Bubble
tem poucos personagens e eles passam mais que a
primeira metade do filme sem fazer muita coisa diferente.
Esses personagens trabalham, e muito – saem de um emprego
numa fábrica de bonecas e emendam em outro. Quando dão
uma pausa para comer, é sempre hambúrguer, batata frita,
pizza ou donuts, não há outras opções. Eles trabalham
não porque acreditam em algum sentido elevado do trabalho,
mas porque o dinheiro, mesmo que parco, foi o único
valor que aprenderam antes de largar os estudos. Martha,
que parece uma escultura de Duane Hanson ganhando vida,
só não tem um segundo emprego, como os jovens Kyle e
Rose têm, porque precisa voltar cedo para casa e cuidar
do pai já enfraquecido pela idade. No cotidiano silencioso
da cidade em que o filme se aloja, o tempo nada mais
é que a espera por um destino já conhecido e aceito.
Ou combatido – por Rose, que junta dinheiro a qualquer
custo para deixar a cidade, e que surge causando um
distúrbio nesse cotidiano. Ela começa a flertar com
Kyle, e isso ameaça interferir na tenra amizade que
existe entre ele e Martha. O angelismo de Martha, muito
bem interpretada pela desconhecida Debbie Doebereiner,
está então pronto para ceder espaço à monstruosidade
(inocência e violência mais uma vez marcam encontro
no interior dos EUA).
Em boa parte das cenas, sobretudo no início, o verdadeiro
personagem do filme é uma rede de palavras – com seus
suspenses e suas lacunas – que vai tecendo um universo
particular, o palco de algum acontecimento que deverá
vir a seguir. Um personagem faz perguntas ao outro como
se fosse o entrevistador de um documentário rodado naquele
recanto fabril de Ohio. Perguntas sobre profissão, família,
o que se fazia antes, o que se fará depois, uma ou outra
trivialidade, nada mais que isso. Tudo filmado de modo
preferencialmente estático, em plano de conjunto ou
em seco formato de campo-contracampo. Soderbergh vê
na câmera digital, em Bubble, uma ferramenta
de neutralidade e frieza. Os personagens são menos encenados
do que vigiados em seu trabalho, em suas refeições e
nos breves momentos de repouso. A câmera se posiciona
de forma a não acrescentar grande coisa à geometria
social observada pelo filme, uma subtração de ponto
de vista que afasta mais e mais o nome de Soderbergh
das imagens. Efeitos de assinatura são evitados em nome
de uma crueza e de um certo procedimento clínico, sem
que isso resulte em sofisticação do dispositivo.
Embora o primeiro plano do filme mostre a pá de um trator
cavando para dentro do solo, abrindo mais uma cova no
cemitério daquela cidade-zumbi, Soderbergh irá recobrir
o espaço aberto, como metaforicamente fica ilustrado
no último plano do filme (Kyle repõe com uma pá o conteúdo
de um caldeirão da fábrica), e retornar ao estado em
que as coisas que são subterrâneas permanecem invisíveis,
até o dia de aflorarem sob nova forma de tragédia (o
filme sugere, portanto, um ciclo). O suposto mergulho
ao fosso de uma cidade-signo miserável – financeira,
afetiva e moralmente – é freado no ponto em que aquele
esquema social modorrento se desdobra em “fator humano”.
Quando ocorre o assassinato, inserido no mesmo quadro
social do trabalho (tudo se dá entre companheiros de
profissão) e precipitado por sentimentos individuais,
vem a recarga de superfície que impede que Bubble
se torne um filme psicológico, como o personagem
do policial bem gostaria que fosse, ou que o mistério
que assombra uma pequena cidade periférica como essa
brote do fait divers para ser examinado em suas
camadas mais internas, que extrapolariam as pistas dadas
pela realidade social e pelo desenho sentimental até
naïf dos personagens (como expresso nos sorrisos
trocados por Kyle e Rose quando ela chega na fábrica).
Nos momentos em que a câmera se aproxima de Martha,
o filme se mostra um pouco falso, porque logo percebemos
que em algum momento ele vai se ausentar, vai engessar
seu assunto num proposital vazio de enunciação e até
de recursos estilísticos. Há algo de frustrante nisso.
Se essa história realmente se repete, e portanto cabe
recontá-la, Bubble o faz para ao final dizer
que o que interessa dela é sua repetição pura e simples,
sua qualidade de clichê constituinte de uma certa realidade
americana. Enquanto monta um painel de desencanto nutrido
pela cultura de que ele só precisa reter um ou outro
signo marcante, o filme dá aos personagens um indício
de alma (boa, perversa, confusa...) nos intervalos da
atividade mecânica do trabalho, talvez no intuito de
pô-los um degrau acima da tipologia. Mas no fundo reforça
um não-acontecimento de tudo, quem sabe até dele mesmo
enquanto filme (basta pensar na polêmica que criou ao
ser lançado quase que simultaneamente em cinema, DVD
e televisão e ficar também disponível na Internet).
Essa recusa a ir além do fato já conhecido, da notícia
de telejornal recorrente – após o filme ter criado um
suspense e um pano de fundo que alguns poderiam supor
político em dado momento – coloca Soderbergh na posição
de alguém que possivelmente fez nada mais que uma provocação.
Mesmo quando Soderbergh abandona as prestidigitações
narrativas mais evidentes e não fala abertamente de
um mundo povoado por falsas aparências, fica uma mesma
impressão de que ele deseja remeter tudo às superfícies,
um maneirismo latente que reconduz toda a límpida impessoalidade
das imagens de Bubble, por exemplo, ao tom de
anedota que ganha a dianteira nas tramas lideradas por
onze ou doze homens espertos. O assassinato de Rose
é engolfado por uma elipse da mesma forma que os roubos
mirabolantes de Doze Homens e Outro Segredo são
transferidos ao fora-de-campo: não há mistério a sondar
(a ação do investigador em Bubble é banal e fácil,
não exige nenhum quebra-cabeça), não há modo de ação
a ser revelado. A única maneira em jogo é aquela através
da qual o diretor do filme deve nos mostrar ou nos ocultar
um determinado evento. Em Doze Homens havia o
roubo como operação-fantasma, quase cosa mentale;
aqui há o assassinato como o inexplicável, o que não
se pode confessar senão à luz divina (redentora, de
qualquer forma). As evidências, as marcas, as impressões
digitais condenam Martha, mas a cena do crime jamais
será reconstituída. Ela mesma só reteve uma ou duas
imagens do assassinato, a mais marcante sendo o rosto
de Rose já morta, olhos esbugalhados, sobrancelhas e
cílios talhados à perfeição, como uma das bonecas que
ambas fabricavam. Uma ou duas imagens é também o que
deve ficar de Bubble para o espectador, provavelmente
imagens trazidas pelo olhar impávido e pregnante de
Debbie Doebereiner.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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