Quando
assistimos em seqüência aos filmes de Seijun
Suzuki, a impressão é de entrar num universo
paralelo com regras e características próprias,
ligeiramente parecido com aquilo que estamos acostumados
do cinema convencional, ligeiramente diferente de tudo
que já vimos. É um cinema muito particular,
distintivo o suficiente para transformá-lo em
caso único embora haja, claro, diversos
pontos de ressonância com o que uma série
de cineastas fazia em momentos parecidos , e que
ainda ostenta um charme muito particular de só
ter sido descoberto tardiamente, quando já filmava
bissextamente, como cineasta independente. Aliás,
ainda resta saber se o cinema de Suzuki de fato chegou
a ser descoberto para além de um círculo
bem restrito de cinéfilos ao redor do mundo.
Porque, embora algumas mostras tenham aberto os olhos
da imprensa ocidental para esse cinema apaixonante e
rebelde começando com Roterdã em
1991, passando pelo Brasil em 1999 na Mostra de São
Paulo e pela França em 2002 , Suzuki ainda
é mais um nome que se ouve falar do que um cinema
que é efetivamente visto e distribuído,
em salas ou através de lançamentos em
vídeo ou dvd (no Brasil, só O Vagabundo
de Tóquio/Tóquio Violenta é
disponível, numa versão algo deformada).
Mesmo os epítetos mais costumeiros entre
os quais "coreógrafo da violência",
nome da mostra em vídeo que lhe dedicou o CCBB-RJ
em abril parecem nem chegar perto de dar conta
das operações artísticas criadas
por Suzuki para fazerem vibrar seus filmes. Em primeiro
lugar, porque essas características pertencem
apenas a um período mais específico de
sua carreira, entre 63 e 67. Em segundo lugar, e mais
importante, porque a forma de seus filmes parece denotar
uma irreverência quase absoluta em relação
ao que de fato é encenado. Seja trabalhando em
filmes de gênero e baixo orçamento para
a Nikkatsu, seja como cineasta independente fazendo
filmes experimentais, a principal marca formal que aparece
nesses filmes é um total descompromisso, quase
uma arbitrariedade, ao que o "conteúdo"
desses filmes mostra. Suzuki é mestre em criar
dispositivos para fazer a mise-en-scène contar
uma outra história, uma história visual,
uma intriga suplementar à narrativa propriamente
dita de seus filmes.
Naturalmente, isso faz parte do processo no qual Seijun
Suzuki ingressou. No fim da década de 40, a produção
cinematográfica japonesa estava circunscrita
a cinco grandes companhias produtoras, e o caminho para
se transformar num diretor de cinema passava por anos
de aprendizagem como assistente de direção
sem que houvesse mesmo a liberdade para escolher o diretor
com quem se trabalharia. Suzuki entrou meio que
à toa na Shochiku, em 1948, onde foi assistente
de três diretores, e seis anos depois passou para
a Nikkatsu, companhia em que viria a construir sua carreira,
inicialmente como assistente, e depois como realizador.
Engajou-se nos filmes de yakuza, uma das especialidades
da produtora. Eram produções relativamente
baratas, com poucos dias de filmagem em comparação
aos filmes considerados mais sérios, e histórias
que tendiam à repetição e à
digestão confortável dos fãs do
gênero. Ou seja, algo muito aproximado do modo
de produção do cinema B americano com
seus westerns e noirs. Ora, se a margem
de liberdade que se oferecia a Suzuki na escolha de
temas e nas condições de produção
eram mínimas, havia apenas uma forma de se destacar
do resto da produção e aplicar um tipo
de visão mais criativa: através dessa
categoria tão especial que para muitos
é inteiramente desprezada mas que, para outros,
constitui a magnificência da arte cinematográfica
que é a mise-en-scène. Se
seus filmes não se parecem com os filmes de nenhum
outro, dentro ou fora da Nikkatsu, dentro ou fora do
Japão, dentro ou fora do gênero ao qual
eles freqüentemente obedecem, é simplesmente
porque a maneira de orquestrar o espaço visual
pertence tão-somente a uma sensibilidade específica,
a de seu diretor.
