Colocar
uma mulher como protagonista de um western não
foi a maior surpresa de Rápida e Mortal – nem
a mais importante. De certa forma era até previsível
que alguém fosse fazer isso um dia. O inusitado formato
narrativo do filme e a maliciosa inventividade de Sam
Raimi diante do gênero e suas convenções, figuras consagradas,
fetiches etc são o que chama a atenção no fim das contas.
Uma vez fermentados, vistos com lupa, os códigos do
western foram encarados como componentes de uma
linguagem sobre a qual ele se poria a experimentar.
Aquelas marcações visuais e sonoras que deram o
tom do western spaghetti tomam aqui a dianteira
do filme. O que de fato faz a diferença no filme é seu
impulso de acentuar o lúdico da representação maneirista
do faroeste e engrossar os recursos estilísticos quase
a ponto de torná-los, para um olhar distraído, a única
coisa visível na tela. Raimi não dá sinais de melancolia
por ter chegado tarde demais ao gênero (em Rápida
e Mortal não há nada parecido com os olhares crepusculares
de Eastwood), assim como não exterioriza a frieza de
um médico legista lidando com um gênero-cadáver (talvez
Jarmusch tenha sido um pouco isso em Dead Man).
Sua visão do velho oeste é uma espécie de anedota consciente:
consciente do imenso legado estético/iconográfico/moral
que os mestres do gênero foram deixando pelo caminho,
mas sem perder as chances – incrustadas nos mínimos
detalhes – do pastiche.
A prova mais simples e evidente está no fato de que,
ao contrário da posição de clímax que ocupava na construção
clássica, o duelo em Rápida e Mortal representa
o único pretexto narrativo, o material que permite a
sucessão das cenas. A despeito do enredo de vingança
clara e propositalmente decalcado de Era uma Vez
no Oeste, o verdadeiro contexto narrativo de Rápida
e Mortal é o campeonato de duelos de pistoleiros
que Ellen (Sharon Stone) foi à cidade disputar. A brincadeira
de Raimi, então, passa a ser como encontrar formas sempre
diferentes de filmar uma mesma situação, um homem (ou,
neste caso particular, uma mulher) se confrontando a
outro segundo as regras de um ritual que o cinema encampou
desde muito cedo. Em outras palavras, o que ele faz
é transferir para uma abstração formal as hipérboles
de Leone e do western spaghetti como um todo.
A dilatação da montagem dramática dos duelos leonianos
é vista de partes que até ali – acredite-se ou não –
permaneciam inexploradas. Raimi encadeia pequenas fissuras
de decupagem, pequenos números farsescos que desafiam
os limites do gênero, como se ele colocasse um microscópio
(e um estetoscópio) entre um plano e outro para ver
(e ouvir) o que ficava escondido pelo raccord.
O resultado: balas triscando o ar em plano-detalhe,
uma estrela de xerife enquadrada de forma a se tornar
maior que qualquer figura humana, um olhar que o zoom
quase atravessa, o destaque aos objetos que entregam
a devoção do diretor ao artifício (a tinta que simulara
o sangue de Ellen quando ela se fingiu de morta, por
exemplo), o desenho de som que acompanha as escolhas
arbitrárias e, por vezes, anticonvencionais das imagens.
Após um dos duelos que vence, o personagem de Leonardo
DiCaprio, Kid, diz a frase que resume o trabalho de
som do filme, e por tabela resume sua estética: “Eu
ouvi! Eu ouvi ele mover os dedos!”. Se algo é irrelevante
para o enredo do filme, para o seu drama, automaticamente
se torna essencial para o jogo estilístico de Raimi.
Quando escreveu sua crítica sobre o filme, Jean-Marc
Lalanne viu exatamente o que ele tinha de especial:
o suspense se destacando do enredo e se colando à enunciação.
