarda de sua cultura de origem, aparecendo como uma certa caricatura da empregadinha fuxiqueira. Uma maior integração, uma espécie de mundo à parte entre as duas culturas é a casa vizinha de propriedade de Mr. John – não por acaso americano, e não inglês – viúvo de uma esposa indiana e pai de uma filha mestiça, Melanie, e que recebe a visita de um sobrinho, o já citado Capitão, este último o mais abertamente exilado e deslocado de um contexto local. No entanto, não há como negar que, em maior ou menor escala, essa sensação de deslocamento pode ser estendida a todos os personagens.

A presença do Capitão desperta a paixão e os hormônios não somente de Harriet, mas também de suas jovens amigas: Melanie – mestiça e que ao mesmo tempo tenta renegar e se resignar à sua condição de pária, dividida entre a atração pelo primo e a corte de um jovem hindu – e Valery – mais rica, mais velha, mais bonita. Harriet é o patinho feio que sublima sua aparente inferioridade através de uma sensibilidade artística, redigindo contos e poemas inspirados pela descoberta do amor. Renoir constrói então seu filme, partindo de uma situação aparentemente fútil de paixonites adolescentes, transformando-o num rico universo, mudando constantemente o foco da narrativa, apesar de Harriet sempre seguir como linha mestra.

O Rio Sagrado
vai alternando sua ação central com cenas documentais sobre a Índia em que a visão de Renoir se identifica com o fascínio da narração de uma Harriet mais madura. Assim, além da abordagem evidente e já destacada sobre distanciamento e exílio, partindo do que poderia ser visto como um simples romance de formação, passando pela metáfora – um tanto óbvia, não há como negar, mas aqui nunca banalizada – do rio como canalizador de um fluxo constante de vida, destacada em especial no indescritível momento em que se comenta sobre as diferentes escadarias que partem de suas margens, Renoir se posiciona diante de uma série de histórias a contar, diversas abordagens a fazer, mas, com seu gênio incontestável, dá conta de todas elas.

Surgem daí dois momentos memoráveis que vêm, em meio a tantos outros, celebrar um artista na plenitude de sua maturidade, que havia andado reprimido por mais de uma década, e que une o deslumbre das imagens que cria à sensibilidade de um poeta, construindo uma obra-prima multifacetada e que se revela gradualmente em toda sua grandeza. O primeiro deles se dá quando o Capitão atravessa o mercado e é seguido à distância por Harriet, primor de composição de quadro e utilização de campo em toda sutileza. O outro, instante mágico e poético, vem quando Renoir praticamente cria um filme dentro do filme, ao dramatizar um conto que Harriet havia escrito e lê para Valery e o Capitão, capturando, aqui com uma maior liberdade de imaginação, um pouco do fascínio e da mitologia romântica de uma Índia ainda misteriosa aos olhos ocidentais, num estilo que guarda similitudes com o cinema de Bollywood.

O lançamento em DVD de O Rio Sagrado no Brasil, mesmo que em cópia carente de extras, é de louvável importância. Por décadas o filme permanecera invisível aqui. Surge a oportunidade de contato com uma obra que tem entre seus defensores nomes como André Bazin e Martin Scorsese. E que além de sua importância dentro da carreira de Jean Renoir, prima por ter influenciado definitivamente a descoberta para o cinema de um nome que viria a ser outro cineasta essencial. Foi a partir de sua participação como assistente de direção durante as filmagens de O Rio Sagrado que o indiano Satyajit Ray partiu para investir decisivamente em uma carreira de diretor. Já em seu primeiro filme A Canção da Estrada (1955), a herança de Renoir e vários pontos de contato com O Rio Sagrado se fazem presentes.


Gilberto Silva Jr.

(DVD Continental)