Aventura.
Piratas. Technicolor. Poderia ser mais um filme calcado
no gênero, limitado pelas suas próprias fronteiras.
Poderia se perder no exótico, desesperadamente clamando
por atenção e agarrando os destroços do studio-system
cada vez mais falido. Da mesma maneira poderia ser uma
obra-prima que extrapola pela sua insubordinação. Mas
a carreira de Jacques Tourneur não suporta essas características,
esses extremos, e sua postura pessoal tampouco buscava
demonstrar o contrário.
Em 1977 declarou que nunca recusara um roteiro, que
tentava sempre fazer o melhor com o que lhe davam. Era
uma negação à especialização. Como saber em que se fechar,
como fazer tal escolha? Mas numa visão superficial,
esta inconsistência temática seria fruto de uma fraca
personalidade, de uma fraca visão de mundo que não emana
maior sentido em sua tensão com o material. Enfim, apresenta-se
subvalorizado em todos os tópicos que Andrew Sarris
definiu em sua estamental historiografia do cinema americano.
Mesmo sendo rapidamente questionada por Kael, a versão
americanizada da Política dos Autores de Sarris acabou
contribuindo para a desvalorização de Tourneur, categorizando
sua obra como um "triunfo do gosto sobre a força".
Sem querer sobrevalorizar a influência de Sarris, são
poucos os filmes de Tourneur que têm hoje um maior reconhecimento
pelo público, restringido principalmente a seus filmes
de terror e noir.
Mas o que Sangue de Pantera (Cat People, 1942),
A Morta-Viva (I Walked with a Zombie,
1943), O Homem Leopardo (The Leopard Man,
1943) e Fuga do Passado (Out of the Past,
1946] – filmes de terror e noir, onde o preto-e-branco
não era resultado de uma mera economia, era uma expressão
da dualidade do mundo, e as sombras estavam longe de
ser inocentes – teriam em comum com um filme de piratas
em Technicolor? Se por um lado poderíamos esperar navios
fantasmas, isto seria em vão. A Vingança dos Piratas
está mais para Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954)
do que para Piratas do Caribe (Gore Verbiski,
2003). Não que Anne Providence (Jean Peters) tenha a
firme obstinação de Joan Crawford, mas isso faz parte
da diversão.
Todos os filmes de Tourneur lidam com a dicotomia do
mundo. Fronteiras criadas pelos próprios personagens,
fronteiras que oscilam entre o real, o imaginário e
o simbólico. Paul Willemen acrescenta que, apesar desta
dualidade levar o filme a dramatizar o conflito entre
A/B, é precisamente o "/" que constitui o
pivô enigmático da narrativa. É deste lugar intermediário,
deste ponto de inflexão entre a dicotomia, que partirá
a trama. Nos filmes com temática sobrenatural é explícito.
Desenvolve-se não o misticismo sobre a razão, ou vice-versa,
mas justamente o conflito entre ambos os pontos de vista.
Uma vez situada a força neste espaço intermediário,
fortalece-se também o poder no desconhecido. Desconhecido
que dirigirá toda a mise-en-scène de seus filmes, daí
o forte trabalho com as sombras, o fora-de-quadro, e
fica então fácil entender como sua abordagem fílmica
casa tão bem com o noir e o terror.
A mais completa revisão historiográfica sobre Tourneur,
Jacques Tourneur: The Cinema of Nightfall, de
Cris Fujiwara, interpreta o conflito de Anne a partir
da recusa da sexualidade. A descrição aborda desde a
simbologia da "cicatriz" de Bonitzer até a
noção da espada como objeto fálico, e destaca o resultante
desnorteamento da personagem. Sem dúvida o desejo tem
um papel fundamental, e a metáfora da sexualidade como
um "tesouro" não deixa de ser curiosa, mas
a questão pode ser ainda mais geral. Pois o que temos
é a recusa da
identidade.
