POSEIDON
Wolfgang Petersen, EUA, 2006
 

A contribuição de Wolfgang Petersen para a nova onda de cinema-catástrofe – e também de remakes – chega um pouco atrasada no circuito. Talvez consciente disso, o filme apela para uma certa grosseria, um laconismo meio tosco, do tipo “vocês sabem do que se trata o filme, então vamos ao que interessa”. Reduzindo o título (era The Poseidon Adventure, mais conhecido aqui como O Destino do Poseidon) para apenas Poseidon, o filme antecipa os atalhos que vai pegar. Assistimos então ao enésimo retorno do par esteticismo/sadismo, mas com uma surpreendente economia do segundo elemento. Não há, por exemplo, a distensão sádica da espera pelo acidente: a expectativa é mínima, com dez minutos de filme a onda gigante já revirou o transatlântico e tem gente morrendo afogada, eletrocutada, esmagada... Antes do acidente, os protagonistas só aparecem em cenas breves e pouco envolventes; o filme não convida o espectador a conhecer ou se apegar a nenhum deles, como se quisesse que suas mortes eventuais fossem indiferentes. E as mortes, por sinal, logo que surgem se sucedem com uma banalidade e uma artificialidade que em alguns momentos aproximam o filme do pastiche gore.

Quando o tempo é curto e a ação urge, os clichês se tornam essenciais, daí toda a construção psicológica, e toda confrontação dramática que dela resulta, ser tão precária no filme. Psicologismo resumido e efeitos de aventura fermentados, Petersen pode se dedicar à tensão emocional pura, com o suspense dissolvido dentro da ação e não necessariamente influindo sobre a arquitetura geral do filme (se os personagens vão se salvar ou não, é uma “dúvida” que fica silenciada pelo estrondo das situações de perigo por que eles passam). As catarses, seguindo a mesma tendência, não precisam de mais que uns segundos para se resolver. À semelhança do filme original, os passageiros do navio comemoram a noite de Ano Novo, e se há uma coisa que não pode faltar nessa data é o espetáculo pirotécnico. Disso Petersen entende, ou ao menos deveria entender – ainda que seu melhor filme em Hollywood continue sendo um thriller com pano de fundo político, no qual ele fez valer qualidades de artesão e deixou as erupções cenográficas de lado (Na Linha de Fogo), e seus piores momentos estejam em proporção direta com o grau de pirotecnia (Tróia sendo hors-concours). Em Poseidon a fórmula é primária: ação, emoção, perigo, heroísmo, uma ou outra brecha para um sentimentalismo sem grandes ambições. Tudo muito simples e muito pragmático no novo filme de Wolfgang Petersen.

Nem tudo. Através do pequeno painel de personagens que os dez ou quinze primeiros minutos montam, o filme mal ou bem cria um enunciado que extrapola em muito o confronto do homem com uma força da natureza à qual nem sua mais evoluída engenharia resiste. Do ponto de vista dramático, o mais importante desses personagens é Robert Ramsey (Kurt Russell), o que tem mais memória, ou seja, mais traumas. Ele foi um bombeiro com fama de herói no passado, mas sua posterior experiência como prefeito de Nova York foi desastrosa, terminando com a renúncia ao cargo. Robert tem uma filha, Jennifer, e esta por sua vez tem um namorado com quem deseja casar em breve, mas com quem o pai não simpatiza de todo (a relação entre Robert e a filha dá os sinais de desgaste de que precisamos para compreender rapidamente a “falta da mãe” naquele pequeno núcleo familiar). Após o acidente, um grupo se forma e decide partir em busca de uma saída antes que o navio afunde de vez. Para compor o grupo, além de Robert, sua filha e o namorado dela, nada mais nada menos que a tipologia padrão na América de hoje: Dylan (Josh Lucas), um mercenário que pula de navio em navio para arrancar dinheiro de milionários bêbados no pôquer, e que viverá sua noite de Indiana Jones; Elena, jovem latina que entrou clandestinamente no navio porque precisa ir a Nova York visitar o irmão doente; Richard Nelson (Richard Dreyfuss um tanto desinteressado, apático), triste porque perdeu o namorado, e dono de um impulso suicida que será retido pela onda assassina; Valentin, um outro latino, que trabalha na cozinha do navio; Maggie, mulher desquitada que Dylan paquera no início, e o filho Conor, distraído o suficiente para demandar proteção extra; Lucky Larry, o jackass do filme, texano inconveniente cuja “sorte” será morrer ainda na primeira parte da aventura.

