RÁPIDA E MORTAL
Sam Raimi, The Quick and the Dead, EUA, 1995

Colocar uma mulher como protagonista de um western não foi a maior surpresa de Rápida e Mortal – nem a mais importante. De certa forma era até previsível que alguém fosse fazer isso um dia. O inusitado formato narrativo do filme e a maliciosa inventividade de Sam Raimi diante do gênero e suas convenções, figuras consagradas, fetiches etc são o que chama a atenção no fim das contas. Uma vez fermentados, vistos com lupa, os códigos do western foram encarados como componentes de uma linguagem sobre a qual ele se poria a experimentar. Aquelas marcações visuais e sonoras que deram o tom do western spaghetti tomam aqui a dianteira do filme. O que de fato faz a diferença no filme é seu impulso de acentuar o lúdico da representação maneirista do faroeste e engrossar os recursos estilísticos quase a ponto de torná-los, para um olhar distraído, a única coisa visível na tela. Raimi não dá sinais de melancolia por ter chegado tarde demais ao gênero (em Rápida e Mortal não há nada parecido com os olhares crepusculares de Eastwood), assim como não exterioriza a frieza de um médico legista lidando com um gênero-cadáver (talvez Jarmusch tenha sido um pouco isso em Dead Man). Sua visão do velho oeste é uma espécie de anedota consciente: consciente do imenso legado estético/iconográfico/moral que os mestres do gênero foram deixando pelo caminho, mas sem perder as chances – incrustadas nos mínimos detalhes – do pastiche.

A prova mais simples e evidente está no fato de que, ao contrário da posição de clímax que ocupava na construção clássica, o duelo em Rápida e Mortal representa o único pretexto narrativo, o material que permite a sucessão das cenas. A despeito do enredo de vingança clara e propositalmente decalcado de Era uma Vez no Oeste, o verdadeiro contexto narrativo de Rápida e Mortal é o campeonato de duelos de pistoleiros que Ellen (Sharon Stone) foi à cidade disputar. A brincadeira de Raimi, então, passa a ser como encontrar formas sempre diferentes de filmar uma mesma situação, um homem (ou, neste caso particular, uma mulher) se confrontando a outro segundo as regras de um ritual que o cinema encampou desde muito cedo. Em outras palavras, o que ele faz é transferir para uma abstração formal as hipérboles de Leone e do western spaghetti como um todo. A dilatação da montagem dramática dos duelos leonianos é vista de partes que até ali – acredite-se ou não – permaneciam inexploradas. Raimi encadeia pequenas fissuras de decupagem, pequenos números farsescos que desafiam os limites do gênero, como se ele colocasse um microscópio (e um estetoscópio) entre um plano e outro para ver (e ouvir) o que ficava escondido pelo raccord. O resultado: balas triscando o ar em plano-detalhe, uma estrela de xerife enquadrada de forma a se tornar maior que qualquer figura humana, um olhar que o zoom quase atravessa, o destaque aos objetos que entregam a devoção do diretor ao artifício (a tinta que simulara o sangue de Ellen quando ela se fingiu de morta, por exemplo), o desenho de som que acompanha as escolhas arbitrárias e, por vezes, anticonvencionais das imagens.

Após um dos duelos que vence, o personagem de Leonardo DiCaprio, Kid, diz a frase que resume o trabalho de som do filme, e por tabela resume sua estética: “Eu ouvi! Eu ouvi ele mover os dedos!”. Se algo é irrelevante para o enredo do filme, para o seu drama, automaticamente se torna essencial para o jogo estilístico de Raimi. Quando escreveu sua crítica sobre o filme, Jean-Marc Lalanne viu exatamente o que ele tinha de especial: o suspense se destacando do enredo e se colando à enunciação. O que importa nos duelos não é quem mata quem, mas qual “geometria visual” vai permitir ao filme perfazer esse ritual repetitivo de forma inédita. O filme não é apenas um conjunto de gimmicks, mas antes uma pesquisa sobre novos modos de decupagem. Esgotada a primeira geração maneirista (que, por sua vez, nascera do esgotamento das formas clássicas), ficava para a geração seguinte uma missão de reconquista de tecnicidade. E Raimi aceitou essa missão: o emprego enfático e múltiplo do zoom pode até ter sua parcela de paródia, mas sua principal função é dotar o nervo óptico de um novo estímulo de velocidade. Recurso essencial para um filme calcado em duelos, o zoom é a ferramenta que torna possível uma redução brusca do espaço que separa os corpos em confronto. Raimi fez do zoom uma metáfora da bala que sai do revólver e praticamente abole a distância através de sua incrível velocidade, para atingir o adversário que está lá no outro lado do espaço. O olhar compenetrado, que antecede o ataque, combina-se ao gesto desencadeado pelo dedo que puxa o gatilho. No faroeste de Sam Raimi, o zoom ao mesmo tempo prefigura e materializa a trajetória de uma bala de revólver.

Interessante ver um filme tão apegado ao desenho, ao plano, à montagem, ao entre-planos, feito por um cineasta que na década seguinte estaria submetendo seu formalismo não mais aos poderes da decupagem e da mestria na duração (na inequívoca simbologia dos objetos em Rápida e Mortal, o destaque acaba ficando para os ponteiros do grande relógio que autoriza o disparo na hora marcada), mas à absorção interna dos movimentos por mais excêntricos que eles possam ser, e à extensão ilimitada das possibilidades gráficas do plano. O Homem-Aranha vai de um prédio a outro sem que o raccord seja necessário, a tela se contorce toda mas consegue dar conta do movimento na íntegra. A verdade é que Raimi continua fiel à sua grande obstinação de formalista: aumentar a capacidade enérgica da encenação daqueles movimentos que outros antes dele já provaram cinematográficos por excelência, evoluir na construção de dispositivos que nutrem o puro prazer cinético, fazer da tela de cinema o que os cartunistas fazem da página de HQ: um espaço-tampão que se adapta ao tamanho e à intensidade da ação.

Em Rápida e Mortal, ao mergulhar no mais tradicional dos gêneros, Raimi buscou ver ora o que já se via, porém sob os ângulos extravagantes de sua câmera, ora o que se perdia ao se ignorar certos intervalos. O filme se constrói basicamente disso: intervalos, ínterins, esperas. As sobras são seu prato principal. As sobras e as sombras: a personagem de Sharon Stone ressurge dos mortos (a cena de catarse de sua personagem não por acaso se passa num cemitério) para cobrar a morte de seu pai a Herod (Gene Hackman mau que nem o Pica-Pau). Ela é uma nova convenção de gênero, como se depois dos cowboys de Eastwood um personagem de western não pudesse existir senão como fantasma. A diferença é que Pale Rider era o retorno fantasmático de um corpo, enquanto Ellen é o fantasma que se produz à imagem e à semelhança (em quase tudo) de um outro fantasma. Haveria uma enorme incongruência se essa personagem fosse introduzida num espaço e num enredo que remetessem a um velho oeste concreto e sólido. Mas tudo bem: o espaço de Rápida e Mortal é igualmente (ou mais) abstrato, e o enredo é uma superfície sem profundidade alguma, como um tabuleiro à espera de um jogo cuja regra precisa se reformular a cada rodada. “Mudança de regras?”, um personagem pergunta a Herod quando ele resolve instituir que dali por diante os duelos seriam até a morte. “Sim, mudança de regras!”, Herod responde em nome de Sam Raimi.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

(DVD Columbia)