Os personagens de Tourneur, quando sugados a este meio-ponto,
só poderiam estar desnorteados, quanto a sua crença,
seu futuro, e suas ações. O dilema da protagonista Irena
(Simone Simon) de Sangue de Pantera está incorporada
ao sobrenatural, e se situa entre suas crenças e a razão
socialmente estabelecida. Para a Capitã Anne Providence,
a protagonista de A Vingança dos Piratas, ela
está entre o papel que incorporou como capitã e sua
conflituosa feminilidade. Enquanto os filmes noir
demonizavam as mulheres independentes, dentro do
contexto de retirá-las dos papéis sociais tipicamente
masculinos, Tourneur aqui apresenta a dificuldade de
conciliar a vontade de ocupar estes papeis com o direito
de ser feminina. E, mesmo sendo um dilema na esfera
do sobrenatural e outro no real, o que se tem é a incompreensão
e a solidão de quem é obrigado a viver a margem dos
dois pólos.
Na época dos corsários, uma crença popular residia na
má fortuna gerada pela presença feminina à bordo dos
navios. Os poucos relatos de mulheres piratas encontrados
no "A General History of the Pyrates", de
Charles Johnson, indicam que elas eram obrigadas a fingir
serem homens. Apesar de todos saberem de seu verdadeiro
sexo, Anne – personagem livremente inspirada na famosa
Anne Bonny – é obrigada a se portar como homem para
cumprir seu papel social. Se as atuações em Tourneur
são reconhecidas por serem suavizadas e naturais, a
forçada impostação de voz de Anne apenas delineia uma
personagem que logo nos apresenta como feminina, mas
que sabe que sê-lo será sua ruína. Uma personalidade
que se constrói pelo mimetismo, pelas risadas sarcásticas
e que, por ter crescido na violência, sabe seu valor.
Ela nunca se demonstra frágil perante seus colegas,
nunca se demonstra verdadeira, apaixonada. Pois, ser
uma mulher implica uma constante luta com o seu contexto.
Se mulheres em navios eram visto como mau-agouro, ela
não pode mostrar sua feminilidade. Se é esperado que
ela se vista como homem, de vestido destoará de seus
companheiros. Se pretende se manter como capitã, não
pode demonstrar sentimentos, nem as características
pertinentes a uma mulher. E se pretender ser a protagonista,
roubará a cena com seu conflito interno, e abordará
o espaço como se ele não pudesse pertencer a mais ninguém.
Num primeiro momento temos toda a segurança de uma protagonista
que se definiu em seus próprios termos. Repugna as mulheres
pela sua demonstração de fraqueza e por si submeterem
a homens sem valor. Sua aceitação como mulher, o surgimento
do outro pólo a partir de uma reviravolta de seus sentimentos,
é permeada de instabilidade e confusão. A decepção do
sumiço de Pierre é recebida de quem não sabe certo a
causa, está desnorteada pois não sabe o que sente, e
muito menos como agir. Recua-se a Anne inicial,
a Anne motivada pela vingança e intolerância. Sempre
que se permite demonstrar mulher, logo age para voltar
a ser capitã. Daí a perfeita descrição de Fujiwara,
deste filme representar a definição da mise-en-scène
tourneuriana, uma coreografia de movimentos que se anulam,
um apaixonado e miserável estudo do desaparecimento
e da impermanência. Já ciente da traição, e firmemente
empenhada em vingar-se sem ética e sem moral, a mise-en-scène
também se firma, e Tourneur acentua o quão de fato parecida
ela é da Molly (Debra Paget), mulher de Pierre (Louis
Jourdan), e o quanto Anne se esforça para não se ver
como tal, não se ver como mulher. Quando Pierre a suplica
que poupe Molly, apelar pela femininidade de Anne fracassa
– é tudo que ela não quer ser; e quando apela para ter
uma morte limpa, para que ela se porte como um homem,
também falha. Anne está no meio-termo da dicotomia homem/mulher,
e como tal está alienada, perdida entre que papel exercer
e que atitudes tomar.
O desconhecido que permite a imprevisibilidade dos personagens.
O desconhecido fruto do conflito interno das personagens,
do não-dito, das sombras e do fora-de-tela. A naturalidade
das situações, a gentileza da mise-en-scène, cria o
espaço para a potencialidade do imprevisível. Havendo
tensão quando tudo parece estar em seu próprio lugar,
tudo passa a ter a carga simbólica do desnorteamento.
Tudo poderá ser fantasia ou pesadelo, tudo pode nos
surpreender. Por isso o trabalho dentro de gênero para
Tourneur não busca se contrapor, se antagonizar ao clássico.
Mas sim ter a consciência de que se pode ir muito além.
Lucas Barbi
(DVD Fox)
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