NO MEIO DA RUA
Antonio Carlos da Fontoura, Brasil, 2005
 

Fontoura, diretor de Copacabana Me Engana e Rainha Diaba, estava disposto a enfrentar a dura tarefa de mexer no vespeiro que é a interação entre ricos e pobres, permitindo a leitura socio-política mais direta possível. Para levar a cabo a tarefa, fez com que um menino mimado e entediado do Leblon conhecesse, no sinal de trânsito, um moleque malabarista da favela do Vidigal. Estamos no Rio de Janeiro, cidade em que a pobreza convive diariamente com as classes média e alta sem que estas se isolem em condomínios ou carros blindados. Bem, há exceções, mas é fato que o Rio lida melhor com a desigualdade social do que qualquer outra cidade grande brasileira. Essa maneira da burguesia carioca de absorver a miséria ao seu redor favorece a abordagem de Fontoura, que, entretanto, parece mais preocupado em construir sua fábula humanista de maneira extremamente didática do que em tornar o filme palatável em seu desenvolvimento dramatúrgico. Por isso o filme tem cenas risíveis como a que se passa na aula de inglês, logo no começo do filme, em que a professora ensina partes do corpo humano com uma musiquinha e o auxílio de gestos que apontam tais partes. A câmera acompanha os movimentos freneticamente, em vez de adotar um plano mais geral, que mostrasse melhor o gestual. Head-shoulders-knees-and-toes, knees-and-toes, segue a musiquinha, mas não dá para ter uma noção clara de como é a pseudo-coreografia que ela comanda. É uma maneira de não valorizar, ou não dar a devida atenção aos corpos que ocupam a tela, com uma câmera que se sente obrigada a fazer movimentos bruscos para dar conta de pegar todas as crianças seguindo a coreografia.

Exemplos como esse, de uma câmera desastrada no registro dos corpos ou mesmo na exploração do espaço cênico, se atropelam durante a projeção. Mas se não convém malhar um filme somente pelo relaxo formal, como costumam dizer os conteudistas – e neste caso relaxo formal é um tremendo eufemismo, o que configura certa condescendência em nome das boas intenções – pensemos apenas na narrativa e em como o diretor constrói o relato da amizade edulcorada. Aí entramos no reino dos personagens que mudam de idéia como trocam de sapatos, e deixam de ser fascistas ou histéricos para se tornar justos e compreensivos, defensores do humanismo a qualquer custo. Num mundo em que os abastados criam seus filhos como marionetes de suas frustrações passadas – e isso fica claro numa fala constrangedora do personagem de Tarcisio Filho – nada mais resta aos novilhos do que buscar o prazer no mundano, no que é proibido. Claro, o menino rico não pode ter amigos ricos, pois vive de um compromisso a outro, como um executivo mirim que se prepara para a guerra do capitalismo. Ele se diverte com o simples da vida, com as bolinhas que sobem e descem nas mãos de outras crianças. Inveja o pobre e sua habilidade manual. O pobre, por sua vez, é um exemplo de caráter. Não sente inveja, apenas acha o maior barato o joguinho eletrônico do menino rico. Não que o sentimento de inveja seja um sinal de falha no caráter. Pelo contrário, é algo humano, que falta ao moleque para dar uma dimensão mais convincente ao personagem. Nada a ver com um pedido por verossimilhança. É tão somente o caso de um problema de coerência. Como simpatizar com um personagem sem dimensão humana, um Cristo na terra? Só se fizermos vistas grossas. Todos os favelados retratados pelo filme são assim, desconfiados, mas com personalidade à prova de questionamentos, exceto os que trabalham para o tráfico de drogas. É simplório, para dizer o mínimo, e demagogo.

A situação de guerra permanente em uma favela teve representação satisfatória em No Meio da Rua, pelo menos no que entendemos como uma representação crível da situação de caos urbano que vivemos. Mas quando um ator é obrigado a atuar, dentro dessa representação, o patético é inevitável, como sempre que se exige dramaturgia dentro do filme. Não é preciso falar da preguiça na (não) composição do quadro e da geografia do cenário, em que uma sala de aula parece não ter paredes laterais, e a ambientação no morro parece só se justificar pela bela vista que se tem lá de cima, para não falar da falta de noção da visão de uma pessoa na seqüência tosca em que os meninos espiam os ladrões do joguinho na casa de um manda-chuva do tráfico. Se a intenção era evitar o plano-contraplano, a alternativa ficou risível, com a desnecessária opção de mostrar as cabeças dos que espiam no mesmo plano, tornando-os facilmente perceptíveis pelos espionados.

O filme falha ainda mais justamente onde pretende ser tocante: na falsa interação entre as classes no final, onde um joguinho dado ao favelado não provoca maiores problemas para ele, e o menino rico tem a compreensão de seus pais, anteriormente encastelados em um mundo onde o que vinha das ruas era necessariamente nocivo aos hábitos civilizados. Existe um respiro, que se dá quando as crianças pobres ensinam o almofadinha a pedir dinheiro na rua. Um breve momento em que a câmera se liberta de sua moldura humanista e mergulha apaixonada na diversão da garotada. Um momento que não redime o filme de ser um equivocado manifesto pela inclusão social.


Sérgio Alpendre