O
mote dos golpes que Zé Trindade e seus comparsas aplicam
em Mulheres à Vista ajuda bastante a entender
o modo como estes dois filmes que o diretor croata J.
B. Tanko dirige num mesmo ano para a produtora de Herbert
Richers se relacionam com a cinematografia a qual se
filia, a chanchada e a comédia musical. No auge do desenvolvimentismo,
quando a idéia do consumo em massa começa a contaminar
as estruturas sociais brasileiras, o malandro João Flores
arma um esquema de dinheiro fácil onde compra eletrodomésticos
à prazo nas lojas e os revende à vista nas ruas, capitalizando
em cima da boa maré econômica que o país vivia para
enganar alguns trouxas, acumular dívidas que nunca pagaria
e disso tudo tirar os recursos que financiarão o espetáculo
de vedetes que está organizando. É esse o mesmo movimento
realizado pelos filmes de Tanko: funcionam como uma
espécie de atualização de um gênero que se estende no
tempo; compram à prazo toda uma construção já estabelecida
ao longo das duas décadas anteriores como a grande cartada
popular do cinema brasileiro, àquela altura já cheia
de seus vícios irreparáveis e claros sinais de esgotamento,
ao mesmo tempo que tentam vender à vista ao espectador
um tipo de imagem que deseja um frescor e uma novidade
que naturalizem seu caráter de contrabando – numa das
grandes cenas de Mulheres à Vista, Grande Otelo
é perguntado por um dos compradores do liqüidificador
que anuncia na rua se o produto é “contrabando legítimo”,
e a afirmação taxativa que o ator dá serve também para
o próprio filme.
Tanto Mulheres à Vista quanto Entrei de Gaiato
trazem para dentro de si este debate entre o passado
e o presente da comédia musical. A paródia de si mesma
é assumida integralmente, e a auto-reflexividade que
vem daí não aparece como dado particular e específico
deste ou daquele trabalho: é como se naquele momento
a meta-chanchada fosse a única chanchada possível. Em
ambos os filmes Zé Trindade encarna o vigarista do bem,
um pequeno bandido de caráter claramente corrompido,
mas que a ingenuidade brejeira, a idade avançada e a
beleza desfavorecida acabam por apaziguar qualquer traço
negativo (e eles são muitos) de sua personalidade. Mas
antes de falsário, golpista, empresário teatral ou qualquer
uma das atribuições cabíveis, Zé Trindade está interpretando
sempre a figura do próprio cômico. São recorrentes os
momentos em que personagens secundários se referem ao
protagonista como um sujeito muito engraçado ou elogiam
suas gags e o incentivam a entrar para o mundo dos espetáculos;
esse aspecto fundamental de sua construção é naturalizado,
como se ele fosse apenas um “comediante da vida real”,
mas o trajeto que o João Flores de Mulheres à Vista
e o Januário Jaboatão de Entrei de Gaiato cumprem
durante os filmes será uma tentativa de encontrar um
universo ficcional que comporte essa comicidade que
o mundo real parece receber com muitas ressalvas. Há
algo no modo declamado e ensaiado com que Zé Trindade
se expressa, sempre cuspindo frases de efeito e piadas
prontas, que não encontra lugar dentro da contenção
e da economia textual dos personagens que o cercam.
Tanto que, nos ápices de sua performance humorística,
é na câmera que o ator vai buscar cumplicidade, falando
diretamente para ela e esquecendo o mundo de que faz
parte.
Essa busca incessante de um palco digno de seu protagonista
se dá ao mesmo tempo em que os musicais de palco buscam
um lugar no mundo do cinema. Tanko cria uma noção torta,
mas muito eficiente, de espaço diegético, onde os números
musicais, para poderem invadir a narrativa, precisam
apenas que o lugar de sua realização “coincida” com
o lugar onde ocorre a trama. Em Mulheres à Vista
estamos dentro de um teatro de revista, em Entrei
de Gaiato num hotel que tem seu ponto forte na boate
que funciona no térreo, e eis aí o manancial de todas
as cenas cantadas. Comédia e musical são dois fluxos
que correm paralelos e que disputam a atenção da câmera,
ora tomando tempo para observar as evoluções das coreografias,
ora escutando até o final cada uma das piadas de Zé
Trindade. Essas correntes paralelas acabam eventualmente
se contaminando no momento em que o protagonista assume
sua verve cômica, e em Mulheres à Vista João
Flores passa, depois de uma série de infortúnios e mal-entendidos,
a ser a estrela do show que ele mesmo estava produzindo,
e na maneira atabalhoada como, face à greve que os músicos
fazem antes do espetáculo, substitui o maestro e o contrabaixista
ao mesmo tempo, faz a platéia do teatro vir abaixo com
sua performance de clown involuntário. Do mesmo modo,
o Januário de Entrei de Gaiato, assim como sua
noiva Ananásia (Dercy Gonçalves), assumem números musicais
na boate do hotel com a propriedade de um Carlos Imperial
ou de uma Linda Baptista. Levar a narrativa a um teatro
de revista é religar a ponta dos números musicais à
sua origem: menos que “fazer isso para o cinema”, o
que acontece é uma permissão para que o cinema os registre
(e eventualmente até dialogue com eles, como nas várias
coreografias em que Tanko realiza os cortes dentro do
próprio quadro, fazendo com que a evolução dos passos
das dançarinas faça daquele um primeiro plano ou um
plano geral, destacando por si mesmos aquilo que a câmera
observa em plano-seqüência sem movimentos).
O que parece fora de questão aqui é que se perca contato
com a natureza teatral daquele espetáculo. Seja no trânsito
do protagonista, que sai da vida real para se encontrar
no palco, seja no contato puro do musical com a película,
a vontade de cinema (evidente nas iluminações elaboradíssimas
de Amleto Daissé, sem lugar dentro das construções corriqueiras
que as produções chanchadescas exigiam) sempre é atropelada.
Símbolo maior disso é o papel que os dois filmes de
Tanko entregam à Grande Otelo. Tudo o que a figura do
ator já trazia, naquela época, de carga dramática concentrada
e vertida para encenação, de espontaneidade e leveza
no contato com a câmera, de criação livre a partir de
um material proposto, é perdido em Mulheres à Vista
e Entrei de Gaiato com seu deslocamento para
postos coadjuvantes de importância quase nula – e tudo
isso que Otelo representa acaba também relegado às margens
dos próprios filmes. Os esforços de Tanko em pensar
uma estrutura tão batida e que precisava ser repetida
constantemente (pela e para as grandes bilheterias,
que em 1959 começavam a deixar de ser grandes) emprestam
aos dois trabalhos qualidades às vezes até surpreendentes.
Mas, ainda assim, nenhum filme pode se dar ao luxo de
ignorar Grande Otelo e sair impune disso.
Rodrigo de Oliveira
(DVD Europa)
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