A
contribuição de Wolfgang Petersen para a nova onda de
cinema-catástrofe – e também de remakes – chega
um pouco atrasada no circuito. Talvez consciente disso,
o filme apela para uma certa grosseria, um laconismo
meio tosco, do tipo “vocês sabem do que se trata o filme,
então vamos ao que interessa”. Reduzindo o título (era
The Poseidon Adventure, mais conhecido
aqui como O Destino do Poseidon) para apenas
Poseidon, o filme antecipa os atalhos que vai
pegar. Assistimos então ao enésimo retorno do par esteticismo/sadismo,
mas com uma surpreendente economia do segundo elemento.
Não há, por exemplo, a distensão sádica da espera pelo
acidente: a expectativa é mínima, com dez minutos de
filme a onda gigante já revirou o transatlântico e tem
gente morrendo afogada, eletrocutada, esmagada... Antes
do acidente, os protagonistas só aparecem em cenas breves
e pouco envolventes; o filme não convida o espectador
a conhecer ou se apegar a nenhum deles, como se quisesse
que suas mortes eventuais fossem indiferentes. E as
mortes, por sinal, logo que surgem se sucedem com uma
banalidade e uma artificialidade que em alguns momentos
aproximam o filme do pastiche gore.
Quando o tempo é curto e a ação urge, os clichês se
tornam essenciais, daí toda a construção psicológica,
e toda confrontação dramática que dela resulta, ser
tão precária no filme. Psicologismo resumido e efeitos
de aventura fermentados, Petersen pode se dedicar à
tensão emocional pura, com o suspense dissolvido dentro
da ação e não necessariamente influindo sobre a arquitetura
geral do filme (se os personagens vão se salvar ou não,
é uma “dúvida” que fica silenciada pelo estrondo das
situações de perigo por que eles passam). As
catarses, seguindo a mesma tendência, não precisam de
mais que uns segundos para se resolver. À semelhança
do filme original, os passageiros do navio comemoram
a noite de Ano Novo, e se há uma coisa que não pode
faltar nessa data é o espetáculo pirotécnico. Disso
Petersen entende, ou ao menos deveria entender – ainda
que seu melhor filme em Hollywood continue sendo um
thriller com pano de fundo político, no qual ele fez
valer qualidades de artesão e deixou as erupções cenográficas
de lado (Na Linha de Fogo), e seus piores momentos
estejam em proporção direta com o grau de pirotecnia
(Tróia sendo hors-concours). Em Poseidon a
fórmula é primária: ação, emoção, perigo, heroísmo,
uma ou outra brecha para um sentimentalismo sem grandes
ambições. Tudo muito simples e muito pragmático no novo
filme de Wolfgang Petersen.
Nem tudo. Através do pequeno painel de personagens que
os dez ou quinze primeiros minutos montam, o filme mal
ou bem cria um enunciado que extrapola em muito o confronto
do homem com uma força da natureza à qual nem sua mais
evoluída engenharia resiste. Do ponto de vista dramático,
o mais importante desses personagens é Robert Ramsey
(Kurt Russell), o que tem mais memória, ou seja, mais
traumas. Ele foi um bombeiro com fama de herói no passado,
mas sua posterior experiência como prefeito de Nova
York foi desastrosa, terminando com a renúncia ao cargo.
Robert tem uma filha, Jennifer, e esta por sua vez tem
um namorado com quem deseja casar em breve, mas com
quem o pai não simpatiza de todo (a relação entre Robert
e a filha dá os sinais de desgaste de que precisamos
para compreender rapidamente a “falta da mãe” naquele
pequeno núcleo familiar). Após o acidente, um grupo
se forma e decide partir em busca de uma saída antes
que o navio afunde de vez. Para compor o grupo, além
de Robert, sua filha e o namorado dela, nada mais nada
menos que a tipologia padrão na América de hoje: Dylan
(Josh Lucas), um mercenário que pula de navio em navio
para arrancar dinheiro de milionários bêbados no pôquer,
e que viverá sua noite de Indiana Jones; Elena, jovem
latina que entrou clandestinamente no navio porque precisa
ir a Nova York visitar o irmão doente; Richard Nelson
(Richard Dreyfuss um tanto desinteressado, apático),
triste porque perdeu o namorado, e dono de um impulso
suicida que será retido pela onda assassina; Valentin,
um outro latino, que trabalha na cozinha do navio; Maggie,
mulher desquitada que Dylan paquera no início, e o filho
Conor, distraído o suficiente para demandar proteção
extra; Lucky Larry, o jackass do filme, texano
inconveniente cuja “sorte” será morrer ainda na primeira
parte da aventura.
