"Em
meus filmes, espaço e lugares mudam [e] o tempo é enganado
na montagem. Acho que esta é a vantagem de fazer filmes
de entretenimento: você pode fazer tudo que quiser,
desde que estes elementos tornem o filme interessante.
Esta é minha teoria de gramática cinematográfica."
(Seijun Suzuki)
"Tanto eu quanto ele paramos de receber influencias
externas aos nossos vinte e poucos anos e então tanto
os seus filmes quanto os meus ensaios são fortemente
marcados pelo que sentíamos na nossa adolescência. Nós
já estamos bem adentro da meia idade, mas a fonte das
nossas idéias ainda é como nos sentíamos a respeito
das coisas naquela época." (Kenji Suzuki)
Há com freqüência nos últimos filmes de grandes cineastas,
seja um Sete Mulheres (John Ford), um Os Mil
Olhos do Dr. Mabuse (Fritz Lang), ou esta excelente
recente dupla de filmes que Seijun Suzuki nos deu após
um longo afastamento das telas, um desejo comum de se
perder no seu próprio universo particular. Uma certa
auto-satisfação do cineasta de articular como lhe der
na telha todos os seus brinquedos favoritos. Pistol
Opera e Princess Raccoon são menos filmes
para fãs, e mais filmes que levam ao limite este processo
de se auto-devorar que marca muitos últimos filmes,
terminando por se afirmar como objetos únicos na obra
de Suzuki (a despeito da aparente familiaridade que
o primeiro apresenta).
Pistol Opera foi freqüentemente descrito como
uma espécie de seqüência/remake de A Marca
do Assassino, o último filme que realizou para a
Nikkatsu e até hoje seu trabalho mais popular. Apesar
da presença num papel menor do personagem central do
filme anterior, o filme se assemelha mais a um crime
para justificar a pena. Como se quase 35 anos depois
Suzuki tenha finalmente decidido fazer o filme que os
executivos da Nikkatsu o acusaram de fazer com A
Marca do Assassino. Muito de Pistol Opera
o distancia do seu suposto modelo: o filme é colorido
com a extravagante paleta de cores de Suzuki colhendo
momentos tão delirantes quanto os do melhor Minnelli.
Mais importante: Pistol Opera foi rodado em 1:33
– formato que Suzuki declarou seu favorito, a despeito
de boa parte da sua obra ser em 2:35 – e o cineasta
se aproveita das virtudes do formato com a mesma força
e limpidez do trabalho recente de um Gus Van Sant ou
Eric Rohmer. Ou seja, o filme visualmente é quase o
oposto, mesmo que igualmente exuberante, do preto e
branco cinemascope de alto contrastes de A Marca
do Assassino. As imagens de Pistol Opera
são mais concentradas, assim como sua montagem joga
mais radicalmente com o choque entre espaços urbanos,
rurais e de estúdio (Princess Raccoon, por sua
vez, retorna ao scope e abraça de vez uma teatralização
do espaço cênico freqüentemente sugerida por Suzuki,
mas não tem semelhanças superficiais com os filmes da
Nikkatsu).
Seijun Suzuki sempre organizou seus filmes a partir
de uma lógica musical, e como os nomes dos seus últimos
trabalhos sugerem (o título original de Princess
Raccoon é Operetta Tanuki Gotten), não é
agora que ele mudaria. Se Princess Raccoon finalmente
realiza o desejo de Suzuki de realizar um musical (com
uma série de conseqüências formais), em Pistol Opera
a trilha é dominada por um trompete à Miles Davis que
garante ao filme seu ritmo bem peculiar. Martin Scorsese
certa vez explicou que mantinha uma TV ligada em cada
cômodo do seu apartamento para “gerar climas”: poucos
filmes servem tão bem a esse intento quanto Pistol
Opera, no qual as cenas se acumulam a partir de
uma lógica única, em que personagens parecem morrer
e ressuscitar seqüencialmente, em que o espaço cinematográfico
se fragmenta e se reconfigura de acordo com os humores
de seu cineasta e onde a bela Makiko Esumi se movimenta
de forma a estar em todos os lugares ao mesmo tempo.
