O LIBERTINO
Laurence Dunmore, The Libertine, EUA, 2004

Para quem esperava apenas mais um filme de época, a surpresa vem no primeiro plano: John Wilmot (Johnny Depp), o Conde de Rochester, sai da escuridão como um fantasma que retorna vingativo e, olhando diretamente para a câmera, descreve a si mesmo como um ser promíscuo, genioso e agressivo, de quem o espectador não irá gostar no início e, ao término do filme, ainda segundo ele próprio, detestará por completo. A imagem é granulada, áspera como as palavras de Wilmot, e o rosto de Johnny Depp não se esconde sob três quilos de maquiagem. Nas imagens seguintes, ao contrário do exibicionismo cenográfico, do academicismo na encenação, dos figurinos pomposos, dos interiores assépticos ou da fotografia picturalista, ou seja, ao contrário de todos aqueles aspectos recorrentes em filmes de época, o que vemos é um filme feito de névoa, penumbra, bactérias e lama, muita lama. A câmera na mão, a relativa liberdade da decupagem e a iluminação naturalista marcam o estilo – em certo ponto exclamativo – de Laurence Dunmore. O erotismo, seguindo um mesmo conceito que parece inabalável, é ofegante e sem meias-palavras, sem muito romance.

Em meio à decadência política e moral do reino britânico, o Wilmot que o filme nos mostra se torna o emblema de uma época, ou do fim de uma época. O mais libertino dos libertinos, o mais cáustico dos ácidos, o herói da amoralidade. Todos testemunham essa potência ao mesmo tempo sedutora e repulsiva e se deixam abraçar por seu magnetismo diabólico. Wilmot não se cala nem perante o rei Charles II (Malkovich menos cínico e mais pateta do que o comum), que deseja que ele traduza em arte o seu reinado, algo de que acabará se arrependendo profundamente. Numa das melhores cenas do filme, Wilmot passeia por um bosque enevoado e repleto de corpos que são como figuras decalcadas de uma iconografia renascentista, mas que aqui se entrelaçam e se exaurem numa grande orgia. O filme resume ali o seu melhor: um lado ébrio e embaçado, seguro de sua entrega ao personagem e bastante sugestivo, porém nada conclusivo, quanto à forma como ele enxerga as coisas ao redor.

Tudo vai bem enquanto O Libertino é uma coleção de passagens cômicas, alusivas e maliciosas de Wilmot. Até que ele conhece a jovem atriz (Samantha Morton) que deseja transformar em estrela e o filme opta por ter uma trama de fato. Na verdade, por ter algumas tramas. Não que a personagem apareça em hora ruim, ou que Samantha Morton não saiba depositar nela seu talento já comprovado em outros filmes. O problema é que a aparição dela coincide com o momento em que o filme se perde narrativamente: a relação dos dois é elíptica e inconsistente, as intrigas políticas (que culminam na manutenção da coroa através da retórica vitoriosa de Wilmot) são desinteressantes e desafinadas com o resto do filme. Sem falar que Dunmore começa a provocar uma reviravolta na vida de seu protagonista, encaminhando-o pouco a pouco ao confronto moral. Em conversas com a personagem de Morthon, com quem desenvolve um pacto ambíguo, Wilmot revela um outro lado seu. A felicidade lhe escapa ao conhecimento, como ele deixa entrever nas recaídas melancólicas de sua embriaguez permanente. A sífilis começa a desfigurá-lo, o prazer desenfreado esbarra na doença, a carne degenera para fazer sobressair a razão. O Libertino deixa de ser um filme com o personagem para ser um filme sobre o personagem. A presenciação de seus atos cede lugar à interpretação do seu caráter.

Para quem não esperava apenas mais um filme de época, fica a decepção (mesmo que o início tenha empolgado): Dunmore não queria ir muito além de criar novas ambiências e novas figuras de estilo dentro do universo do cinema de época. Os momentos em que ele deixa mais evidente seu projeto são, por exemplo, quando a câmera gira 360º no interior do teatro, dando a entender uma mestria sobre o espaço, ou quando ele filma Wilmot de costas para sua esposa, ambos em quadro, e fica variando o foco entre os rostos dos dois apenas para criar uma forma alternativa de campo-contracampo (não pelo corte, mas pela variação de foco). A história de um libertino deve ter lhe parecido, portanto, o enredo ideal para esse formalismo – ao menos em tese – antiacadêmico. Mas o filme prometia, na primeira parte, um enredo mais forte e mais corajoso para fazer par com as estilizações de Dunmore.


Luiz Carlos Oliveira Jr.