Enquanto
Neste Mundo ganha tardiamente as salas de cinema
no Brasil, o mais recente filme de Michael Winterbottom,
The Road to Guantanamo, começa a ser distribuído
ao redor do mundo. Na eclética e estilisticamente
oca carreira de Winterbottom, esses dois filmes se sustentam
como filmes políticos, enfocando as mazelas do
mundo contemporâneo assim como podem. O primeiro
acompanha dois jovens afegãos em sua vontade
de chegar à Inglaterra clandestinamente, passando
pelas maiores penúrias materiais e existenciais
e arriscando a própria vida; o segundo é
uma reconstituição ficcional de como três
jovens britânicos de origem paquistanesa acabam
presos por dois anos na base de Guantanamo, espécie
de terra de ninguém em que o governo americano
pode prender quem quiser, por quanto tempo quiser, sob
a alegação mais banal possível,
mantidos em invisibilidade absoluta em relação
ao resto do mundo. Dois filmes-denúncia, pois,
que utilizam certos registros modernosos de linguagem
para dar um "dinamismo" às seqüências:
a câmera tremida na mão para dar a sensação
de registro ao vivo, a idéia de reconstituição
para dar veracidade, uma montagem cheia de sobressaltos
para dar ao espectador a impressão de real bruto.
Em cada um dos filmes, o artesanato existe apenas para
atribuir aos filmes o feitio de um documentário,
ou seja, de que é a verdade que está sendo
filmada.
No fundo, é uma questão de consumo, de
compra e venda de emoções acachapantes:
o filme brinca de trapacear o espectador e o espectador
finge estar sendo enganado para sentir o frisson da
emoção de acompanhar "em locação"
o drama daqueles personagens, jovens, inocentes, bons-vivants,
enfim, pessoas como "nós" (o europeu
jovem descolado). Maneira sutil, pois, de despolitizar
o discurso, porque lida com a repressão só
ali onde as pessoas que dela sofrem podem ser consideradas
inocentes ou, na pior das hipóteses, pessoas
adoráveis a quem devia ser dado um habeas-corpus
geral. Mas o que mais incomoda nesses dois filmes não
é exatamente a forma afetada de filmar e tampouco
a falsificação de uma forma geralmente
atribuído ao documentário e à reportagem
de campo. O que exaspera profundamente é que,
nas mãos de Michael Winterbottom, o político
é um simples pretexto para criar imagens ilustrativas
que, ao invés de intensificar uma potência
do falso, parecem o tempo inteiro dizer tautologicamente
"foi assim, foi assim, foi assim", atribuindo
às imagens não uma singularidade que lhes
daria um poder próprio, mas fazendo delas simplesmente
o índice reconhecível de alguma generalidade,
ou seja, algo muito próximo da definição
estrita de clichê. Estranha categoria do cinema
político: se num dado momento, coube aos cineastas
aos quais a política importava Rossellini,
Godard, entre tantos outros separar um acontecimento
de um indiferenciado de visualidades e criar uma imagem
("juste une image", como no slogan bem conhecido
de Godard), ou seja, fazer do cinema um gesto de artista
que individualiza um comportamento, uma sensibilidade,
um modo de ser, o que faz o cinema de Winterbottom (e
sem dúvida também o Fernando Meirelles
de O Jardineiro Fiel) é o exato oposto,
partindo de uma situação individual e
fazendo-a chegar numa generalidade publicitária
da contestação.
É claro que é importante criar um imaginário
do que é ser um refugiado passando de fronteira
em fronteira, se escondendo em contêineres por
semanas sem comer (Neste Mundo), ou revelar os
maus-tratos aos quais são submetidos os suspeitos
de terrorismo enviados à base naval de Guantanamo
(The Road to Guantanamo) e isso,vamos
admitir, os filmes realizam a contento , mas o
namoro com o "realismo", ou melhor, com um
verismo meramente funcional, existe apenas para acionar
no espectador certos gatilhos de tensão, ou thrills,
já que os filmes se constróem como thrillers.
A política não é onde se chega,
mas de onde se parte. A construção de
sentido dos filmes, então, vai ser uma apropriação
de um conjunto de temas associados às injustiças
mundiais que estão no ar do tempo, e uma transformação
desses conteúdos em material vendável
a um determinado público alvo interessado. O
"político" passa a ser um terreno vago
ditado pelo imaginário jornalístico mundial
e recodificado em objeto de fetiche pelo cineastas,
como uma infame política de identidade. Relação
mercantil-pop com o cinema e com o político,
criadora de modas e tendências, chamemos esse
uso do político de "camisetas Che Guevara".