De 1956 a 1966, Suzuki dirigiu nada menos do que 35
filmes, numa média de três por ano. Era
o modo de produção da companhia, que não
pedia nada além de produtos bem realizados tecnicamente
e compatíveis com aquilo que o público
esperava assistir. Espaço de preguiça
artística e respeito ao modelo para os diretores
mais acomodados, mas também espaço intenso
de experimentação para aqueles que querem
ultrapassar os limites e as convenções.
Se a irreverência e a extravagância em relação
aos códigos ficcionais só aparecem no
começo da década de 60, em A Bela da
Favela (Ankokugai no bijo, 1958), já
é possível entrever como a armação
formal parece aproximar-se ligeiramente do tipo de comportamento
extremado da menina que o título evoca, uma adolescente
que se apaixona por um artista que não hesita
em vendê-la aos figurões de uma organização
criminosa. Muito glamuroso na fotografia estilizada
em preto-e-branco, o filme retrata em tons fortes um
certo clima no future de uma nova juventude japonesa,
desprendida de maiores preocupações morais
e entregue aos vícios mais imediatistas da sociedade.
Esse niilismo total dos personagens jovens reapareceria
em O Portal da Carne/A Barreira da Carne (Nikutai
no mon, 1964) e em História de uma Prostituta
(Shumpuden, 1965), sempre através de protagonistas
femininas que, ejetadas do círculo social a que
pertenciam, exibem uma selvageria de comportamento que
renega em bloco os valores sociais e esmera-se em transgredir
todos os limites possíveis, incluindo aí
os do próprio grupo em que entram.
Ora, outro não é o desejo de Suzuki. Cineasta
jovem (nascido em 1923, apenas com 33 anos quando começou
a dirigir filmes), com uma sensibilidade irrequieta
e uma indisciplina muito característica e próxima
do que viria a ser o boom cultural dos anos 60, ele
começou a empregar em seus filmes certos toques
que vão chamar a atenção de uma
juventude pop e intelectual: um certo desprendimento
em relação à clareza da narrativa
que por vezes se torna tão rocambolesca
a ponto de tornar-se quase irrelevante , uma explosão
de cores aberrantes que forçosamente chamam a
atenção mais para si mesmas do que para
a evolução da história a ser contada,
uma certa concepção da imagem que transforma
a cena num palco anti-realista em que o mais importante
é a construção visual. Se a exploração
de sexo e violência já era um dado no meio
em que Suzuki trabalhava (títulos de alguns de
seus filmes antes de 1963: Pistola e Mulher Nua,
Seios Virgens, Idade da Nudez, Abaixo
os Vândalos, Yakuza Adolescente), a
guinada para uma encenação francamente
menos ilusionista vai fazer seus filmes atingirem uma
venalidade light e uma trivialidade que acabam
aproximando-os de uma canção pop. De fato,
o pop muitas vezes aparece na banda sonora (um dos personagens
de Abaixo os Vândalos, por exemplo, é
roqueiro) e as inquietações jovens são
freqüentes em seus filmes, repletos de protagonistas
adolescentes ou pós-adolescentes que vivem a
famosa teen angst dos anos 50-60.
