Um
aviso é necessário: o final do filme é explicitado aqui.
Quem não viu Aquele que Sabe Viver tem a opção
de ler este texto depois de vê-lo.
É muito difícil, e certamente infrutífero, passar por
este belo filme de Dino Risi sem se deter em seu trágico
final: um carro que cai no barranco levando a vida de
um dos protagonistas. Há uma armadilha de cunho moral
aqui, porque se o bon vivant arrasta o introvertido
estudante para a vida intensa e cheia de aventuras,
é por causa da direção perigosa e inconseqüente desse
bon vivant que o acidente acontece. O curioso
da história toda é que, pela primeira vez, o estudante,
inebriado de vida em todos os poros, incentiva o bon
vivant nas ultrapassagens perigosas, nas derrapadas
em curvas fechadas de uma estrada serrana. Com isso
ele praticamente se despediu de sua vida em alto estilo,
como se absolvesse o amigo maluco de suas imperícias.
Ao apoiar a direção irresponsável de seu companheiro,
ele se mostra aberto a qualquer conseqüência que venha
a ocorrer, por mais cruel que seja. Assim como o estudante,
interpretado por Jean-Louis Trintignant, o espectador
parece ter todas as condições para perdoar o comportamento
irresponsável do anjo. Afinal, é ele quem mais sofre,
por se sentir culpado.
A cena do acidente é seca, vem depois de hora e meia
de puro encanto, com personagens diversos tocados pela
espontaneidade contagiante do bon vivant. Vivido
magistralmente por Vittorio Gassman, em um de seus melhores
desempenhos no cinema, o bon vivant reencontra
mulher e filha, mais uma penca de amigos delas. Sem
a menor cerimônia, invade o cotidiano de todos sem avisar,
e os envolve em sua maneira espalhafatosa e descontraída
de viver. É um anjo caído, como o de Teorema.
Mas Dino Risi não é Pasolini. No lugar do desequilíbrio
social e sexual, o novo anjo traz liberação das amarras
e sensualidade quase infantil, certo de que sua missão
na terra é fazer todos viverem da melhor maneira possível.
Em uma cena, o resultado positivo dessa missão fica
claro: quando o estudante observa as pessoas cheias
de vida na praia, olhares cruzados, aparente ausência
de problemas, pelo menos enquanto curtem o sol, protegidos
pelo zelador de suas consciências. Nessa hora ele percebe
o quanto seu amigo zureta contagia os que estão à sua
volta.
Não são poucos os que enxergam no ato final um castigo
moral, um puxão de orelha definitivo que mudará para
sempre os modos do bon vivant. Nesse sentido,
o filme se insere em uma leitura que se subordina à
noção de destino. Um estudante é recolhido em sua casa
e obrigado, a princípio, a acompanhar o playboy pelos
arredores de Roma, onde conhece baladeiros, reencontra
familiares, se diverte com a alta velocidade do carro
esporte do novo amigo, em suma, vive, em um dia, tudo
o que não viveu em seus quase vinte anos de vida. Ao
final, nada mais lhe resta que não a morte, a única
saída para o caminho que havia tomado, de excessos e
ritmos contrários ao que sua vida pregressa o havia
obrigado a se acostumar. A morte é sua libertação, o
fim de um caminho muito mais tortuoso e prazeroso, que
exigia muito mais dispêndio de energia. Energia que
faltou na hora de saltar do carro, por exemplo, como
fez o personagem de Gassman.
Mas a leitura mais simples e tocante é também a mais
direta: jovem é apresentado à essência da vida, mas
a perde, por acidente, justamente quando havia captado
essa essência. Ele se abre à vida plena, e se torna
vulnerável, como todos nós.
Sérgio Alpendre
(DVD Versátil)
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