Há
algo de muito curioso no modo como A Mochila do Mascate
se mostra inicialmente ao espectador. Mais uma cinebiografia,
desta vez em forma de documentário das memórias do cenógrafo
e diretor de teatro Gianni Ratto; o caráter de homenagem
irrestrita é aumentado quando vemos que os próprios
filhos de Ratto produzem o filme, e seus nomes são os
únicos que aparecem nos letreiros iniciais do filme,
dizendo literalmente que apresentarão tudo aquilo que
virá pela frente. Culto à genialidade esquecida de um
homem fundamental para a arte dramática brasileira,
mas que parece hoje apenas um figurante numa história
que ajudou a construir, um filme para dar visibilidade
ao invisível, dividir com o público aquilo que só os
filhos, a família, e os amigos de trabalho ainda se
lembram e valorizam. Cena a cena, da primeira à última
imagem, o filme de Gabriela Greeb irá desfazer cada
uma destas impressões equivocadas – e que elas sejam
mesmo irresistíveis numa olhada rápida sobre o projeto
parece ser até algo calculado e desejado pelos produtores
e pela diretora. No corpo de A Mochila do Mascate
ecoa uma idéia muito defendida por seu protagonista
em vários dos belos depoimentos que distribui pelo filme:
a consideração da arte (o teatro, no caso específico,
mas na verdade qualquer uma das outras) como terreno
fundamentalmente cultivado pelo e para o diálogo. Atitude
imprescindível neste movimento de aproximação de um
personagem tão estabelecido e consciente de si mesmo,
Gabriela Greeb transforma as crenças do retratado nas
crenças do próprio retrato que constrói, e problematizada
em todas as suas instâncias, esta divisão de uma mesma
fé nunca se transforma em adesão cega e automática.
Se A Mochila do Mascate traz para sua estrutura
aquilo que move Ratto enquanto artista, é tão somente
para dialogar com seu personagem exatamente nos termos
em que ele propõe esta troca.
Nessa direção, A Mochila do Mascate assume seu
primeiro grande risco ao dividir internamente funções
antes raramente dissociadas: cabe à Aimar Labaki a longa
entrevista com o protagonista, e Gabriela Greeb se desvencilha
desse “direito inalienável” do documentarista de interrogar
ele mesmo seu objeto de interesse para se relacionar
com Gianni Ratto num outro nível. É menos uma disposição
de extrair de um personagem aquilo que mais interessar
a quem pinta seu retrato, como se o trabalho de um documentário
fosse garimpar verdades subterrâneas e trazer à tona
aquelas que, em conjunto, formassem um painel condizente
àquele imaginado pelo retratista. Diante de alguém como
Ratto, essa disposição mostra-se totalmente falida,
pois já há ali alguém que soube enterrar e desenterrar
um sem-número de verdades pessoais ao longo da vida,
e que chega na altura em que o documentário o encontra
absolutamente senhor de suas afetividades. Daí que todo
o fluxo de registro tradicional de A Mochila do Mascate,
o depoimento sentado e parado para uma câmera quase
jornalística, toma ares de quase um auto-retrato, dado
o domínio de Ratto sobre aquela mise en scène conformada.
É a partir do que surge dessa consideração de si mesmo
em voz alta (como no livro autobiográfico escrito por
Ratto e de cujo título o filme toma emprestado o seu
próprio) que a diretora irá construir um segundo fluxo
de registro, que poderíamos chamar de puramente “poético”.
São imagens da natureza captadas em vídeo e transferidas
para película, onde o efeito da granulação fica muito
evidente, ou mesmo encenações ficcionais feitas diretamente
para a câmera de cinema, como quando vemos uma mulher
com um livro nas mãos caminhar por uma praia até chegar
a um grupo de pedras que divisam a areia do mar. Essas
poesias filmadas não funcionam meramente como metáforas
sobre o personagem central, ou mesmo como ilustração
imediata daquilo que ele fala. Gabriela Greeb mantém
uma certa independência entre estes dois tipos de registro,
e no confronto entre eles materializa em A Mochila
do Mascate a tese do cenógrafo sobre a arte como
um palco de debate, onde uma expressão inicial, para
se efetivar, precisa de uma resposta igualmente expressiva
de quem quer que se disponha a estabelecer um diálogo.
Muito difícil escapar do ranço de videoartismo modernoso,
mas essa entrega tão sincera às idéias de Gianni Ratto
empresta, mesmo a estes momentos de gosto duvidoso,
uma efetividade e uma validade únicas. A consciência
da fragilidade das próprias imagens que forja fica evidente
quando ouvimos o depoimento de Nina Strehler, mulher
do diretor italiano Giorgio Strehler, com quem Ratto
teve uma profícua relação nos palcos. Nina diz que perto
de Gianni e de seu marido, os contemporâneos ficam muito
menores. Sobre esta frase tão emblemática de um confronto
geracional, A Mochila do Mascate faz aparecer
a imagem fixa e em câmera lenta da entrada do Teatro
Piccolo, a casa de espetáculos que Ratto e Strehler
fundaram em Milão na década de 50. Pela frente da fachada
neoclássica do teatro passam algumas pessoas, com seu
passo alterado pela velocidade reduzida, e bem no centro
do grande portal de acesso ao lugar vemos conviver a
placa de alvenaria onde primeiro esteve escrito o nome
do Piccolo, para bem abaixo dela se apresentar um letreiro
eletrônico cujas letras vermelhas e luminosas passam
de um lado para outro anunciando a mesma informação
que a placa antiga já trazia. Uma relação semelhante
irá se estabelecer entre as poesias filmadas e a animação
dos croquis de vários dos cenários que Ratto construiu
para espetáculos na Itália e no Brasil. De um lado a
pós-modernidade do vídeo, das angulações virtuosas,
das sacadas poéticas, do outro o moderno romantismo
do traço de carvão sobre papel, da pintura em aquarela,
da construção de uma estrutura cênica. Neste último
caso fica muito evidente que Nina Strehler talvez tenha
mesmo razão. Mas não foi, em nenhum momento, uma pretensão
de A Mochila do Mascate ser tão grande quanto
Gianni Ratto. Seu atrevimento, muito bem-vindo, é o
de reconhecer nesta grandeza a necessidade de uma postura
mais articulada que a simples exaltação daquilo que,
por si só, já se anuncia maior. Se assume este risco
e sofre as conseqüências dele (uma certa irregularidade
entre os diversos tipos de registro, uma diferença abissal
entre o dinamismo do road movie memorial rodado no retorno
de Ratto à Itália natal e a apatia do documentário tradicional
no trecho brasileiro), é daí que também tira sua maior
força. Não negar a resposta a um chamado feito por seu
próprio objeto, mas pelo contrário, assumi-lo em sua
integridade, para então se jogar na instabilidade do
debate. Importa pouco quem o vença: de uma experiência
dessas saímos todos ganhando.
Rodrigo de Oliveira
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