Há
um profeta no centro de Coração de
Cristal. Hibernando no alto das montanhas, onde
eventualmente recebe visitas de fiéis transtornados
pelos mistérios da vida e ansiosos por notícias
do tempo futuro, um tempo ao qual só ele parece
ter acesso, Hias é o oráculo da pequenez
de uma cidade que construiu seu espírito a partir
do vidro-rubi. À essa matéria rubra, top
de linha da produção das oficinas de vidro
do lugar e supostamente repleta de propriedades místicas
e curandeiras, os habitantes do povoado devotam a própria
continuidade de sua existência, e quando morre
o mestre-vidreiro, único a possuir a fórmula
do vidro-rubi, morre também a cidade. Hias já
profetizara o colapso com exatidão, e a confirmação
de suas vidências só faz aumentar no povo
a idéia de que ao bom profeta não cabe
apenas adiantar o futuro catastrófico: é
preciso usar suas forças para evitá-lo,
sob pena de parecer que, mais que adivinhador, o profeta
é o próprio agente catalisador do fim.
Hias é preso pela multidão enfurecida,
e este ato é uma espécie de atestado de
suas habilidades premonitórias – o caos anunciado
se espalha pela cidade de tal maneira que não
poupa nem mesmo seu membro mais dileto. No cárcere
da planície tomada pela ambição,
Hias só pensa em voltar às montanhas,
ver seu bosque novamente, sair do ambiente que faz de
um mero bibelô de vidro vermelho o fiador de sua
existência e voltar ao espaço quase atmosférico
onde o que se vê é a imensidão de
um mundo que explode em grandeza. O profeta retorna
a seu habitat natural, filho da natureza que é.
Chega à caverna que lhe serve de abrigo, e se
espanta ao ver que um urso enorme a ocupa. Hias luta
ferozmente com o urso – e o urso simplesmente não
existe. Vemos o ator Josef Bierbichler abraçar
o vazio, rolar pela neve segurando algo gigante que
não passa de ar. Domina e vence a luta contra
o animal, satisfeito por ter, ao mesmo tempo, reconquistado
seu lar e conseguido carne para se alimentar por muitos
dias. O profeta cozinha o urso numa fogueira, e pensamos
que tudo aquilo que ele havia previsto sobre a derrocada
da cidade, sobre as brigas e mortes, sobre a fome e
a miséria, tudo aquilo talvez não passasse
de imaginação da mente de um doente mental.
Profeta uma ova! Maluco, isso sim. Será?
Da profecia à poesia
Em O Homem-Urso, seu mais recente documentário,
Werner Herzog, lá pelo meio do filme, tenta traçar
uma linha distintiva entre ele e seu objeto, o ecologista
Timothy Treadwell. Diz o próprio Herzog, na narração,
que enquanto a idéia de mundo do ecologista se
baseava no amor, na harmonização e pacificação
das instâncias naturais, o mundo visto pelo diretor
era fundado justamente no oposto, no ódio, na
desarmonia e no caos. Essas três forças
são protagonistas indiretas de quase todos os
filmes de Herzog. O caos como princípio organizador
de cada ação, como fonte de todos os sentimentos,
o ódio como a única possibilidade de existência
destes, tudo arquitetado de maneira disforme e incongruente.
Se estes são pontos de partidas compartilhados
por filmes tão diferentes como Woyzeck,
a ladeira-abaixo teatral de um homem atormentado pela
traição, e Além do Infinito
Azul, uma ficção científica
de dimensões kubrickianas, não é
difícil perceber que todos caminham, em algum
momento, para uma inegável vontade de harmonia.
