Os
documentários de Werner Herzog podem, grosso
modo, ser divididos em duas categorias: na primeira,
as imagens são organizadas diretamente a partir
do conceito que as une e com que ganham novos sentidos
(Fata Morgana, Lições da Escuridão,
Sinos do Abismo, Além do Infinito Azul);
na segunda, há o personagem que se encontra no
centro da narrativa e através do qual o cineasta
dá vazão às suas próprias
idéias (Terra do Silêncio e da Escuridão,
O Pequeno Dieter Precisa Voar, Juliane Cai
na Selva, O Diamante Branco, O Homem Urso).
Em ambas, Herzog assume para si o papel de narrador,
com raras exceções – parte de Fata
Morgana e Além do Infinito Azul, em
que o alienígena interpretado por Brad Dourif
encarna o alter-ego do diretor. Se nos "documentários
conceituais" a presença de Werner Herzog
na narração se faz natural, visto que
em teoria partem dele todos os significados, o mesmo
não acontece nos filmes em que a câmera
segue o protagonista, pois este também é
capaz de enunciar, de construir sua vida e seus atos
para fora das intenções do diretor-narrador.
Assim, embora a escolha do personagem se dê claramente
pela afinidade que mantém com a temática
perseguida pelo cineasta, o grau de participação
/ intervenção do Herzog narrador varia
de acordo com a excelência do material fílmico
disponível – do contido e discreto, em Terra
do Silêncio e da Escuridão e O Pequeno
Dieter Precisa Voar, ao mais que explícito,
em O Diamante Branco e O Homem Urso, a
ponto de o próprio narrador se tornar personagem.
Em Terra do Silêncio e da Escuridão,
Werner Herzog acompanha a trajetória da cega
e surda Fini Straubinger. Por intermédio da personagem,
entra em contato com outros que possuem as mesmas deficiências:
a senhora que, após a morte da mãe e internada
no sanatório, nunca mais falou; os dois garotos,
cegos e surdos de nascença, que lutam para emitir
o mais simples dos sons ou para vencer o medo de entrar
na água; o jovem Vladimir Kokol, que jamais teve
cuidados especiais, não sabe andar e parece saído
diretamente de um filme de Tod Browning; o homem que,
esquecido pela família, preferiu viver com os
animais, desaprendendo a linguagem e as formas de se
comunicar. Histórias de isolamento e de solidão,
mas também de solidariedade – o alfabeto próprio
dos cegos e surdos que utiliza o toque nas mãos,
o carinho enquanto método para reconectá-los
ao mundo, para retirá-los do silêncio e
da escuridão em que subsistem. Apesar da câmera
de Herzog, a maior parte do tempo inquieta e invasiva,
tudo mostrar, ela paradoxalmente nada revela, uma vez
que não penetra no mais bem guardado segredo
daqueles que observa: como os cegos surdos processam
pensamentos abstratos – por exemplo, o que entendem
por "bondade", "orgulho", "felicidade"?
Terra do Silêncio e da Escuridão
se estrutura sobre este Mistério, que o narrador
preserva ao não tentar explica-lo. De fato, as
parcas intervenções em voice over de Herzog
são meramente informativas, contextualizando
determinadas imagens para que o espectador as compreenda
melhor (afirmar que Vladimir não teve educação
especial quando criança, ou que se trata da primeira
visita de Fini ao zoológico ou ao jardim botânico).
O narrador não opina nem comenta, mantém-se
discreto e permite que a força do material captado
fale por si.
Os cegos e surdos de Terra do Silêncio e da
Escuridão, para Werner Herzog, existem no
limite do mundo civilizado. Eles encampam, nos próprios
corpos, o conflito fundamental entre homem e natureza
que norteia a obra do cineasta. O meio natural caótico
e predatório, os homens levados aos extremos
do sonho, da loucura e da fé, onde a lógica
e a razão perdem sentido. Em Coração
de Cristal, há o profeta Hias que prevê
o fim dos tempos e fala dos insensatos que partem da
ilha isolada de tudo para descobrir se a Terra é
redonda ou termina no abismo. Em Lições
da Escuridão, os bombeiros reacendem as chamas
dos campos de petróleo que acabaram de controlar
porque não conseguem viver sem objetivos a perseguir.