1963 é então uma espécie de linha
demarcatória. Tanto na carreira de Suzuki, que
começa a ser percebido com mais cuidado a partir
de O Vagabundo de Kanto (Kanto mushushu,
1963), quanto para o público ocidental de hoje,
que tem à sua disposição apenas
os filmes realizados dessa data em diante. É
o momento em que a consciência do poder da cor
fica cada vez mais evidente na construção
de um espetáculo mais distanciado do naturalismo
convencional, em que certas cenas decisivas passam a
assumir um interesse muito maior do que o equilíbrio
interno do filme, em que a encenação começa
a explodir em toda sua gratuidade. É o que faz
o charme dos moleques travellings laterais de
A Juventude da Besta (Yaju no seishun,
1963), das deslumbrantes e abstratas seqüências
mais importantes de A Barreira da Carne e principalmente
da formidável cena de luta de O Vagabundo
de Kanto, em que um dos malfeitores é morto
pelo herói e cai numa parede cenográfica,
fazendo todo o cenário ir ao chão e revelar
atrás dele uma intensa luz vermelha que desmonta
inteiramente a diegese do filme (procedimento semelhante
seria repetido na absurda e inebriante cena final de
Tóquio Violenta). Nesses momentos gloriosos,
a mise-en-scène não está a serviço
da história, e sim constrói sua própria
história, em paralelo ou em arbitrariedade em
relação ao que ela deveria "colocar
em cena". Como em alguns filmes de Brian De Palma,
principalmente aqueles feitos de comanda, a graça
do filme reside quase que unicamente na poesia instaurada
pela pura construção de visualidade, um
autêntico filme-dentro-do-filme.
Então: Seijun Suzuki, cineasta abstrato? Sim,
e em alguns níveis diferentes. Como vários
cineastas de gênero (Jaen-Pierre Melville, Budd
Boetticher), Suzuki utiliza a depuração
dos mecanismos de construção dramática
como estratégia de evidenciação
da mise-en-scène, e faz com que tudo ganhe em
charme e fetiche. Mas se tanto Melville quanto Boetticher
vão primar pela concisão e pela elegância,
Suzuki vai em caminho inverso, criando um universo extravagante
e assimétrico, cheio de excessos e transbordamentos.
É essa a sua trajetória na Nikkatsu, culminando
com o surreal Tóquio Violenta (Tokyo
nagaremono, 1966) e com o inominável A
Marca do Assassino (Koroshi no rakunin, 1967),
em que a própria trama vira apenas um pretexto
para seqüências e seqüências de
delírio visual e rítmico. A abstração
é quase completa, fazendo do filme mais uma obra
de vanguarda cinética do que propriamente um
filme de ação (a história gira
em torno de uma luta entre assassinos de aluguel para
ver quem é o melhor de todos). Naturalmente,
Suzuki estava feliz com o resultado, mas o filme incomodou
a Nikkatsu o suficiente para bani-lo da companhia, ocasionando
ao diretor um período de dez anos longe das telas
de cinema.
Dez anos depois, História de Melancolia e
Tristeza (Hishu monogatari, 1977) revela
um Suzuki bastante incomum em relação
àquele dos anos 60. A irreverência permanece
lá, as elipses temporais estão cada vez
mais selvagens, o apuro visual permanece cativante,
mas seus filmes não pertencem a qualquer gênero
definido. O frescor pop dá lugar a uma transgressão
mais refinada, aproximando-o mais de um Raoul Ruiz ou
de uma Marguerite Duras do que dos cineastas maneiristas.
A história é centrada na vida de uma modelo
que é transformada em campeã de golfe
a fim de melhor divulgar uma nova campanha de roupas
esportivas, e que acaba tendo sua vida transtornada
por uma fã que acaba querendo brilhar mais do
que ela. Deboche do glamour da publicidade e da vida
das pessoas como joguetes numa sociedade da comunicação,
o filme constrói suas seqüências como
objetos quase desconectados um do outro, dando muito
mais atenção ao alto poder evocativo das
imagens do que à trama de ascensão e queda
existencial da protagonista. Zigeunerweisen (Tsigoineruwaizen,
1980) segue ainda mais radicalmente essa trilha, mostrando
um apuro cada vez maior na composição
de imagens e na descontinuidade de seqüências
por vezes, mesmo entre os planos. A própria
música de Sarrasate que dá nome ao filme
parece mais protagonista do que os próprios personagens.