O que importa nos duelos não é quem mata quem, mas qual
“geometria visual” vai permitir ao filme perfazer esse
ritual repetitivo de forma inédita. O filme não é apenas
um conjunto de gimmicks, mas antes uma pesquisa
sobre novos modos de decupagem. Esgotada a primeira
geração maneirista (que, por sua vez, nascera do esgotamento
das formas clássicas), ficava para a geração seguinte
uma missão de reconquista de tecnicidade. E Raimi aceitou
essa missão: o emprego enfático e múltiplo do zoom pode
até ter sua parcela de paródia, mas sua principal função
é dotar o nervo óptico de um novo estímulo de velocidade.
Recurso essencial para um filme calcado em duelos, o
zoom é a ferramenta que torna possível uma redução brusca
do espaço que separa os corpos em confronto. Raimi fez
do zoom uma metáfora da bala que sai do revólver e praticamente
abole a distância através de sua incrível velocidade,
para atingir o adversário que está lá no outro lado
do espaço. O olhar compenetrado, que antecede o ataque,
combina-se ao gesto desencadeado pelo dedo que puxa
o gatilho. No faroeste de Sam Raimi, o zoom ao mesmo
tempo prefigura e materializa a trajetória de uma bala
de revólver.
Interessante ver um filme tão apegado ao desenho, ao
plano, à montagem, ao entre-planos, feito por um cineasta
que na década seguinte estaria submetendo seu formalismo
não mais aos poderes da decupagem e da mestria na duração
(na inequívoca simbologia dos objetos em Rápida e
Mortal, o destaque acaba ficando para os ponteiros
do grande relógio que autoriza o disparo na hora marcada),
mas à absorção interna dos movimentos por mais excêntricos
que eles possam ser, e à extensão ilimitada das possibilidades
gráficas do plano. O Homem-Aranha vai de um prédio a
outro sem que o raccord seja necessário, a tela
se contorce toda mas consegue dar conta do movimento
na íntegra. A verdade é que Raimi continua fiel à sua
grande obstinação de formalista: aumentar a capacidade
enérgica da encenação daqueles movimentos que outros
antes dele já provaram cinematográficos por excelência,
evoluir na construção de dispositivos que nutrem o puro
prazer cinético, fazer da tela de cinema o que os cartunistas
fazem da página de HQ: um espaço-tampão que se adapta
ao tamanho e à intensidade da ação.
Em Rápida e Mortal, ao mergulhar no mais tradicional
dos gêneros, Raimi buscou ver ora o que já se via, porém
sob os ângulos extravagantes de sua câmera, ora o que
se perdia ao se ignorar certos intervalos. O filme se
constrói basicamente disso: intervalos, ínterins, esperas.
As sobras são seu prato principal. As sobras e as sombras:
a personagem de Sharon Stone ressurge dos mortos (a
cena de catarse de sua personagem não por acaso se passa
num cemitério) para cobrar a morte de seu pai a Herod
(Gene Hackman mau que nem o Pica-Pau). Ela é uma nova
convenção de gênero, como se depois dos cowboys de Eastwood
um personagem de western não pudesse existir
senão como fantasma. A diferença é que Pale Rider
era o retorno fantasmático de um corpo, enquanto
Ellen é o fantasma que se produz à imagem e à semelhança
(em quase tudo) de um outro fantasma. Haveria uma enorme
incongruência se essa personagem fosse introduzida num
espaço e num enredo que remetessem a um velho oeste
concreto e sólido. Mas tudo bem: o espaço de Rápida
e Mortal é igualmente (ou mais) abstrato, e o enredo
é uma superfície sem profundidade alguma, como um tabuleiro
à espera de um jogo cuja regra precisa se reformular
a cada rodada. “Mudança de regras?”, um personagem pergunta
a Herod quando ele resolve instituir que dali por diante
os duelos seriam até a morte. “Sim, mudança de regras!”,
Herod responde em nome de Sam Raimi.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD Columbia)
|