É DE CHUÁ!
Victor Lima, Brasil, 1958

Num primeiro momento, é compreensível que, diante de um filme como É de Chuá! (Victor Lima, 1958), o sentimento dominante seja o de se estar assistindo a apenas mais uma chanchada carnavalesca corriqueira, daquelas que eram realizadas a toque de caixa todos os anos. E, de fato, É de Chuá! é isso mesmo: mais uma chanchada carnavalesca corriqueira. Eis aí toda a sua graça e originalidade para nós, espectadores caseiros de DVD no Brasil do ano de 2006.

Passados tantos anos, o filme de Victor Lima tem ressaltadas algumas potencialidades que em sua época talvez não fossem perceptíveis. Isto é menos uma vantagem para o filme do que para uma compreensão mais ampla da chanchada como fenômeno estético do cinema brasileiro. É de Chuá!, com seu total desinteresse em levar ao gênero qualquer tipo de renovação, com sua recusa em tornar sofisticadas ou plausíveis a narrativa e a mise-en-scène, alcança uma espécie de radicalidade poética. Resgatado e transformado pelo tempo, É de Chuá! parece ocupar um meio-termo entre o documentário e a comédia musical: um filme em três ou quatro acordes maiores, ou melhor, planos abertos, conjugados e montados com base na percussão. Se Jorge Ben fosse cineasta, talvez compusesse como Victor Lima.

É de Chuá!, esta comédia carnavalesca corriqueira, integra a linha mais experimental das chanchadas, aquela que começa em Luiz de Barros na Cinédia/anos 1930 e vai até Júlio Bressane e Rogério Sganzerla na Belair/anos 1970. Se buscássemos reescrever a história do cinema brasileiro tendo a chanchada, o gênero de maior permanência entre nós, como a linha central de costura de uma determinada tradição, substituiríamos imediatamente Humberto Mauro por Lulu de Barros.

São diversos os pontos que aproximam É de Chuá! das antigas comédias carnavalescas ou não que Luiz de Barros dirigiu para a Cinédia, entre elas Samba da Vida (1937), Tererê Não Resolve (1938) e Maridinho de Luxo (1938). No caso de É de Chuá! o parentesco maior é sobretudo com Samba da Vida, que apresenta inclusive um enredo próximo ao do filme de Victor Lima, particularmente em relação ao casal de trambiqueiros (Renato Restier e Renata Fronzi) que se faz passar por gente da alta sociedade para roubar jóias. Mas na verdade, o enredo pouco importa. Não é na história com começo-meio-e-fim que É de Chuá! alcança seus melhores momentos, mas na total suspensão da trama para a fluidez dos números musicais e das evoluções de Grande Otelo e Ankito pelos cenários absolutamente fakes da mansão e da antiga gafieira transformada em terreiro improvisado de Escola de Samba.

Eis porque É de Chuá! é uma chanchada radical: não há qualquer despudor em “suspender” a narrativa para fazer entrar os números musicais, principal crítica que era feita aos filmes carnavalescos. Há, aqui, quase mesmo o contrário: a música é “suspensa” para que entrem os trechos narrativos. Nada mais natural, se é justamente de números musicais enfileirados que trata o filme de Victor Lima, daí sua pegada documental. Numa época em que a crítica cinematográfica brasileira ainda dividia-se em discussões sobre forma e conteúdo, Victor Lima e os péssimos chanchadeiros faziam da ficção um documentário e da música o cinema, isto é, poesia. A matéria de É de Chuá! é o corre-corre, o cenário artificial, a câmera que se movimenta o mínimo possível, as pernas de um sambista evoluindo diante da câmera, o abre-fecha de portas, as inúmeras canções que se sucedem. Como num filme de caçadas, ou num experimento abstrato, o que importa é a forma das coisas em movimento constante. E ali estão a pobreza e a riqueza, a malandragem na alta e na baixa esfera, as regras do jogo brasileiro: Victor Lima é uma espécie de Jean Renoir da quarta-feira de cinzas.

É de Chuá!, como quase todas as chanchadas, é um filme auto-reflexivo. Sua matéria, é, enfim, a própria música de carnaval, daí sua concepção sincopada de montagem e sua harmonia de câmera, uma câmera em acordes maiores, frontais, sem dissonância, como samba de morro, bem diferente de um Roberto Faria, que procurava fazer bossa-nova cf. Um Candango na Belacap (1961).

Na chanchada é possível traçar linhas estéticas diversas: Watson Macedo e José Carlos Burle geram Roberto Faria e Carlos Manga, linha Copacabana Zona Sul; Lulu de Barros gera Victor Lima e Eurides Ramos, linha Rio Comprido Zona Norte; porém, Victor Lima é o roteirista/argumentista das melhores comédias de José Carlos Burle e Carlos Manga. Apenas para citar alguns: Carnaval Atlântida (José Carlos Burle, 1953), A Dupla do Barulho (1953), Nem Sansão Nem Dalila (1953) e Matar ou Correr (1954), os três de Carlos Manga.

O máximo no mínimo: a câmera frontal estática fazendo evoluir os atores em planos médios já era copyright da chanchada antes de ser apropriada pela segunda fase cinemanovista e depois pelo cinema experimental, notadamente nas chanchadas lisérgicas de Sganzerla, Bressane e Visconti. Como Victor Lima não tem a pretensão de ensinar boas maneiras à chanchada, o resultado de É de Chuá! oscila entre o esdrúxulo e o genial. Da primeira seqüência com Jamelão cantando Não Quero Mais aos planos documentais dos desfiles carnavalescos, temos um filme de ação musical ininterrupta. Os heróis (Ankito e Grande Otelo) pulsam na tela como figuras cinematográficas, herdeiros do cinema mudo virados pelo avesso do carnaval. É de Chuá! é cinema puro e não é nada disso: inventário desigual de tradições aberto ao espectador, anti-obra-prima definitiva como tantas outras antigas chanchadas carnavalescas corriqueiras.


Luís Alberto Rocha Melo

(DVD Europa)