Numa das cenas mais impressionantes de Coração
de Cristal, vemos um dos trabalhadores da fábrica
de vidros tirar do forno a matéria-prima incandescente,
presa a um pedaço de ferro que lhe serve de suporte,
e a partir de pequenos toques e pinceladas com um instrumento
pontiagudo, começam a aparecer naquela bola de
fogo formas que, no final, formarão um belo cavalo
de vidro. Da representação mais direta
do caos surge uma forma de vida: não é
questão de forçar na desarmonia a existência
de algo que não lhe diz respeito, mas sim perceber
que já existe nela esta possibilidade, apenas
coberta e escondida por camadas de lava flamejante e
mesquinharias. Basta saber observar.
Eis aí o grande engano da população
daquela cidadezinha vidreira da Alemanha oitocentista.
Hias não era um profeta. Sua habilidade era a
de ser um grande observador. O colapso daquele microcosmos
de civilização já estava visível
em suas próprias engrenagens, mas o contato tão
intenso e imediato dos citadinos com o meio em que viviam
os tornava cegos à essa fatalidade iminente.
O falso profeta conseguia ver o que ninguém mais
via: se sua luta com o urso imaginário é
quase patética, talvez assim pareça por
conta de nossa incapacidade em perceber a presença
do animal. Quando vai comer o algoz, vemos que existem
de fato dois pedaços de carne pendurados sobre
a fogueira – carne de quem, se não havia urso?
Ora, é possível que houvesse. As significações
já estão espalhadas pelo mundo, e para
sabê-las não é preciso profecia.
Cabe ao bom observador (e ao bom cineasta) perceber
este manancial de sentidos e verbalizá-lo – mesmo
sob o risco de ir para a cadeia. Com o tempo, essa prática
da decifração do caos pode até
ajudar na construção de um novo modelo
de vida. O fim de uma civilização só
pode ser consumado se outra já estiver pronta
para tomar seu lugar. Em Coração de
Cristal, morre um povo fanático por um vidro
vermelho, e ao mesmo tempo nasce uma nova geração,
homens esquecidos que nem mesmo sabem que a Terra é
redonda, e que por isso se aventuram pelo mar em busca
daquilo que imaginam ser um abismo, o fim do mundo.
Navegam para o fim e mal sabem que é só
o começo: Hias narra esta experiência com
a inteireza de quem, apesar do distanciamento, é
tão pertencente àquele mundo quanto os
que sua voz acompanha. Rumo ao abismo, mas a última
palavra dita em Coração de Cristal
não poderia ser outra: esperança.
"Só acreditaria nisso tudo se fosse um
filme"
Esperança, sobretudo, de que nunca se esgote
esta capacidade de observação e apreensão
das imagens em toda sua potência de sentidos.
A maior vitória pessoal do jovem Kaspar Hauser
no trajeto de socialização por que passa
no filme homônimo de Herzog é exatamente
a possibilidade adquirida de sonhar. Preso no cativeiro
durante toda sua vida, com seu universo resumido a sua
própria figura como única referência
humana e as paredes da cela como única paisagem
possível, Kaspar Hauser nunca tivera um sonho
antes: é no mundo, e apenas nele, que se encontra
a matéria-prima do inconsciente. As mais belas
imagens de O Enigma de Kaspar Hauser não
pertencem a ele – e nem mesmo a seu protagonista. As
quatro grandes seqüências oníricas
do filme são a essência daquilo que Herzog
usará constantemente em sua carreira, são
imagens de segunda mão. Kaspar aprende
a sonhar, mas quando o filme pega emprestado dele essas
imagens, vemos que o próprio personagem já
as havia pego de outrem. Tomadas do Cáucaso,
de uma bela mulher à beira de um lago, de um
monte sísifiano em que as pessoas sobem para
encontrar a morte, de uma caravana no deserto do Saara
que se depara com a miragem de seu destino: não
necessariamente experiências vividas pelo próprio
Kaspar, mas que podem muito bem se tornar suas,
já que suas credenciais de homem pleno em contato
com o mundo estão expedidas – como Hias, que
antevê a desgraça num ambiente ainda calmo,
e depois narra a esperança numa situação
que caminha aparentemente para o abismo, Kaspar está
autorizado a fazer daquelas as suas próprias
imagens desde que saiba olhar para elas e retirar dali
significados já presentes, mas que ainda não
foram alardeados.