Um outro uso, possivelmente mais discreto, também
é feito de viagens ao redor do mundo, por documentaristas
do mundo rico, que filmam as mazelas do mundo pobre.
Nascidos nos Bordéis, de Zana Briski e
Ross Kaufman, é o registro do contato de uma
fotógrafa com crianças filhas de prostitutas
em Calcutá, e O Pesadelo de Darwin, de
Hubert Sauper, é o registro de como a perca do
Nilo, um peixe altamente lucrativo, destruiu o ecossistema
de um lago da Tanzânia e submeteu os moradores
dos vilarejos ribeirinhos a empregos miseráveis
ou humilhantes a serviço dos maganos locais que
trabalham com empresas transnacionais. Ou seja, a princípio
não há nada que una os dois documentários.
Mas se prestarmos atenção na maneira como
as lógicas internas dos filmes cuidadosamente
se constróem, toda a penúria material
das populações é trabalhada num
sentido miserabilista que parece demais com a caricata
propaganda "patrocine um africano" que aparece
no (também nefasto) filme de Alexander Payne
As Confissões de Schmidt. Curiosa manipulação
do político, utilizar como principal operador
de significação a pobreza e a miséria
como elemento fetiche melodramático, que ainda
se reveste como denúncia para chamar a atenção
das autoridades. Isso é respaldado, em ambos
os casos, por um bom-mocismo que precisa ser sublinhado
o tempo inteiro nos dois filmes, seja na auto-glorificação
que se faz da co-diretora do filme, seja no episódio
em que Sauper nos indica que ocorreu o assassinato de
uma das prostitutas entrevistadas no filme, mas que
por razões éticas ele não iria
mostrar certas imagens que ele tinha. Naturalmente,
o "ético" aqui trabalha muito mais
como capital simbólico (afinal, que uso da ética
chama atenção para o próprio uso
da ética?) do que como lógica natural
e honestidade intelectual de um processo. São
filmes que, em sua economia simbólica, não
sugerem mas só apontam uma solução:
a intervenção externa, a saída
assistencialista por parte de, ahn, atores sociais mais
ricos. Ainda que a saída assistencialista seja
parte do problema em O Pesadelo de Darwin, através
de comportamentos suspeitos do Banco Mundial e do FMI
que o filme só menciona superficialmente, as
armaduras conceituais dos dois filmes se assemelham
ao fazer do flagelado pobre terceiro-mundista um grande
personagem generalizado, sem rosto porque só
a opressão os identifica, que necessita de ajuda.
E, claro, o herói que divulga a pobreza é
um mártir, e não um cafetão da
desgraça alheia. Podemos chamar esse uso do político
de "cine-ONG".
Por fim, criando produtos muito mais interessantes sob
qualquer aspecto, temos as séries de documentários
jornaísticos que rodam o mundo contando a verdade
escondida por trás de X, X sendo os atentados
de 11 de setembro, a lógica corporativa, as fraudes
eleitorais que elegeram George W. Bush, a chegada dos
neo-conservadores ao poder nos EUA ou a criação
de grupos terroristas islâmicos no Oriente Médio.
São filmes como The Corporation (idem,
2003, dir. Mark Achbar e Jennifer Abbott), Enron
Os Mais Espertos na Sala (Enron: The Smartest
Guys in the Room, 2005, dir. Alex Gibney), O
Poder dos Pesadelos (The Power of Nightmares:
The Rise of the Politics of Fear, 2004, dir. Adam
Curtis) ou a trilogia Unprecedented/Uncovered/Unconstitutional
produzida por Robert Greenwald. Um cinema de divulgação,
sem dúvida, que se utiliza do cinema como meio
ainda não contaminado pelo pensamento único
da televisão americana que se recusa a transmitir
algo que desminta claramente o presidente americano.