Definitivamente a partir daí o espaço
cinematográfico é transformado em palco
para uma poesia lacônica e hermética. O
filme inicia a "trilogia Taisho" (período
entre os anos 20 e 30 no Japão), que seria continuada
com os também exuberantes e delirantes Kageroza
(1981) e Yumeji (1991).
Depois disso, sua volta ao longa-metragem só
aconteceria depois de mais uma série de dez anos
parado, com Pistol Opera (Pisutoru opera,
2001), espécie de remake de A Marca
do Assassino ainda mais rebuscado e assustadoramente
virtuoso. Se em alguma medida o filme retoma os temas
e o universo dos filmes de ação que lhe
tornaram célebre, a mise-en-scène de Suzuki
trabalha em sentido inverso, alcançando níveis
ainda mais radicais de abstração em relação
aos filmes anteriores. É como se só existisse
mundo ali onde a câmera aponta, como se lugares
e pessoas e palavras fossem totalmente intercambiáveis,
e um filme nada mais fosse do que o registro de aparições
e desaparecimentos. Um dos filmes mais radicais e estimulantes
da década corrente, Pistol Opera infelizmente
jamais teve exibição no país, apesar
de uma acolhida bastante positiva em todos os festivais
pelo qual passou. Princesa Guaxinim (Operetta
tanuki goten, 2005), estreado no Festival de Cannes
do ano passado, adapta a abstração suzukiana
para o musical, misturando estúdios de parede
branca com locações, números musicais
tipicamente orientais com outros notadamente ocidentais,
em franca coerência com a estética exuberante
e teatralizante do filme anterior. Se a invenção
visual que se espera de Suzuki parece estar ausente
em alguns dos números musicais, as cores e sobretudo
a montagem compensam facilmente o esforço, criando
um espetáculo dos mais estranhos já vistos,
em que o mau gosto se confunde com o mais profundo requinte,
em que um gênero se confunde com outro, em que
enfim o cinema não precisa fingir dirigir-se
à realidade trabalhar na esfera frágil
do verossímil para nos impregnar de prazer
e imaginação.
Se a partir de História de Melancolia e Tristeza
o cinema de Suzuki se revela visivelmente como algo
diverso do que ele fazia até então, é
sobretudo porque a mise-en-scène começa
a ser utilizada não mais como subtexto através
do qual se pode construir os efeitos estéticos
desejados, mas como o próprio texto sobre o qual
o filme inteiro é ordenado. A operação
de abstração é mais discernível,
mas não necessariamente maior (como poderia ser
mais abstrata do que A Marca do Assassino?).
Pode-se naturalmente preferir uma primeira fase de artesão
subversivo à segunda fase, de esteta auto-consciente
e também pode-se, da mesma forma, considerar
sua segunda fase como a cristalização
e a libertação da primeira , mas
nos parece muito mais interessante e proveitoso ver
como, através das décadas e de uma forma
muito pronunciada, o cinema de Suzuki sempre obedeceu
ao humor e à sensibilidade muito particulares
de um diretor único em suas provocações
às formas mais convencionais de realizar um filme,
que levou até o limite suas experimentações
e que soube unir, como poucos, o gênero com a
vanguarda, o delírio especulativo com o entretenimento
mais inofensivo, a ternura de encenador com o ímpeto
mais rebelde. Afinal, entre a comunidade de prostitutas
de Barreira da Carne que vestem roupas de um
colorido aberrante e se torturam entre si e o espetáculo
multicor de vingança feminina em Pistol Opera,
não há tanta diferença assim. Há
desejos de dor, de superação, de morte,
de vida, de alguma coisa intensa que ultrapassa o bem-medido
e as convenções da tradição
para buscar alguma coisa distante, nobre, rara. Algo
que só aqueles que se aventuram em terras estranhas
e espantosas podem perseguir. Um terreno que Suzuki
sempre buscou e hoje pode se orgulhar de ter alcançado.
Ruy Gardnier
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