Da
vida das Mario(zo)netes
François Ozon é um caricaturista. Seus filmes têm uma
frontalidade, uma bidimensionalidade programática que
evita as sutilezas e os diferentes tecidos de sentimentos.
Como Aldrich ou Verhoeven, ele lida com reduções e simplificações
de personalidade para construir um retrato chapado,
e um tanto misantropo, do universo ficcional que aborda.
Isso, a princípio, não é um problema. É uma forma de
apreensão da realidade, em construção dramática que
ora consegue resultados (Gotas d’Água em Pedras Escaldantes)
ora transforma-se em tiro na água (Oito Mulheres,
Swimming Pool). Maneirista e cínico, seu cinema
se presta a um achatamento da profundidade, a uma lacuna
de saber entre espectador e personagem que produz um
humor cruel semelhante muitas vezes a alguns momentos
da carreira dos irmãos Coen (mas com outras estratégias
de dramaturgia e mise-en-scène). Dito isso, 5X2
é o filme que, desde Gotas d’Água em Pedras Escaldantes,
melhor parece se inscrever nesse programa - e conseqüentemente
é seu melhor filme desde então.
À maneira de Besame Mucho, de Francisco Ramalho
Jr., 5X2 se estrutura em cronologia reversa,
a partir de esquetes da vida de um casal em diferentes
estágios do relacionamento. Vemos primeiro o episódio
da separação, a seguir um momento de crise do casamento,
depois o nascimento do filho, o dia do casamento e por
fim o episódio do primeiro encontro verdadeiro entre
os dois, em férias na Itália. A natureza esquemática
do filme se vê logo em seu título: cinco vezes dois
são cinco episódios na vida de duas pessoas. E o funcionamento
do filme depende de quão decisivas são esses instantes
notáveis na vida de cada um, a ponto de explicar toda
(ou ao menos em grande parte) a vida do casal, em chave
metonímica de “parte pelo todo”. Ozon tem particular
talento para filmar a forma como uma relação degringola,
as neuroses que nascem a partir de uma fala dita em
má hora ou com as palavras erradas, as expectativas
sobre o outro que se frustram ou não se confirmam da
maneira como era esperado e o peso dos papéis sociais/existenciais
que as pessoas desempenham muitas vezes automaticamente,
sem muita reflexão.
É uma arte da mesquinharia e da crueldade que encontra
seu alvo na vida de burgueses ou de proletários aburguesados
(em todo caso suficientemente instalados e socialmente
sedentários), cujos códigos de conduta e patologias
sentimentais o filme traz à tona para melhor poder extrair,
com acidez, um humor amargo. Estamos longe de Um
Vestido de Verão, um de seus curtas-metragens de
começo de carreira e até hoje provavelmente seu melhor
filme. Desde então, é menos Truffaut do que Chabrol
que se transforma no inconsciente cinematográfico de
François Ozon, e o ódio à burguesia e a seus valores
aparece como o motor subterrâneo de seu cinema. Há muito
de risível nos personagens de Charlotte Rampling em
Swimming Pool, ou na previsibilidade com que
funcionam os casais de Gotas d’Água... ou 5X2.
Em 5X2, uma noite de núpcias frustrada pelo marido
que dorme se transforma numa maneira de questionar a
instituição do casamento, no entanto ratificada pelo
casal dos pais da noiva, que dançam juntos “Smoke Gets
in Your Eyes” enquanto todos os outros na festa já estão
dormindo – no entanto, no episódio anterior, o do nascimento
do filho, eles destilam veneno um contra o outro enquanto
a filha tenta se recuperar do parto. O ambiente de agridoce
cotidiano das neuroses e comportamentos burgueses se
amplifica também na utilização de música, em língua
espanhola ou italiana, que funciona aqui como elemento
de humor e comentário sobre a lenta comédia humana da
vida dos bem instalados. Note-se também a extraordinária
escolha de atores, com um trabalho impressionante de
Valeria Bruni Tedeschi, e com as aparições de Françoise
Fabian e Michael Lonsdale, veteranos atores de filmes
dos diretores da nouvelle vague, nos papéis de
pais da protagonista. Com 5x2, Ozon continua
refletindo sobre a figura e a permanência do ator francês
(como filme-conceito, Oito Mulheres é muito mais
interessante do que como filme de gênero), e reaviva
seu talento para o humor derrisório que é o melhor trunfo
de seus longas-metragens.
Ruy Gardnier
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