Pergunte
ao Pó é um filme que bebe de uma fonte (ao adaptar
a obra de John Fante) que não se enquadra exatamente
em seus moldes de proposta narrativa e muito menos nos
de proposta formal. Essa inadequação se dá, já de partida,
muito porque o estilo literário do livro é crucial para
que se compreenda que história é aquela, que personagens
são aqueles. Ora, Pergunte ao Pó, romance da
década de 30, é escrito em primeira pessoa. Quem nos
conta é Arturo Bandini, alter-ego de Fante. Não
é necessariamente a narrativa que sobressai, mas a sensação
de estar muito próximo do personagem e de perceber suas
vivências, sensações e emoções, de comover-se ou debochar
dele, não meramente pelo que é contado, mas muito porque
se compreende o que se passa ali, sente-se o clima,
capta-se a insegurança de uma afirmação ou o êxtase
que talvez precisasse ser contido.
O filme de Robert Towne em momentos é narrado em primeira
pessoa através de uma voz over que relata os
dias e os fatos do protagonista. Contudo, mesmo partindo
dessa tentativa de relacionar algo da forma do filme
ao estilo do texto, o filme não consegue experimentar
nenhuma aproximação real. A verdade é que os estilos
e os climas de ambas as obras (se é que o filme propõe
ou preocupa-se com estilo) nem se assemelham, nem sequer
se cruzam em algum ponto; não que haja, a priori, algum
problema nisso.
Existe, contudo, acerca do filme, um fato importante:
ele quis existir construindo-se a partir de uma, senão
fidelidade, aproximação à obra literária e, para alcançar
tal feito, enleou-se ao enredo. Na verdade, extraiu
uma parte bruta do enredo, o que há de simplesmente
factual, e construiu-se a partir de um certo cinema.
Faz isso adaptando uma obra de um escritor que, já num
grande momento do cinema americano como indústria (década
de 30), fazia uma literatura que ia de encontro à literatura
americana de sucesso na época – uma literatura já com
fortes vínculos com o cinema, uma literatura de tradição
que influenciava ao mesmo tempo em que também era influenciada
pelo cinema hollywoodiano.
Pois a adaptação para os cinemas já nasce dessa tradição
narrativa da qual Fante, em Pergunte ao Pó, se
distancia, já surge nessa indústria cultural, de entretenimento
e quer buscar fora disso alguma força, mas se perde,
porque parece não ter consciência de sua condição primeira,
que está ali e é inerente ao filme antes mesmo dele
ser filmado, se mostra inconsciente de sua situação
até mesmo tentando trabalhar seus atores, que já são
personagens (personas) de um star system
e que nem chegam a ser Bandini e Camila, são apenas
Colin Farrell e Salma Hayek tentando ser Bandini e Camila.
E até poder-se-ia ter trabalhado essa persona
Farrell para construir um novo personagem, que não é
o Bandini de Fante, mas um outro Bandini de um outro
Pergunte ao Pó, o de Towne. E é aí que parece
estar o grande problema do filme.
Dois famosos atores de Hollywood encarnam dois personagens
excluídos desse próprio mundo idealizado que é Hollywood,
que é a Califórnia. São personagens marginais e o filme
não mostra que sabe lidar com isso; não admite que seu
"herói" é um anti-herói - o gosto de sangue
na boca narrado no início do filme expõe a condição
de incômodo do personagem, mas esse desconforto, essa
não-adequação não se desenvolvem no filme. O medo que
Bandini tem de ser ele mesmo, pobre descendente de italianos,
é um medo que o diretor e os atores tiveram ao construir
esse mundo e esses personagens, um medo que não os faz
abraçá-los. Aqui, o grande amor conturbado de Bandini
e Camila se mostra problemático apenas pelo fator racial,
pela origem da garçonete. Tanto que esta acaba sendo
a grande questão do filme, e a trama ainda trata de
arrebatar o romance com uma infeliz tuberculose, que
chega para dar um jeito nesse amor que não pode existir
porque Camila López é uma mexicana na América em plena
crise econômica e social dos anos 30, mais especificamente
na cidade dos sonhos de ouro e das aparências que Los
Angeles representa.
Transposto para os cinemas, o amor de Arturo Bandini
e Camila López não é envolvente, não é excitante, inspirador.
Os gênios dos personagens em suas incríveis complexidades
nem parecem importar: a insegurança de Bandini, sem
saber como agir com a vida prática, com o fato de se
sentir inferior àquela grandiosa civilização de aparências
perfeitas, num conflito de sentir-se excluído e querer
integrar-se, sem saber como lidar com a mexicana impulsiva,
com sua instabilidade. O que existe é uma constante
melodramática que nem se esconde nem se expõe, há uma
moral que ronda, uma moral que está impregnada no filme
que contou a história, e para o filme essa é uma história
de um amor que não pode concretizar-se por questões
sociais e raciais. Aqui, Camila López não é a Camila
de Fante, está mais próxima de uma Dama das camélias,
de Alexandre Dumas, Camille adaptada para os cinemas
por George Cukor: a mulher nociva que não pode ser amada,
da qual o destino dá conta e a arrebata com uma tuberculose,
persona non grata que tem de ser fragilizada
e, enfim, deve morrer. E nossa mexicana suja e pobre,
Camille López morre de tuberculose e, abafada, é enterrada
na beira do deserto, sob uma cruz branca, como não podia
deixar de ser a cor desta cruz.
O filme é desajeitado e incompetente se pretendia utilizar
a potente essência da obra original que adapta. Para
além dessas questões, o mais grave é que nem consiga
se utilizar do enredo para fazer um filme clássico narrativo
enérgico. Towne pode ter tido a vontade de fazer um
filme clássico, um melodrama bem comportado para emocionar
multidões, suscitar e aplacar os sentimentos da audiência
ao mesmo tempo em que os neutralizasse na própria sala
de cinema, não dilatando questões ou sensações para
além dali. E talvez tenha sido mesmo essa a sua intenção,
mas Pergunte ao Pó não consegue ser um filme
coeso o suficiente, e definitivamente não possui vigor
que baste para engajar e comover o público.
Luisa Marques
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