Ao contrário dos outros dois usos do político
vistos aqui, esse uso não cria um tortuosa lógica
para se legitimizar como discurso e se inocentar do
posicionamento. Ele apenas pega do cinema a voga que
ele tem de servir de caixa de ressonância na sociedade,
um certo "parasitismo do bem", produzindo
aquilo que no fundo são verdadeiros programas
de rádio com uma banda de vídeo suplementar
que nos informa o nome das pessoas que estão
falando e nos identifica com seus rostos e jeitos de
falar. O que espanta não é que eles sejam
feitos assisti-los nos fornece uma quantidade
de informações que não teríamos
juntas e conectáveis de outra forma , mas
que eles tenham encontrado no cinema (nos lançamentos
comerciais em cinema, nas participações
em festivais de documentários e outros festivais
em geral) sua forma principal de veiculação.
Na melhor das hipóteses, o cinema é considerado
do lado da informação verdadeira, autêntica,
enquanto a televisão espaço historicamente
determinado à veiculação desses
documentários, ao contrário dos filmes
mais ousados formalmente, buscando outros tipos de apreensão
da realidade, esses sim documentários historicamente
exibidos em salas de cinema fica do lado da conspiração
do poder, daquilo que em boa tradição
marxista se chama de ideologia: um discurso parcial
que recobre a realidade. Na pior, o cinema participa
dessa lógica de distribuição como
informação de gueto, a pequena liberdade
dada a discursos marginais que serve de pretexto para
dizer que há democracia plena ("vários
discursos de contestação sendo veiculados",
etc.). Em todo caso, é uma nova lógica
de partilha da informação política
no cinema, e conseqüentemente, um novo uso. Chamemos
de uso-noticiário.
Se essas três formas têm algo em comum nas
organizações conceituais, lógicas
e visuais que propõem, é o fato de que
a imagem (numa acepção mais ampla que
não significa somente aquilo que está
visível na tela) se encontra achatada, pouco
espessa, sem a densidade que caracteriza, mais uma vez,
historicamente, os melhores filmes aos quais se atribui
um caráter político. Imagem vendável,
imagem generalizante, imagem informativa, imagem exoticizante:
um cinema que não trabalha no sentido de provocar
o espectador em suas verdades, desinstalá-lo
das formas de apreensão mais comuns da realidade
para instalá-lo numa outra, mas num circuito
angustiante de ratificações e confirmações
que coloca confortavelmente o espectador como sujeito
sábio à medida que ele tem "ganho
de informação" quando assiste aos
filmes. Ou seja, algo que funciona num sentido totalmente
inverso de um Alain Resnais, que em Noite e Neblina
ou Hiroshima mon amour, por exemplo (ou Godard
em virtualmente toda sua carreira), fazia do não-saber
a motivação para um questionamento do
papel do espectador: "tu n'as rien vu à
Hiroshima" quando Emmanuelle Riva havia "visto"
tudo; nada ver dos campos de contentração
ali onde o filme havia mostrado "tudo". Político,
nesse contexto e, fortemente, é o contexto
que nos interessa , é o cinema que
torna a imagem em objeto denso, é o cinema que
considera o lugar do espectador não como alvo
ao qual se deve agradar (como claramente pensa Winterbottom,
mas também os Ken Loachs da vida) mas como instância
que se deve provocar, instigar, forçar um papel
ativo no limite, trabalhar com ele numa chave
de liberdade. Essa imagem não é isso
que você pensa parece ser algo impossível
de dizer à imagem publicitária, à
imagem-ONG, à imagem-noticiário. O cinema
é considerado por seu valor de face, e a imagem
obedece apenas à sua própria factualidade,
ou seja, ao fato de que ela está lá e
carrega informações mal ou bem digeríveis,
acompanháveis, sem poder de evocação
ou provocação. É um cinema do todo-imagem,
mas desde que imagem seja igual a zero, desde que ela
possa ser trabalhada, neutralizada, domesticada, asseptizada
para servir aos formatos e às tematizações
já esperados por ela. Curioso uso do político,
esse que nos parece muito claramente como a-político.
É por isso que, a esses filmes que não
nos propõem nenhuma divagação,
nenhum imaginário, que fazem do espectador um
recipiente passivo e deslumbrável (coté
Meirelles, Winterbottom) das informações
"de denúncia" que os filmes apresentam
em sua contemplação no fundo bastante
narcisista, preferimos alguns filmes de zumbis, muito
menos cheios de si, misturando o sujo com o nobre, o
vulgar com o digno e, não se vendendo como "importantes",
conseguem criar camadas contrastantes de significação
que restituem a densidade ao nosso real e produzem em
nós imaginário. Antes filmes de zumbi
do que um cinema em que somos zumbis.
Ruy Gardnier
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