Esse reduzido porém diversificado corpo social recoloca Robert diante de um teste no qual ele havia sido reprovado uma vez. Sob os jorros de adrenalina de Poseidon, vemos se configurar um filme sobre a recuperação do sentido de comunidade e liderança. A jornada pelo casco do navio, para Robert, terá a função de reconciliá-lo – em uma só tacada, propiciada pela situação-limite – com a capacidade de administrar um grupo de pessoas (embora o verdadeiro poder sobre o grupo seja exercido por Dylan, o protótipo do novo líder), com o heroísmo dos tempos de bombeiro e com o amor da filha. O navio (o mundo) estando de cabeça para baixo, resta a essa comunidade ameaçada achar uma saída. Quem deverá morrer e quem deverá sobreviver?

Morrem, de forma intervalada, o texano boçal, os dois membros latinos do grupo e, quase no final, morre Robert após um último ato de heroísmo. A primeira dessas mortes, a de Valentin, ocorre quando ele é largado por Richard no poço do elevador. A segunda, de Larry, deriva de sua teimosia e é quase “merecida” por ele. A morte de Elena – que minutos antes havia posto em risco a vida de Dylan e de Richard por conta do medo que a impedia de agir – é a mais circunstancial, e a tentativa de ressuscitá-la, a despeito da pouca insistência, sugere sua aceitação na comunidade. Até então, “seleção natural”: para atingir uma unidade superior, uma noção mais central de comunidade, o acaso entra em jogo, o acidente dá conta do equilíbrio. Robert parece ser o único a morrer de maneira mais “elevada”: ele, que no passado falhou na administração de uma cidade, traindo a confiança nele depositada, precisa agora se sacrificar por um coletivo. O destino lhe dá uma chance de se redimir, e ele aproveita mesmo sabendo que é sua última ação no mundo. Robert não deixa que o namorado de Jennifer arrisque a vida dele e a felicidade dela; Robert salva sua família e por tabela salva tudo aquilo que gira ao seu redor – assim funciona, aliás, a ficção familiar nos moldes que Spielberg levou ao extremo em Guerra dos Mundos. O lado obscuro do filme é tão-somente essa inevitabilidade do destino, essa falsa aleatoriedade segundo a qual as diferenças são apagadas. O filme fala de uma ordem que transfere ao acaso, às vezes com uma forcinha a mais – como expressa sob a sinistra demonstração de instinto de sobrevivência (novamente a cena no poço do elevador) –, o trabalho sujo de extirpar da comunidade não apenas o estrangeiro, o ilegal, mas também as versões inconvenientes do elemento interno (o novo-rico, o mau político). Em toda reforma, há o estágio intermediário de eliminação do que não interessa ao projeto futuro: Poseidon é mais ou menos o registro desse estágio.

No final do filme, tão brusco quanto o início, os helicópteros de resgate não demoram a encontrar os sobreviventes, poupando-os da experiência de ficar à deriva por muito tempo (o grupo ali já se acha estabilizado). Porém algo mais pode afundar além do navio, porque Poseidon é um blockbuster sujeito à piada fácil de naufrágio comercial. O filme deixa aflorar sua rusticidade política da mesma forma que não demonstra nenhum cuidado no acabamento narrativo e dramatúrgico. É como uma obra que, mesmo no dia da inauguração, ainda traz uns vergalhões à mostra. A mestria em algumas cenas de ação, que nos mantêm minimante tensos e atentos, não basta para recobrir as muitas falhas do filme.


Luiz Carlos Oliveira Jr.