BUBBLE
Steven Soderbergh, EUA, 2005

Bubble tem poucos personagens e eles passam mais que a primeira metade do filme sem fazer muita coisa diferente. Esses personagens trabalham, e muito – saem de um emprego numa fábrica de bonecas e emendam em outro. Quando dão uma pausa para comer, é sempre hambúrguer, batata frita, pizza ou donuts, não há outras opções. Eles trabalham não porque acreditam em algum sentido elevado do trabalho, mas porque o dinheiro, mesmo que parco, foi o único valor que aprenderam antes de largar os estudos. Martha, que parece uma escultura de Duane Hanson ganhando vida, só não tem um segundo emprego, como os jovens Kyle e Rose têm, porque precisa voltar cedo para casa e cuidar do pai já enfraquecido pela idade. No cotidiano silencioso da cidade em que o filme se aloja, o tempo nada mais é que a espera por um destino já conhecido e aceito. Ou combatido – por Rose, que junta dinheiro a qualquer custo para deixar a cidade, e que surge causando um distúrbio nesse cotidiano. Ela começa a flertar com Kyle, e isso ameaça interferir na tenra amizade que existe entre ele e Martha. O angelismo de Martha, muito bem interpretada pela desconhecida Debbie Doebereiner, está então pronto para ceder espaço à monstruosidade (inocência e violência mais uma vez marcam encontro no interior dos EUA).

Em boa parte das cenas, sobretudo no início, o verdadeiro personagem do filme é uma rede de palavras – com seus suspenses e suas lacunas – que vai tecendo um universo particular, o palco de algum acontecimento que deverá vir a seguir. Um personagem faz perguntas ao outro como se fosse o entrevistador de um documentário rodado naquele recanto fabril de Ohio. Perguntas sobre profissão, família, o que se fazia antes, o que se fará depois, uma ou outra trivialidade, nada mais que isso. Tudo filmado de modo preferencialmente estático, em plano de conjunto ou em seco formato de campo-contracampo. Soderbergh vê na câmera digital, em Bubble, uma ferramenta de neutralidade e frieza. Os personagens são menos encenados do que vigiados em seu trabalho, em suas refeições e nos breves momentos de repouso. A câmera se posiciona de forma a não acrescentar grande coisa à geometria social observada pelo filme, uma subtração de ponto de vista que afasta mais e mais o nome de Soderbergh das imagens. Efeitos de assinatura são evitados em nome de uma crueza e de um certo procedimento clínico, sem que isso resulte em sofisticação do dispositivo.

Embora o primeiro plano do filme mostre a pá de um trator cavando para dentro do solo, abrindo mais uma cova no cemitério daquela cidade-zumbi, Soderbergh irá recobrir o espaço aberto, como metaforicamente fica ilustrado no último plano do filme (Kyle repõe com uma pá o conteúdo de um caldeirão da fábrica), e retornar ao estado em que as coisas que são subterrâneas permanecem invisíveis, até o dia de aflorarem sob nova forma de tragédia (o filme sugere, portanto, um ciclo). O suposto mergulho ao fosso de uma cidade-signo miserável – financeira, afetiva e moralmente – é freado no ponto em que aquele esquema social modorrento se desdobra em “fator humano”. Quando ocorre o assassinato, inserido no mesmo quadro social do trabalho (tudo se dá entre companheiros de profissão) e precipitado por sentimentos individuais, vem a recarga de superfície que impede que Bubble se torne um filme psicológico, como o personagem do policial bem gostaria que fosse, ou que o mistério que assombra uma pequena cidade periférica como essa brote do fait divers para ser examinado em suas camadas mais internas, que extrapolariam as pistas dadas pela realidade social e pelo desenho sentimental até naïf dos personagens (como expresso nos sorrisos trocados por Kyle e Rose quando ela chega na fábrica).

Nos momentos em que a câmera se aproxima de Martha, o filme se mostra um pouco falso, porque logo percebemos que em algum momento ele vai se ausentar, vai engessar seu assunto num proposital vazio de enunciação e até de recursos estilísticos. Há algo de frustrante nisso. Se essa história realmente se repete, e portanto cabe recontá-la, Bubble o faz para ao final dizer que o que interessa dela é sua repetição pura e simples, sua qualidade de clichê constituinte de uma certa realidade americana. Enquanto monta um painel de desencanto nutrido pela cultura de que ele só precisa reter um ou outro signo marcante, o filme dá aos personagens um indício de alma (boa, perversa, confusa...) nos intervalos da atividade mecânica do trabalho, talvez no intuito de pô-los um degrau acima da tipologia. Mas no fundo reforça um não-acontecimento de tudo, quem sabe até dele mesmo enquanto filme (basta pensar na polêmica que criou ao ser lançado quase que simultaneamente em cinema, DVD e televisão e ficar também disponível na Internet). Essa recusa a ir além do fato já conhecido, da notícia de telejornal recorrente – após o filme ter criado um suspense e um pano de fundo que alguns poderiam supor político em dado momento – coloca Soderbergh na posição de alguém que possivelmente fez nada mais que uma provocação.

Mesmo quando Soderbergh abandona as prestidigitações narrativas mais evidentes e não fala abertamente de um mundo povoado por falsas aparências, fica uma mesma impressão de que ele deseja remeter tudo às superfícies, um maneirismo latente que reconduz toda a límpida impessoalidade das imagens de Bubble, por exemplo, ao tom de anedota que ganha a dianteira nas tramas lideradas por onze ou doze homens espertos. O assassinato de Rose é engolfado por uma elipse da mesma forma que os roubos mirabolantes de Doze Homens e Outro Segredo são transferidos ao fora-de-campo: não há mistério a sondar (a ação do investigador em Bubble é banal e fácil, não exige nenhum quebra-cabeça), não há modo de ação a ser revelado. A única maneira em jogo é aquela através da qual o diretor do filme deve nos mostrar ou nos ocultar um determinado evento. Em Doze Homens havia o roubo como operação-fantasma, quase cosa mentale; aqui há o assassinato como o inexplicável, o que não se pode confessar senão à luz divina (redentora, de qualquer forma). As evidências, as marcas, as impressões digitais condenam Martha, mas a cena do crime jamais será reconstituída. Ela mesma só reteve uma ou duas imagens do assassinato, a mais marcante sendo o rosto de Rose já morta, olhos esbugalhados, sobrancelhas e cílios talhados à perfeição, como uma das bonecas que ambas fabricavam. Uma ou duas imagens é também o que deve ficar de Bubble para o espectador, provavelmente imagens trazidas pelo olhar impávido e pregnante de Debbie Doebereiner.


Luiz Carlos Oliveira Jr.