Essa disposição à descoberta de
outras significações naquilo que já
existe enquanto imagem será uma tônica
nos trabalhos de Herzog, presente em algumas de suas
ficções, mas fundamentalmente atuante
nos documentários. As relações
com essas imagens de segunda mão se darão
a partir de duas posturas diversas. A primeira delas
seria a da reconstituição. Seja em Nosferatu,
o Vampiro da Noite ou nos documentários de
vinte anos depois, O Pequeno Dieter Precisa Voar
e Juliane Cai na Selva, Herzog trabalha com um
material que já existira anteriormente enquanto
imagem (o filme de F.W. Murnau, e a própria experiência
real de Dieter no Vietnã e Juliane na Amazônia).
Na reconstituição desses eventos, percebe-se
uma tensão constante entra a vontade do diretor
em atribuir novos sentidos àquilo que reproduz
e a resistência do material original em manter-se
fiel aos sentimentos gerados na primeira ocasião
em que as imagens foram produzidas, sentimentos que
eventualmente se diferenciam daqueles que o diretor
enxerga. O Nosferatu de Herzog é um herói
romântico que briga o tempo inteiro com a memória
do vampiro fantástico do original expressionista.
Tanto em O Pequeno Dieter quanto em Juliane
não são poucos os momentos em que Herzog
tira a voz dos protagonistas, que falam sobre os detalhes
de suas aventuras-limite, para que ele mesmo atribua
sentidos outros àquela situação.
Diante da presença de outro agente significador
em potencial, o trabalho do diretor parece o de convencer
que sua versão dos fatos é tão
válida quanto a daqueles que os viveram em primeira
instância, e a necessidade de reconstituir os
trajetos passados e atualizá-los enquanto imagem,
ao mesmo tempo que fragiliza a posição
de Herzog nesses casos particulares, fortalece a idéia
de que é a observação o caminho
possível para aquele que pretende, de alguma
forma, se ligar com o mundo que vive.
Por outro lado, é preciso quase nenhum convencimento
para que o espectador veja em Lições
da Escuridão um ambiente pós-apocalíptico
ou em Além do Infinito Azul a exploração
de um planeta desconhecido. Se é impreciso julgar
o fato de Juliane não se emocionar ao reencontrar
destroços do avião que caiu com ela na
selva, ao contrário, as imagens de um novo mundo
inóspito já existem nas imagens
do Kuwait devastado pela Guerra do Golfo, do mesmo modo
que nas imagens do fundo do oceano já existem
àquelas correspondentes a um astro de outra galáxia.
Nesses dois casos, Herzog se afasta de uma certa soberania
autoritária e se aproxima diretamente daquilo
que faziam Hias e Kaspar Hauser: diante destas imagens,
mais que brigar por uma idéia, é preciso
compartilhá-la, retirar aquelas mesmas camadas
de lama flamejante anteriores e atingir o núcleo
daquilo que pulsa em multiplicidade. Uma outra postura,
a reconstrução, pela montagem, pelo uso
da música, pela narração; no fim
das contas, retirar estas imagens de seu contexto inicial,
torná-las de segunda mão, e aí
então harmonizá-las com aquilo que o observador
consegue perceber nelas – por mais que insista, Herzog
parece, a cada novo filme, um grande defensor da harmonia.
Se tira do caos sua fonte de inspiração,
é tão somente para entregar, mais adiante,
belos cavalos esculpidos em vidro. Longe a profecia,
é no contato direto e irrestrito com o mundo
que Herzog encontra seu cinema, e se compramos seu peixe
é porque poucos sabem vendê-lo com tamanha
integridade. O óleo negro em Lições
da Escuridão pode até fingir ser água.
Herzog observa, atribui, idealiza, reconstrói,
mas sempre sobre algo que já está lá:
com ele não há fingimento.
Rodrigo de Oliveira
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