Para
quem esperava apenas mais um filme de época, a surpresa
vem no primeiro plano: John Wilmot (Johnny Depp), o
Conde de Rochester, sai da escuridão como um fantasma
que retorna vingativo e, olhando diretamente para a
câmera, descreve a si mesmo como um ser promíscuo, genioso
e agressivo, de quem o espectador não irá gostar no
início e, ao término do filme, ainda segundo ele próprio,
detestará por completo. A imagem é granulada, áspera
como as palavras de Wilmot, e o rosto de Johnny Depp
não se esconde sob três quilos de maquiagem. Nas imagens
seguintes, ao contrário do exibicionismo cenográfico,
do academicismo na encenação, dos figurinos pomposos,
dos interiores assépticos ou da fotografia picturalista,
ou seja, ao contrário de todos aqueles aspectos recorrentes
em filmes de época, o que vemos é um filme feito de
névoa, penumbra, bactérias e lama, muita lama. A câmera
na mão, a relativa liberdade da decupagem e a iluminação
naturalista marcam o estilo – em certo ponto exclamativo
– de Laurence Dunmore. O erotismo, seguindo um mesmo
conceito que parece inabalável, é ofegante e sem meias-palavras,
sem muito romance.
Em meio à decadência política e moral do reino britânico,
o Wilmot que o filme nos mostra se torna o emblema de
uma época, ou do fim de uma época. O mais libertino
dos libertinos, o mais cáustico dos ácidos, o herói
da amoralidade. Todos testemunham essa potência ao mesmo
tempo sedutora e repulsiva e se deixam abraçar por seu
magnetismo diabólico. Wilmot não se cala nem perante
o rei Charles II (Malkovich menos cínico e mais pateta
do que o comum), que deseja que ele traduza em arte
o seu reinado, algo de que acabará se arrependendo profundamente.
Numa das melhores cenas do filme, Wilmot passeia por
um bosque enevoado e repleto de corpos que são como
figuras decalcadas de uma iconografia renascentista,
mas que aqui se entrelaçam e se exaurem numa grande
orgia. O filme resume ali o seu melhor: um lado ébrio
e embaçado, seguro de sua entrega ao personagem e bastante
sugestivo, porém nada conclusivo, quanto à forma como
ele enxerga as coisas ao redor.
Tudo vai bem enquanto O Libertino é uma coleção
de passagens cômicas, alusivas e maliciosas de Wilmot.
Até que ele conhece a jovem atriz (Samantha Morton)
que deseja transformar em estrela e o filme opta por
ter uma trama de fato. Na verdade, por ter algumas tramas.
Não que a personagem apareça em hora ruim, ou que Samantha
Morton não saiba depositar nela seu talento já comprovado
em outros filmes. O problema é que a aparição dela coincide
com o momento em que o filme se perde narrativamente:
a relação dos dois é elíptica e inconsistente, as intrigas
políticas (que culminam na manutenção da coroa através
da retórica vitoriosa de Wilmot) são desinteressantes
e desafinadas com o resto do filme. Sem falar que Dunmore
começa a provocar uma reviravolta na vida de seu protagonista,
encaminhando-o pouco a pouco ao confronto moral. Em
conversas com a personagem de Morthon, com quem desenvolve
um pacto ambíguo, Wilmot revela um outro lado seu. A
felicidade lhe escapa ao conhecimento, como ele deixa
entrever nas recaídas melancólicas de sua embriaguez
permanente. A sífilis começa a desfigurá-lo, o prazer
desenfreado esbarra na doença, a carne degenera para
fazer sobressair a razão. O Libertino deixa de
ser um filme com o personagem para ser um filme sobre
o personagem. A presenciação de seus atos cede lugar
à interpretação do seu caráter.
Para quem não esperava apenas mais um filme de época,
fica a decepção (mesmo que o início tenha empolgado):
Dunmore não queria ir muito além de criar novas ambiências
e novas figuras de estilo dentro do universo do cinema
de época. Os momentos em que ele deixa mais evidente
seu projeto são, por exemplo, quando a câmera gira 360º
no interior do teatro, dando a entender uma mestria
sobre o espaço, ou quando ele filma Wilmot de costas
para sua esposa, ambos em quadro, e fica variando o
foco entre os rostos dos dois apenas para criar uma
forma alternativa de campo-contracampo (não pelo corte,
mas pela variação de foco). A história de um libertino
deve ter lhe parecido, portanto, o enredo ideal para
esse formalismo – ao menos em tese – antiacadêmico.
Mas o filme prometia, na primeira parte, um enredo mais
forte e mais corajoso para fazer par com as estilizações
de Dunmore.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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