Herzog claramente se identifica com tais personagens
– mesmo que se encontrem fora de qualquer sanidade e
sejam capazes de se autodestruírem –, como demonstra
a relação que estabelece com Dieter
e com Juliane em O Pequeno Dieter Precisa Voar e Juliane
Cai na Selva. O processo de ambos os filmes é
semelhante: o narrador Herzog serve de interlocutor,
para ouvir as histórias dos personagens, fazer
perguntas e reconstituir, passo a passo, os acontecimentos
que os marcaram (Dieter fugiu dos vietcongs,
de quem foi prisioneiro, e Juliane sobreviveu à
queda do avião em que viajava, atravessando a
pé a Floresta Amazônica para se salvar).
A eloqüência de Dieter, que realmente "interpreta"
o papel e fala sem parar, funciona melhor à narrativa
e aos propósitos do cineasta do que os longos
silêncios e o olhar compenetrado de Juliane, os
quais forçam o narrador a intervir para contar
sua própria participação na trama
– Herzog embarcaria no avião para filmar Aguirre,
A Cólera dos Deuses. Mas não o fez.
Também eloqüente e exibicionista é
Timothy Treadwell, que prefere a companhia dos ursos
no Alasca selvagem à civilização
em O Homem Urso. Não passam despercebidos
a Werner Herzog as performances e o instinto de mise-en-scène
presentes nas mais de 100 horas de vídeo que
o ecologista gravou, antes de ser devorado por um dos
ursos com os quais convivia. No entanto, a postura do
narrador/cineasta, respeitosa para com os cegos e surdos
e simpática em relação a Dieter
e a Juliane, mostra-se bastante ambígua quanto
ao personagem que conhece somente a partir das imagens
e dos relatos de terceiros. Se Herzog escolhe seus protagonistas
para apresentar o conceito de que a natureza é
essencialmente negativa, em Treadwell ele encontra o
oposto: o defensor dos ursos enxerga o meio ambiente
de maneira utópica, romântica, idílica.
Na seqüência mais polêmica de O
Homem Urso, o diretor escuta sozinho o áudio
de quando Timothy Treadwell morre, sugerindo depois
que a fita seja destruída. Em Terra do Silêncio
e da Escuridão, tudo está à
disposição do olhar, mas nada se revela,
enquanto em O Homem Urso nada se ouve, mas tudo
está explícito e óbvio: não
há Mistério, e sim a intenção
do narrador, que para tanto se transforma em personagem,
de desautorizar o pensamento do ecologista (que se sente
feliz em morrer pela causa que abraça) a fim
de que se prove a suprema ironia e crueldade da natureza.
Manipulação da verdade do protagonista
e das expectativas do público, que conduz o filme
rumo à esquizofrenia.
Werner Herzog acumula igualmente as funções
de narrador e de personagem em O Diamante Branco,
pois a história em que aposta – o sonho do Dr.
Graham Dorrington de voar com seu dirigível –
revela-se por demais desinteressante. Em meio às
florestas da Guiana, uma vez que o engenheiro permanece
na eterna dúvida de como fazer o aparelho funcionar
e sempre hesita frente à lembrança do
amigo morto na tentativa anterior, o cineasta perde
a paciência com o "protagonista" e resolve
centrar a narrativa no próprio ato de filmar
– ou seja, em si mesmo – e nos personagens que surgem
ao seu redor. Assim, na batalha para convencer Dorrignton
a levá-lo no primeiro vôo tripulado do
dirigível (se caísse, não haveria
filme) – quando solta a impagável frase "in
celluloid we trust" –, Herzog descobre o nativo
rastafári Mark Anthony Yhap, que vive só
depois que a família supostamente se mudou para
a Espanha. Yhap, entre apresentar à equipe de
filmagem seu galo de estimação e voar
no dirigível, conta ao narrador / diretor / personagem
a respeito das cataratas de Kaieteur, cujas cavernas
por trás das águas servem de abrigo aos
pássaros e integram as crenças religiosas
dos povos locais. Em procedimento similar ao que usa
em O Homem Urso, o cineasta não as exibe
ao espectador: embora as tenha filmado, preferiu cortá-las
na edição final para mantê-las em
segredo. Não se trata, contudo, de esquizofrenia
ou de manipulação, e sim de assombro e
de espanto: mesmo que a considere cruel, violenta e
caótica, Herzog reconhece e respeita o infinitamente
Belo que apenas a natureza proporciona.
O final de O Diamante Branco – a revoada de pássaros
para as cavernas atrás das cataratas – não
deixa, portanto, de remeter à citação
de Pascal com que Werner Herzog inicia Lições
da Escuridão: de que o fim do mundo se dará
em espetáculo de grande beleza.
Paulo Ricardo de Almeida
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