Esse reduzido porém diversificado corpo social recoloca
Robert diante de um teste no qual ele havia sido reprovado
uma vez. Sob os jorros de adrenalina de Poseidon,
vemos se configurar um filme sobre a recuperação do
sentido de comunidade e liderança. A jornada pelo casco
do navio, para Robert, terá a função de reconciliá-lo
– em uma só tacada, propiciada pela situação-limite
– com a capacidade de administrar um grupo de pessoas
(embora o verdadeiro poder sobre o grupo seja exercido
por Dylan, o protótipo do novo líder), com o heroísmo
dos tempos de bombeiro e com o amor da filha. O navio
(o mundo) estando de cabeça para baixo, resta a essa
comunidade ameaçada achar uma saída. Quem deverá morrer
e quem deverá sobreviver?
Morrem, de forma intervalada, o texano boçal, os dois
membros latinos do grupo e, quase no final, morre Robert
após um último ato de heroísmo. A primeira dessas mortes,
a de Valentin, ocorre quando ele é largado por Richard
no poço do elevador. A segunda, de Larry, deriva de
sua teimosia e é quase “merecida” por ele. A morte de
Elena – que minutos antes havia posto em risco a vida
de Dylan e de Richard por conta do medo que a impedia
de agir – é a mais circunstancial, e a tentativa de
ressuscitá-la, a despeito da pouca insistência, sugere
sua aceitação na comunidade. Até então, “seleção natural”:
para atingir uma unidade superior, uma noção mais central
de comunidade, o acaso entra em jogo, o acidente dá
conta do equilíbrio. Robert parece ser o único a morrer
de maneira mais “elevada”: ele, que no passado falhou
na administração de uma cidade, traindo a confiança
nele depositada, precisa agora se sacrificar por um
coletivo. O destino lhe dá uma chance de se redimir,
e ele aproveita mesmo sabendo que é sua última ação
no mundo. Robert não deixa que o namorado de Jennifer
arrisque a vida dele e a felicidade dela; Robert salva
sua família e por tabela salva tudo aquilo que gira
ao seu redor – assim funciona, aliás, a ficção familiar
nos moldes que Spielberg levou ao extremo em Guerra
dos Mundos. O lado obscuro do filme é tão-somente
essa inevitabilidade do destino, essa falsa aleatoriedade
segundo a qual as diferenças são apagadas. O filme fala
de uma ordem que transfere ao acaso, às vezes
com uma forcinha a mais – como expressa sob a sinistra
demonstração de instinto de sobrevivência (novamente
a cena no poço do elevador) –, o trabalho sujo de extirpar
da comunidade não apenas o estrangeiro, o ilegal, mas
também as versões inconvenientes do elemento interno
(o novo-rico, o mau político). Em toda reforma,
há o estágio intermediário de eliminação do que não
interessa ao projeto futuro: Poseidon é mais
ou menos o registro desse estágio.
No final do filme, tão brusco quanto o início, os helicópteros
de resgate não demoram a encontrar os sobreviventes,
poupando-os da experiência de ficar à deriva por muito
tempo (o grupo ali já se acha estabilizado). Porém algo
mais pode afundar além do navio, porque Poseidon
é um blockbuster sujeito à piada fácil de naufrágio
comercial. O filme deixa aflorar sua rusticidade política
da mesma forma que não demonstra nenhum cuidado no acabamento
narrativo e dramatúrgico. É como uma obra que, mesmo
no dia da inauguração, ainda traz uns vergalhões à mostra.
A mestria em algumas cenas de ação, que nos mantêm minimante
tensos e atentos, não basta para recobrir as muitas
falhas do filme.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
|