A VINGANÇA DOS PIRATAS
Jacques Tourneur, Anne of the Indies, EUA, 1951

Aventura. Piratas. Technicolor. Poderia ser mais um filme calcado no gênero, limitado pelas suas próprias fronteiras. Poderia se perder no exótico, desesperadamente clamando por atenção e agarrando os destroços do studio-system cada vez mais falido. Da mesma maneira poderia ser uma obra-prima que extrapola pela sua insubordinação. Mas a carreira de Jacques Tourneur não suporta essas características, esses extremos, e sua postura pessoal tampouco buscava demonstrar o contrário.

Em 1977 declarou que nunca recusara um roteiro, que tentava sempre fazer o melhor com o que lhe davam. Era uma negação à especialização. Como saber em que se fechar, como fazer tal escolha? Mas numa visão superficial, esta inconsistência temática seria fruto de uma fraca personalidade, de uma fraca visão de mundo que não emana maior sentido em sua tensão com o material. Enfim, apresenta-se subvalorizado em todos os tópicos que Andrew Sarris definiu em sua estamental historiografia do cinema americano. Mesmo sendo rapidamente questionada por Kael, a versão americanizada da Política dos Autores de Sarris acabou contribuindo para a desvalorização de Tourneur, categorizando sua obra como um "triunfo do gosto sobre a força". Sem querer sobrevalorizar a influência de Sarris, são poucos os filmes de Tourneur que têm hoje um maior reconhecimento pelo público, restringido principalmente a seus filmes de terror e noir.

Mas o que Sangue de Pantera (Cat People, 1942), A Morta-Viva (I Walked with a Zombie, 1943), O Homem Leopardo (The Leopard Man, 1943) e Fuga do Passado (Out of the Past, 1946] – filmes de terror e noir, onde o preto-e-branco não era resultado de uma mera economia, era uma expressão da dualidade do mundo, e as sombras estavam longe de ser inocentes – teriam em comum com um filme de piratas em Technicolor? Se por um lado poderíamos esperar navios fantasmas, isto seria em vão. A Vingança dos Piratas está mais para Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954) do que para Piratas do Caribe (Gore Verbiski, 2003). Não que Anne Providence (Jean Peters) tenha a firme obstinação de Joan Crawford, mas isso faz parte da diversão.

Todos os filmes de Tourneur lidam com a dicotomia do mundo. Fronteiras criadas pelos próprios personagens, fronteiras que oscilam entre o real, o imaginário e o simbólico. Paul Willemen acrescenta que, apesar desta dualidade levar o filme a dramatizar o conflito entre A/B, é precisamente o "/" que constitui o pivô enigmático da narrativa. É deste lugar intermediário, deste ponto de inflexão entre a dicotomia, que partirá a trama. Nos filmes com temática sobrenatural é explícito. Desenvolve-se não o misticismo sobre a razão, ou vice-versa, mas justamente o conflito entre ambos os pontos de vista. Uma vez situada a força neste espaço intermediário, fortalece-se também o poder no desconhecido. Desconhecido que dirigirá toda a mise-en-scène de seus filmes, daí o forte trabalho com as sombras, o fora-de-quadro, e fica então fácil entender como sua abordagem fílmica casa tão bem com o noir e o terror.

A mais completa revisão historiográfica sobre Tourneur, Jacques Tourneur: The Cinema of Nightfall, de Cris Fujiwara, interpreta o conflito de Anne a partir da recusa da sexualidade. A descrição aborda desde a simbologia da "cicatriz" de Bonitzer até a noção da espada como objeto fálico, e destaca o resultante desnorteamento da personagem. Sem dúvida o desejo tem um papel fundamental, e a metáfora da sexualidade como um "tesouro" não deixa de ser curiosa, mas a questão pode ser ainda mais geral. Pois o que temos é a recusa da
identidade.

