Um
certo cinema iraniano parece estar constantemente em
busca da metonímia absoluta, da substituição total do
todo pela parte, da origem pela conseqüência, do sentido
por um objeto. Constantemente os filmes daquele país
fazem (ou tentam fazer) conter sua problemática em um
jarro, uma maçã, um par de sapatos, uma bicicleta. Às
cinco horas também é assim. Os sapatos brancos de saltos
altos de Noqreh não são outra coisa senão o índice da
feminilidade que, interditada pelas leis religiosas
do Afeganistão até a queda do regime talibã em 2001,
não podia nunca aflorar. Com a “libertação” do país,
agora a mulher pode começar a mostrar seu rosto, libertar-se
da burca, ter voz, ser presidente e, quem sabe, exercer
sua beleza, ou seja, ser mulher.
Tudo isso só faz este filme ser mais surpreendente por
ter sido dirigido por uma mulher. É que sua operação
de construção da feminilidade é tão pobre e tão dirigida
que faz questionar se não está atrás das câmeras um
conservador americano. Samira Makhmalbaf propõe uma
mulher universal, uma mulher que existe em qualquer
lugar e que, em qualquer canto do mundo, quer ser apenas
mulher, ou seja, bonita. Mas o problema é que essa universalização,
ou seja, esse padrão de beleza, é um, tem nome e desenho:
é o ocidental, o movido por um modelo de consumo e por
um modelo de estética. Ao propor a tese de uma mulher
total, Samira só consegue gerir uma beleza totalitária.
A própria Samira está inserida neste jogo também, ao
procurar em seu filme uma visualidade e uma beleza decalcadas
da cinematografia clássica mais ocidental. Não pulsa
no filme o vigor semi-documental que costuma entrecortar
o cinema de um Abbas Kiarostami ou o de um Jafar Panahi
ou até, por vezes, o do pai da moça, Mosseh Makhmalbaf.
Em vez disso, uma construção apenas narrativa serve
como painel, contadora de história, testemunha do conto
moral em que a estudante temporã mergulha na fantasia
de se tornar presidente um dia. Entre ela e o sonho,
a parte, o sapato, o feminino, o desejo de “tratar todos
os cidadãos como uma grande mãe”.
Por isso são tão tensas as seqüências em que Noqreh
caminha pelo palácio abandonado usando os sapatos altos.
Fica-se diante da expectativa de que uma mina esquecida
no piso vá mandá-la pelos ares, sobretudo na poética
seqüência (e bela, a mais bela do filme, aliás) do jogo
de amarelinha. Mas não há espaço para a não celebração
da liberdade no universo de Samira. Como que em um arremedo
de uso do pensamento sartriano, os árabes ocidentalizados
de Samira Makhmalbaf vivem sob a ditadura da liberdade.
O horror está apenas na realidade opressora do país
e de sua situação de ausência de desenvolvimento. A
fome, a sede, a falta de infra-estrutura são o pesadelo
maior daquele país que tolheu o direito a se ser a mulher
que o resto do mundo produziu.
O mesmo acontece com a noção de política das moças (Samira
e Nogreh). Ela também é decalcada, quase que como em
uma imitação lúdica, do jogo democrático ocidental.
Nogreh não quer saber como argumentar em favor de seu
país, ela quer saber como a encenação se dá, o que um
político ocidental diz para conquistar o eleitor ocidental
e ganhar o posto de presidente. E não se trata de uma
denúncia, trata-se de uma postura: é dali que nasce
a verdade democrática; de seu espírito, contido nos
pequenos atos, no cotidiano.
Nesse sentido, o filme trabalha com um pressuposto habitual
do cinema iraniano e que só em casos extremos costuma
funcionar a contento como boa antropologia: a de que
os personagens são a priori ingênuos e ingênuos a priori.
Assim é a moça que, estudante, diz que gostaria de ser
presidente do Afeganistão. É preciso que ela desconheça
a rotina política ocidental e é preciso inclusive que
o desejo de ser presidente seja a-histórico. Não é que
nunca tenha havido uma mulher presidente, nunca houve
presidente de qualquer jeito. Para aquelas gerações,
a política nunca passou de uma história distante, quase
mitológica. Agora, uma vez que o país foi libertado
do jugo da antigüidade oriental, esse mesmo mito deve
ser encenado nas práticas cotidianas, como que para
fazer aprender o grande bem que a democracia tem a oferecer.
Assim, os dois elementos da construção da mulher de
Samira, aquela que é livre para ser feminina e aquela
que é livre para ser cidadã, são procedimentos, quase
sistemas protocolares. Não há sentido transformador
na ascensão feminina da cineasta e em seu Afeganistão.
Só sentido conservador. O cargo político é dado tanto
como objeto do desejo quanto o embelezamento representado
pelos sapatos, e ambos são apenas consumíveis, são o
centro de uma cartilha de sociedade a que, parece, a
moça parece querer mostrar ao mundo que aprendeu muito
bem, política e esteticamente.
Alexandre Werneck
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