AQUELE QUE SABE VIVER
Dino Risi, Il Sorpasso, Itália, 1962

Um aviso é necessário: o final do filme é explicitado aqui. Quem não viu Aquele que Sabe Viver tem a opção de ler este texto depois de vê-lo.

É muito difícil, e certamente infrutífero, passar por este belo filme de Dino Risi sem se deter em seu trágico final: um carro que cai no barranco levando a vida de um dos protagonistas. Há uma armadilha de cunho moral aqui, porque se o bon vivant arrasta o introvertido estudante para a vida intensa e cheia de aventuras, é por causa da direção perigosa e inconseqüente desse bon vivant que o acidente acontece. O curioso da história toda é que, pela primeira vez, o estudante, inebriado de vida em todos os poros, incentiva o bon vivant nas ultrapassagens perigosas, nas derrapadas em curvas fechadas de uma estrada serrana. Com isso ele praticamente se despediu de sua vida em alto estilo, como se absolvesse o amigo maluco de suas imperícias. Ao apoiar a direção irresponsável de seu companheiro, ele se mostra aberto a qualquer conseqüência que venha a ocorrer, por mais cruel que seja. Assim como o estudante, interpretado por Jean-Louis Trintignant, o espectador parece ter todas as condições para perdoar o comportamento irresponsável do anjo. Afinal, é ele quem mais sofre, por se sentir culpado.

A cena do acidente é seca, vem depois de hora e meia de puro encanto, com personagens diversos tocados pela espontaneidade contagiante do bon vivant. Vivido magistralmente por Vittorio Gassman, em um de seus melhores desempenhos no cinema, o bon vivant reencontra mulher e filha, mais uma penca de amigos delas. Sem a menor cerimônia, invade o cotidiano de todos sem avisar, e os envolve em sua maneira espalhafatosa e descontraída de viver. É um anjo caído, como o de Teorema. Mas Dino Risi não é Pasolini. No lugar do desequilíbrio social e sexual, o novo anjo traz liberação das amarras e sensualidade quase infantil, certo de que sua missão na terra é fazer todos viverem da melhor maneira possível. Em uma cena, o resultado positivo dessa missão fica claro: quando o estudante observa as pessoas cheias de vida na praia, olhares cruzados, aparente ausência de problemas, pelo menos enquanto curtem o sol, protegidos pelo zelador de suas consciências. Nessa hora ele percebe o quanto seu amigo zureta contagia os que estão à sua volta.

Não são poucos os que enxergam no ato final um castigo moral, um puxão de orelha definitivo que mudará para sempre os modos do bon vivant. Nesse sentido, o filme se insere em uma leitura que se subordina à noção de destino. Um estudante é recolhido em sua casa e obrigado, a princípio, a acompanhar o playboy pelos arredores de Roma, onde conhece baladeiros, reencontra familiares, se diverte com a alta velocidade do carro esporte do novo amigo, em suma, vive, em um dia, tudo o que não viveu em seus quase vinte anos de vida. Ao final, nada mais lhe resta que não a morte, a única saída para o caminho que havia tomado, de excessos e ritmos contrários ao que sua vida pregressa o havia obrigado a se acostumar. A morte é sua libertação, o fim de um caminho muito mais tortuoso e prazeroso, que exigia muito mais dispêndio de energia. Energia que faltou na hora de saltar do carro, por exemplo, como fez o personagem de Gassman.

Mas a leitura mais simples e tocante é também a mais direta: jovem é apresentado à essência da vida, mas a perde, por acidente, justamente quando havia captado essa essência. Ele se abre à vida plena, e se torna vulnerável, como todos nós.


Sérgio Alpendre

(DVD Versátil)