MULHERES À VISTA & ENTREI DE GAIATO
J. B. Tanko, Brasil, 1959

O mote dos golpes que Zé Trindade e seus comparsas aplicam em Mulheres à Vista ajuda bastante a entender o modo como estes dois filmes que o diretor croata J. B. Tanko dirige num mesmo ano para a produtora de Herbert Richers se relacionam com a cinematografia a qual se filia, a chanchada e a comédia musical. No auge do desenvolvimentismo, quando a idéia do consumo em massa começa a contaminar as estruturas sociais brasileiras, o malandro João Flores arma um esquema de dinheiro fácil onde compra eletrodomésticos à prazo nas lojas e os revende à vista nas ruas, capitalizando em cima da boa maré econômica que o país vivia para enganar alguns trouxas, acumular dívidas que nunca pagaria e disso tudo tirar os recursos que financiarão o espetáculo de vedetes que está organizando. É esse o mesmo movimento realizado pelos filmes de Tanko: funcionam como uma espécie de atualização de um gênero que se estende no tempo; compram à prazo toda uma construção já estabelecida ao longo das duas décadas anteriores como a grande cartada popular do cinema brasileiro, àquela altura já cheia de seus vícios irreparáveis e claros sinais de esgotamento, ao mesmo tempo que tentam vender à vista ao espectador um tipo de imagem que deseja um frescor e uma novidade que naturalizem seu caráter de contrabando – numa das grandes cenas de Mulheres à Vista, Grande Otelo é perguntado por um dos compradores do liqüidificador que anuncia na rua se o produto é “contrabando legítimo”, e a afirmação taxativa que o ator dá serve também para o próprio filme.

Tanto Mulheres à Vista quanto Entrei de Gaiato trazem para dentro de si este debate entre o passado e o presente da comédia musical. A paródia de si mesma é assumida integralmente, e a auto-reflexividade que vem daí não aparece como dado particular e específico deste ou daquele trabalho: é como se naquele momento a meta-chanchada fosse a única chanchada possível. Em ambos os filmes Zé Trindade encarna o vigarista do bem, um pequeno bandido de caráter claramente corrompido, mas que a ingenuidade brejeira, a idade avançada e a beleza desfavorecida acabam por apaziguar qualquer traço negativo (e eles são muitos) de sua personalidade. Mas antes de falsário, golpista, empresário teatral ou qualquer uma das atribuições cabíveis, Zé Trindade está interpretando sempre a figura do próprio cômico. São recorrentes os momentos em que personagens secundários se referem ao protagonista como um sujeito muito engraçado ou elogiam suas gags e o incentivam a entrar para o mundo dos espetáculos; esse aspecto fundamental de sua construção é naturalizado, como se ele fosse apenas um “comediante da vida real”, mas o trajeto que o João Flores de Mulheres à Vista e o Januário Jaboatão de Entrei de Gaiato cumprem durante os filmes será uma tentativa de encontrar um universo ficcional que comporte essa comicidade que o mundo real parece receber com muitas ressalvas. Há algo no modo declamado e ensaiado com que Zé Trindade se expressa, sempre cuspindo frases de efeito e piadas prontas, que não encontra lugar dentro da contenção e da economia textual dos personagens que o cercam. Tanto que, nos ápices de sua performance humorística, é na câmera que o ator vai buscar cumplicidade, falando diretamente para ela e esquecendo o mundo de que faz parte.

Essa busca incessante de um palco digno de seu protagonista se dá ao mesmo tempo em que os musicais de palco buscam um lugar no mundo do cinema. Tanko cria uma noção torta, mas muito eficiente, de espaço diegético, onde os números musicais, para poderem invadir a narrativa, precisam apenas que o lugar de sua realização “coincida” com o lugar onde ocorre a trama. Em Mulheres à Vista estamos dentro de um teatro de revista, em Entrei de Gaiato num hotel que tem seu ponto forte na boate que funciona no térreo, e eis aí o manancial de todas as cenas cantadas. Comédia e musical são dois fluxos que correm paralelos e que disputam a atenção da câmera, ora tomando tempo para observar as evoluções das coreografias, ora escutando até o final cada uma das piadas de Zé Trindade. Essas correntes paralelas acabam eventualmente se contaminando no momento em que o protagonista assume sua verve cômica, e em Mulheres à Vista João Flores passa, depois de uma série de infortúnios e mal-entendidos, a ser a estrela do show que ele mesmo estava produzindo, e na maneira atabalhoada como, face à greve que os músicos fazem antes do espetáculo, substitui o maestro e o contrabaixista ao mesmo tempo, faz a platéia do teatro vir abaixo com sua performance de clown involuntário. Do mesmo modo, o Januário de Entrei de Gaiato, assim como sua noiva Ananásia (Dercy Gonçalves), assumem números musicais na boate do hotel com a propriedade de um Carlos Imperial ou de uma Linda Baptista. Levar a narrativa a um teatro de revista é religar a ponta dos números musicais à sua origem: menos que “fazer isso para o cinema”, o que acontece é uma permissão para que o cinema os registre (e eventualmente até dialogue com eles, como nas várias coreografias em que Tanko realiza os cortes dentro do próprio quadro, fazendo com que a evolução dos passos das dançarinas faça daquele um primeiro plano ou um plano geral, destacando por si mesmos aquilo que a câmera observa em plano-seqüência sem movimentos).

O que parece fora de questão aqui é que se perca contato com a natureza teatral daquele espetáculo. Seja no trânsito do protagonista, que sai da vida real para se encontrar no palco, seja no contato puro do musical com a película, a vontade de cinema (evidente nas iluminações elaboradíssimas de Amleto Daissé, sem lugar dentro das construções corriqueiras que as produções chanchadescas exigiam) sempre é atropelada. Símbolo maior disso é o papel que os dois filmes de Tanko entregam à Grande Otelo. Tudo o que a figura do ator já trazia, naquela época, de carga dramática concentrada e vertida para encenação, de espontaneidade e leveza no contato com a câmera, de criação livre a partir de um material proposto, é perdido em Mulheres à Vista e Entrei de Gaiato com seu deslocamento para postos coadjuvantes de importância quase nula – e tudo isso que Otelo representa acaba também relegado às margens dos próprios filmes. Os esforços de Tanko em pensar uma estrutura tão batida e que precisava ser repetida constantemente (pela e para as grandes bilheterias, que em 1959 começavam a deixar de ser grandes) emprestam aos dois trabalhos qualidades às vezes até surpreendentes. Mas, ainda assim, nenhum filme pode se dar ao luxo de ignorar Grande Otelo e sair impune disso.


Rodrigo de Oliveira

(DVD Europa)