Os personagens de Tourneur, quando sugados a este meio-ponto, só poderiam estar desnorteados, quanto a sua crença, seu futuro, e suas ações. O dilema da protagonista Irena (Simone Simon) de Sangue de Pantera está incorporada ao sobrenatural, e se situa entre suas crenças e a razão socialmente estabelecida. Para a Capitã Anne Providence, a protagonista de A Vingança dos Piratas, ela está entre o papel que incorporou como capitã e sua conflituosa feminilidade. Enquanto os filmes noir demonizavam as mulheres independentes, dentro do contexto de retirá-las dos papéis sociais tipicamente masculinos, Tourneur aqui apresenta a dificuldade de conciliar a vontade de ocupar estes papeis com o direito de ser feminina. E, mesmo sendo um dilema na esfera do sobrenatural e outro no real, o que se tem é a incompreensão e a solidão de quem é obrigado a viver a margem dos dois pólos.

Na época dos corsários, uma crença popular residia na má fortuna gerada pela presença feminina à bordo dos navios. Os poucos relatos de mulheres piratas encontrados no "A General History of the Pyrates", de
Charles Johnson, indicam que elas eram obrigadas a fingir serem homens. Apesar de todos saberem de seu verdadeiro sexo, Anne – personagem livremente inspirada na famosa Anne Bonny – é obrigada a se portar como homem para cumprir seu papel social. Se as atuações em Tourneur são reconhecidas por serem suavizadas e naturais, a forçada impostação de voz de Anne apenas delineia uma personagem que logo nos apresenta como feminina, mas que sabe que sê-lo será sua ruína. Uma personalidade que se constrói pelo mimetismo, pelas risadas sarcásticas e que, por ter crescido na violência, sabe seu valor. Ela nunca se demonstra frágil perante seus colegas, nunca se demonstra verdadeira, apaixonada. Pois, ser uma mulher implica uma constante luta com o seu contexto. Se mulheres em navios eram visto como mau-agouro, ela não pode mostrar sua feminilidade. Se é esperado que ela se vista como homem, de vestido destoará de seus companheiros. Se pretende se manter como capitã, não pode demonstrar sentimentos, nem as características pertinentes a uma mulher. E se pretender ser a protagonista, roubará a cena com seu conflito interno, e abordará o espaço como se ele não pudesse pertencer a mais ninguém.

Num primeiro momento temos toda a segurança de uma protagonista que se definiu em seus próprios termos. Repugna as mulheres pela sua demonstração de fraqueza e por si submeterem a homens sem valor. Sua aceitação como mulher, o surgimento do outro pólo a partir de uma reviravolta de seus sentimentos, é permeada de instabilidade e confusão. A decepção do sumiço de Pierre é recebida de quem não sabe certo a causa, está desnorteada pois não sabe o que sente, e muito menos como agir.  Recua-se a Anne inicial, a Anne motivada pela vingança e intolerância. Sempre que se permite demonstrar mulher, logo age para voltar a ser capitã. Daí a perfeita descrição de Fujiwara, deste filme representar a definição da mise-en-scène tourneuriana, uma coreografia de movimentos que se anulam, um apaixonado e miserável estudo do desaparecimento e da impermanência. Já ciente da traição, e firmemente empenhada em vingar-se sem ética e sem moral, a mise-en-scène também se firma, e Tourneur acentua o quão de fato parecida ela é da Molly (Debra Paget), mulher de Pierre (Louis Jourdan), e o quanto Anne se esforça para não se ver como tal, não se ver como mulher. Quando Pierre a suplica que poupe Molly, apelar pela femininidade de Anne fracassa – é tudo que ela não quer ser; e quando apela para ter uma morte limpa, para que ela se porte como um homem, também falha. Anne está no meio-termo da dicotomia homem/mulher, e como tal está alienada, perdida entre que papel exercer e que atitudes tomar.

O desconhecido que permite a imprevisibilidade dos personagens. O desconhecido fruto do conflito interno das personagens, do não-dito, das sombras e do fora-de-tela. A naturalidade das situações, a gentileza da mise-en-scène, cria o espaço para a potencialidade do imprevisível. Havendo tensão quando tudo parece estar em seu próprio lugar, tudo passa a ter a carga simbólica do desnorteamento. Tudo poderá ser fantasia ou pesadelo, tudo pode nos surpreender. Por isso o trabalho dentro de gênero para Tourneur não busca se contrapor, se antagonizar ao clássico. Mas sim ter a consciência de que se pode ir muito além.


Lucas Barbi

(DVD Fox)