ÀS CINCO DA TARDE
Samira Makhmalbaf, Panj é asr/À cinq heures de l'après-midi, Irã/França, 2002

Um certo cinema iraniano parece estar constantemente em busca da metonímia absoluta, da substituição total do todo pela parte, da origem pela conseqüência, do sentido por um objeto. Constantemente os filmes daquele país fazem (ou tentam fazer) conter sua problemática em um jarro, uma maçã, um par de sapatos, uma bicicleta. Às cinco horas também é assim. Os sapatos brancos de saltos altos de Noqreh não são outra coisa senão o índice da feminilidade que, interditada pelas leis religiosas do Afeganistão até a queda do regime talibã em 2001, não podia nunca aflorar. Com a “libertação” do país, agora a mulher pode começar a mostrar seu rosto, libertar-se da burca, ter voz, ser presidente e, quem sabe, exercer sua beleza, ou seja, ser mulher.

Tudo isso só faz este filme ser mais surpreendente por ter sido dirigido por uma mulher. É que sua operação de construção da feminilidade é tão pobre e tão dirigida que faz questionar se não está atrás das câmeras um conservador americano. Samira Makhmalbaf propõe uma mulher universal, uma mulher que existe em qualquer lugar e que, em qualquer canto do mundo, quer ser apenas mulher, ou seja, bonita. Mas o problema é que essa universalização, ou seja, esse padrão de beleza, é um, tem nome e desenho: é o ocidental, o movido por um modelo de consumo e por um modelo de estética. Ao propor a tese de uma mulher total, Samira só consegue gerir uma beleza totalitária.

A própria Samira está inserida neste jogo também, ao procurar em seu filme uma visualidade e uma beleza decalcadas da cinematografia clássica mais ocidental. Não pulsa no filme o vigor semi-documental que costuma entrecortar o cinema de um Abbas Kiarostami ou o de um Jafar Panahi ou até, por vezes, o do pai da moça, Mosseh Makhmalbaf. Em vez disso, uma construção apenas narrativa serve como painel, contadora de história, testemunha do conto moral em que a estudante temporã mergulha na fantasia de se tornar presidente um dia. Entre ela e o sonho, a parte, o sapato, o feminino, o desejo de “tratar todos os cidadãos como uma grande mãe”.

Por isso são tão tensas as seqüências em que Noqreh caminha pelo palácio abandonado usando os sapatos altos. Fica-se diante da expectativa de que uma mina esquecida no piso vá mandá-la pelos ares, sobretudo na poética seqüência (e bela, a mais bela do filme, aliás) do jogo de amarelinha. Mas não há espaço para a não celebração da liberdade no universo de Samira. Como que em um arremedo de uso do pensamento sartriano, os árabes ocidentalizados de Samira Makhmalbaf vivem sob a ditadura da liberdade. O horror está apenas na realidade opressora do país e de sua situação de ausência de desenvolvimento. A fome, a sede, a falta de infra-estrutura são o pesadelo maior daquele país que tolheu o direito a se ser a mulher que o resto do mundo produziu.

O mesmo acontece com a noção de política das moças (Samira e Nogreh). Ela também é decalcada, quase que como em uma imitação lúdica, do jogo democrático ocidental. Nogreh não quer saber como argumentar em favor de seu país, ela quer saber como a encenação se dá, o que um político ocidental diz para conquistar o eleitor ocidental e ganhar o posto de presidente. E não se trata de uma denúncia, trata-se de uma postura: é dali que nasce a verdade democrática; de seu espírito, contido nos pequenos atos, no cotidiano.

Nesse sentido, o filme trabalha com um pressuposto habitual do cinema iraniano e que só em casos extremos costuma funcionar a contento como boa antropologia: a de que os personagens são a priori ingênuos e ingênuos a priori. Assim é a moça que, estudante, diz que gostaria de ser presidente do Afeganistão. É preciso que ela desconheça a rotina política ocidental e é preciso inclusive que o desejo de ser presidente seja a-histórico. Não é que nunca tenha havido uma mulher presidente, nunca houve presidente de qualquer jeito. Para aquelas gerações, a política nunca passou de uma história distante, quase mitológica. Agora, uma vez que o país foi libertado do jugo da antigüidade oriental, esse mesmo mito deve ser encenado nas práticas cotidianas, como que para fazer aprender o grande bem que a democracia tem a oferecer.

Assim, os dois elementos da construção da mulher de Samira, aquela que é livre para ser feminina e aquela que é livre para ser cidadã, são procedimentos, quase sistemas protocolares. Não há sentido transformador na ascensão feminina da cineasta e em seu Afeganistão. Só sentido conservador. O cargo político é dado tanto como objeto do desejo quanto o embelezamento representado pelos sapatos, e ambos são apenas consumíveis, são o centro de uma cartilha de sociedade a que, parece, a moça parece querer mostrar ao mundo que aprendeu muito bem, política e esteticamente.


Alexandre Werneck