Fontoura,
diretor de Copacabana Me Engana e Rainha Diaba,
estava disposto a enfrentar a dura tarefa de mexer no
vespeiro que é a interação entre ricos e pobres, permitindo
a leitura socio-política mais direta possível. Para
levar a cabo a tarefa, fez com que um menino mimado
e entediado do Leblon conhecesse, no sinal de trânsito,
um moleque malabarista da favela do Vidigal. Estamos
no Rio de Janeiro, cidade em que a pobreza convive diariamente
com as classes média e alta sem que estas se isolem
em condomínios ou carros blindados. Bem, há exceções,
mas é fato que o Rio lida melhor com a desigualdade
social do que qualquer outra cidade grande brasileira.
Essa maneira da burguesia carioca de absorver a miséria
ao seu redor favorece a abordagem de Fontoura, que,
entretanto, parece mais preocupado em construir sua
fábula humanista de maneira extremamente didática do
que em tornar o filme palatável em seu desenvolvimento
dramatúrgico. Por isso o filme tem cenas risíveis como
a que se passa na aula de inglês, logo no começo do
filme, em que a professora ensina partes do corpo humano
com uma musiquinha e o auxílio de gestos que apontam
tais partes. A câmera acompanha os movimentos freneticamente,
em vez de adotar um plano mais geral, que mostrasse
melhor o gestual. Head-shoulders-knees-and-toes, knees-and-toes,
segue a musiquinha, mas não dá para ter uma noção clara
de como é a pseudo-coreografia que ela comanda. É uma
maneira de não valorizar, ou não dar a devida atenção
aos corpos que ocupam a tela, com uma câmera que se
sente obrigada a fazer movimentos bruscos para dar conta
de pegar todas as crianças seguindo a coreografia.
Exemplos como esse, de uma câmera desastrada no registro
dos corpos ou mesmo na exploração do espaço cênico,
se atropelam durante a projeção. Mas se não convém malhar
um filme somente pelo relaxo formal, como costumam dizer
os conteudistas – e neste caso relaxo formal é um tremendo
eufemismo, o que configura certa condescendência em
nome das boas intenções – pensemos apenas na narrativa
e em como o diretor constrói o relato da amizade edulcorada.
Aí entramos no reino dos personagens que mudam de idéia
como trocam de sapatos, e deixam de ser fascistas ou
histéricos para se tornar justos e compreensivos, defensores
do humanismo a qualquer custo. Num mundo em que os abastados
criam seus filhos como marionetes de suas frustrações
passadas – e isso fica claro numa fala constrangedora
do personagem de Tarcisio Filho – nada mais resta aos
novilhos do que buscar o prazer no mundano, no que é
proibido. Claro, o menino rico não pode ter amigos ricos,
pois vive de um compromisso a outro, como um executivo
mirim que se prepara para a guerra do capitalismo. Ele
se diverte com o simples da vida, com as bolinhas que
sobem e descem nas mãos de outras crianças. Inveja o
pobre e sua habilidade manual. O pobre, por sua vez,
é um exemplo de caráter. Não sente inveja, apenas acha
o maior barato o joguinho eletrônico do menino rico.
Não que o sentimento de inveja seja um sinal de falha
no caráter. Pelo contrário, é algo humano, que falta
ao moleque para dar uma dimensão mais convincente ao
personagem. Nada a ver com um pedido por verossimilhança.
É tão somente o caso de um problema de coerência. Como
simpatizar com um personagem sem dimensão humana, um
Cristo na terra? Só se fizermos vistas grossas. Todos
os favelados retratados pelo filme são assim, desconfiados,
mas com personalidade à prova de questionamentos, exceto
os que trabalham para o tráfico de drogas. É simplório,
para dizer o mínimo, e demagogo.
A situação de guerra permanente em uma favela teve representação
satisfatória em No Meio da Rua, pelo menos no
que entendemos como uma representação crível da situação
de caos urbano que vivemos. Mas quando um ator é obrigado
a atuar, dentro dessa representação, o patético é inevitável,
como sempre que se exige dramaturgia dentro do filme.
Não é preciso falar da preguiça na (não) composição
do quadro e da geografia do cenário, em que uma sala
de aula parece não ter paredes laterais, e a ambientação
no morro parece só se justificar pela bela vista que
se tem lá de cima, para não falar da falta de noção
da visão de uma pessoa na seqüência tosca em que os
meninos espiam os ladrões do joguinho na casa de um
manda-chuva do tráfico. Se a intenção era evitar o plano-contraplano,
a alternativa ficou risível, com a desnecessária opção
de mostrar as cabeças dos que espiam no mesmo plano,
tornando-os facilmente perceptíveis pelos espionados.
O filme falha ainda mais justamente onde pretende ser
tocante: na falsa interação entre as classes no final,
onde um joguinho dado ao favelado não provoca maiores
problemas para ele, e o menino rico tem a compreensão
de seus pais, anteriormente encastelados em um mundo
onde o que vinha das ruas era necessariamente nocivo
aos hábitos civilizados. Existe um respiro, que se dá
quando as crianças pobres ensinam o almofadinha a pedir
dinheiro na rua. Um breve momento em que a câmera se
liberta de sua moldura humanista e mergulha apaixonada
na diversão da garotada. Um momento que não redime o
filme de ser um equivocado manifesto pela inclusão social.
Sérgio Alpendre
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