Pistol Opera nunca parece muito preocupado em
agarrar o espectador com sua sucessão de invenções visuais
da maneira como O Vadio de Tóquio ou A Marca
do Assassino faziam; ao invés disso, ele o envolve
no torpor rarefeito de sua cadência de maneira bastante
similar ao que ocasionalmente se encontra num bom numero
de jazz.
Pistol Opera parece ter sido organizado como
se fosse um caderno de anotações do diretor, cujas páginas
são arremessadas contra a tela já que o diretor não
saberia se haveria outra oportunidade para transformá-las
em imagens. O filme é, entre outras coisas, um dos mais
brilhantes catálogos de locações postos num filme, com
cada espaço escolhido por Suzuki soltando aos olhos
com suas amplas possibilidades cênicas. Com freqüência
elas parecem estar ali exclusivamente por agradarem
Suzuki, mas o cineasta as integra de forma que nosso
único senão seja que algumas delas não permaneçam mais
tempo em cena. O mesmo valendo para situações insanas
e personagens absurdos (como o assassino americano incapaz
de sentir dor) que Suzuki vai aos poucos acumulando.
Reduzindo o filme gangster ao seu básico absurdo e depois
reconstruindo ele com uma série de digressões pessoais
delirantes (estamos falando de um filme japonês cujo
duelo que serve de clímax é anunciado por um cogumelo
atômico), Suzuki termina por finalmente reaproximar
sua fase Nikkatsu e seus anos como cineasta independente
para fazer um dos mais indiscutíveis filmes-testamento
de um grande cineasta, e possivelmente o seu melhor
trabalho.
Já Princess Raccoon é uma súmula de outra ordem,
mais preocupado em encorpar de vez certos elementos
que pareciam existir de pano de fundo dos interesses
de Suzuki em trabalhos anteriores. Uma espécie de projeto
há muito acalentado que finalmente ganha forma. Suzuki
sempre manteve um pé no teatro e outro no musical, logo
rodar esta fábula musical abertamente teatral é um passo
óbvio, ao mesmo tempo em que modifica o efeito com que
muitas das invenções de Suzuki atingem o espectador.
Princess Raccoon tem tantas mortes, ressurreições,
transmutações de corpos e espaços quanto Pistol Opera,
mas tudo aqui acaba fazendo mais sentido dentro da lógica
interna da fábula sobre um príncipe exilado que se apaixona
por uma criatura transmorfa disfarçada de Zhang Ziyi.
O filme acaba se assemelhando bastante a certos filmes
de Michael Powell (com quem a obra de Suzuki guarda
grandes semelhanças ainda inexploradas, vale dizer),
em especial os que lidam diretamente com a natureza
do espetáculo como Sapatinhos Vermelhos e Contos
de Hoffman (a inclusão de elementos de crença religiosa,
algo inédito nos filmes de Suzuki, também ajudam a aproximá-lo
de Narciso Negro).
De certa forma estamos diante da tentativa de Suzuki
de fazer uma espécie de espetáculo total, com sua posição
de cineasta que controla o tempo e o espaço sendo levada
ao limite. Se por um lado o material é bem mais narrativo
do que os fãs estão acostumados, mais do que nunca o
cineasta trabalha numa chave de esvaziamento de suas
personagens ao ponto de Ziyi e Joe Odagiri, ambos bons
atores dotados de grande personalidade, funcionarem
numa chave de verdadeiros casulos que ganham vida somente
pela maneira com que o diretor usa cor, luz, cenários
e coreografia. Há poucos espetáculos mais belos – e
ao mesmo tempo radicais – que a maneira como a natureza
e o palco de Kabuki convivem lado a lado em Princess
Raccoon. É um filme de um cineasta que tem pleno
controle sobre todos os aspectos de sua arte e que parece
não ter mais preocupação alguma com o que venhamos a
achar do seu trabalho. O jovem velho Suzuki – porque
ele permanece um dos nossos cineastas mais joviais a
despeito da idade – parece satisfeito em construir seu
mundo particular no seu quarto de brinquedos. Esperamos
que outras obras-primas ainda venham a seguir.
Filipe Furtado
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