(Caminhando
no Gelo, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982)
Foram mil quilômetros de Munique até Paris,
e Werner Herzog os percorreu a pé. A grande historiadora
do cinema alemão Lotte Eisner, ou melhor, Eisnerin,
como era carinhosamente chamada pelos mais próximos,
se encontrava doente em Paris, com os dias contados
segundo os médicos. O cineasta, apontado por
ela como o grande nome da sua geração,
lançou-se àquela peregrinação
como um ato de sacrifício pela amiga e inspiradora.
"Não pode ser", ele disse quando recebeu
a notícia do grave estado de saúde de
Eisnerin: "Não agora. O cinema alemão
ainda não pode ficar sem ela, não devemos
deixá-la morrer". E logo partiu em viagem,
apenas com uma bússola, um par de botas e uma
bolsa contendo o essencial. A empreitada durou três
semanas, entre 23 de novembro e 14 de dezembro de 1974.
No caminho, ele escreveu um diário que somente
quatro anos depois, quando releu e se sentiu tomado
de uma "estranha emoção", seria
publicado com o título de Caminhando no Gelo
(Von Gehen in Eis).
Em se tratando de um diário, no qual o relato
vem sempre precedido da data, somos imediatamente surpreendidos
pelo convite a um tempo em suspensão. Dia e noite
se confundem, brigam por uma cor no horizonte, da mesma
forma que ficção e realidade, memória
e presente progressivamente se misturam na narrativa.
Um evento que começa a ser descrito após
Herzog presenciá-lo se soma a um lampejo de memória,
ou a uma fagulha de ficção, e já
não estamos mais seguros quanto à natureza
do relato. A solidão da jornada vai inculcando
nele um desejo cada vez maior de dramaticidade (que,
no fim das contas, se mostra a própria dramaticidade
do porvir). Os dias se acavalam e num determinado momento
já não sabemos se o que está escrito
corresponde de fato àquela data indicada acima
ou se na verdade é uma condensação
de diferentes passagens da jornada de Herzog, e até
mesmo de sua vida como um todo. O tempo começa
a perder qualquer aspecto aferível, espalhando-se
pelo infinito.
Que é o infinito do próprio trajeto. Sábado,
7/12: "Andei. Andei. Andei. Andei". A repetição
dos passos se desdobra na repetição das
palavras, pois Herzog procura uma linguagem adequada
ao caráter físico da experiência
que ele pretende descrever por meio dela – uma experiência,
no caso, extenuante. De tanto andar, Herzog pára
de sentir as pernas (embora seu tornozelo direito nunca
desinche). A escrita repetitiva do "andei"
reforça o cansaço da marcha incessante,
mas é também a afirmação
de que cada passo tem o poder de apagar o anterior,
até que não sejam mais os pés de
Herzog a se esgotar contra o chão e sim a paisagem
a desfilar ao seu redor. Num determinado momento, ele
vê seu corpo impelido para frente pelo discreto
declive da estrada e se imagina pronto a voar: se a
viagem tem um local de partida e um local de chegada
bem definidos, o que se acha entre um ponto e outro
traça um arco por cima do espaço.
Eis o lado mágico do livro: ao mesmo tempo em
que a caminhada se transmuta em flutuação,
há uma potência visual assustadora e uma
incrível fisicalidade nas palavras, o que garante
um constante reenvio do relato à terra, ao solo,
às condições geoclimáticas
da travessia. Sentimos o gosto da beterraba que Herzog
cata no chão, a polpa granulosa da maça,
o leite que ele quase regurgita de tão avidamente
que deglute, a boca seca após quilômetros
de caminhada sem achar líquido para beber, o
deslocamento de ar provocado pelo caminhão que
cruza a estrada, a chuva que "pode cegar",
o frio sob a nevasca, o sono intranqüilo, a melancolia
monocrômica dos campos enlameados e inabitados.
E vemos os trevos verdes no chão coberto de neve,
a bola de plástico abandonada no matagal, as
tiras de revista pornográfica que alguém
deixou pelo caminho, a embalagem que bóia numa
poça d’água. Assim como vemos, de um modo
diferente, a chegada da noite como que extraída
de um grande clássico da literatura romântica:
"Começa uma inacreditável precipitação
de estrelas, mundos inteiros desabam juntos sobre um
mesmo ponto. A luz não pode mais escapar, mesmo
a total escuridão aqui atuaria como luz, e o
silêncio como estrondo. Nada mais preenche o universo,
é o bocejo do mais negro vazio". Esse trecho
mostra que, apesar de visceral e palpável na
sua maior parte, a narrativa de Caminhando no Gelo
parece por vezes a travessia de um sonho.
O livro revela um impulso artístico extraordinário
em Werner Herzog. Para artistas como ele, o que importa
é ter diante de si uma experiência e registrá-la
com vigor. Se na maior parte das vezes havia uma câmera
de cinema ao seu lado, ele provou que na falta dela
caneta e papel bastam. Quinta-feira, 5/12: "Diante
de mim, um arco-íris me enche de repente de uma
louca esperança. Que maravilhoso sinal à
frente e acima de quem caminha. Todo mundo devia caminhar".
Herzog dialoga simultaneamente com ele mesmo e com o
mundo inteiro. Sua viagem ao encontro de Lotte Eisner
é também uma viagem a algum lugar além
do arco-íris, onde o aguarda, quem sabe, o próprio
mistério do cinema.
Nas últimas linhas do livro, entendemos por que
Herzog chegou a afirmar que gosta mais de Caminhando
no Gelo do que de todos os seus filmes. Lotte Eisner
à beira da morte, para ele, era o cinema sendo
submetido a uma prova de vida. O que fazer? Colocar-se,
ele mesmo, à prova. A experiência o conduz
ao limite do humano: mais de uma vez no livro, ele diz
que foi ao espelho só para conferir se ainda
tinha aspecto de homem, ou se tinha virado um ser de
outra espécie. Mas no sábado dia 14 de
dezembro, quando ele finalmente chega a Paris e visita
Eisnerin (que ainda viveria mais dez anos), um profundo
lirismo se soma a seu aspecto àquela altura animalesco:
"Por um instante fino e breve, algo suave atravessou
meu corpo exausto. Eu disse: abra a janela, há
alguns dias aprendi a voar". Ao final da sua longa
e sacrificante jornada, Werner Herzog percebeu que havia
caminhado sobre a linha divisória entre o céu
e terra.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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