DESLOCAMENTO E SUPERAÇÃO:
DAS VIAS ESCAPATÓRIAS DE HERZOG

Da obra de Werner Herzog conhecida do espectador brasileiro, há uma sensação predominante em grande parte de seus filmes: o estranhamento. Estranhamento este do espectador em relação ao filme, e dos próprios personagens em relação aos elementos presentes no universo criado. Cada filme, com sua especificidade, trabalha a inadequação do indivíduo. Dos filmes protagonizados pelo (não-) ator Bruno S. tiramos exemplos evidentes. Em O Enigma de Kaspar Hauser, o protagonista, liberto nas ruas após estar trancado num cativeiro, é inserido numa sociedade dotada de costumes e tradições (representativas das mais comuns sociedades existentes). No entanto, Kaspar Hauser não consegue se identificar naquele meio: suas atitudes, sempre espontâneas, vão contra todos padrões estabelecidos, gerando curiosidade, interesse e conflito. Situação parecida encontra-se em Stroszek, em que mais uma vez é presente a inaptidão do homem, com seus instintos naturais, no espaço em que lhe é oferecido. E se em ambos os filmes Herzog cria espaços ficcionais, mas que estão fortemente relacionados com o cotidiano, quando pensamos o conjunto de sua obra documental, é notável a busca por elementos, indivíduos ou situações, que atendam suas premissas, relatando de maneira decisiva o deslocamento do indivíduo no espaço/ tempo que o cerca, como uma espécie de necessidade de comprovação do experimentado na ficção. 

O uso de longos travellings é assaz presente nos documentários de Herzog. A constante investigação do espaço se faz extremamente necessária quando este vai ser objeto de estudo. É neste espaço que a câmera percorre que estão materialmente inseridos os indivíduos que o povoam. Se por ora temos a sensação de um apego à terra, no momento seguinte temos repúdio. E é neste espaço minuciosamente trabalhado que os "personagens" de Fata Morgana ou de Lições da Escuridão estão incorporados. No primeiro é presente uma série de questionamentos de cunho ontológico ou mesmo existencial, talvez nunca presente de maneira tão taxativa na obra de Herzog. Num filme que apresenta uma série de situações aparentemente desconexas, em que a primeira impressão é de estranhamento (agora do espectador), há a inserção de perguntas que estabelecem uma interação reflexiva com o interlocutor. Com ironia, a narração off (do próprio Herzog) comenta os estudos a respeito das tartarugas marinhas, ou sobre o lagarto que passa muito tempo vivendo no deserto a temperaturas altíssimas. Esse "interesse" do cineasta no mundo animal é muito mais como uma tentativa de compreensão da validade do conhecimento de determinadas questões (salientado pelo tom irônico impresso na narração). Daí a sensação do questionamento existencial, que ao mesmo tempo procura o conhecimento como forma de identificação e determinação de objetivos, se pergunta o por quê de fazê-lo, uma vez que muitas das questões parecem vagas vistas a partir do conflito interno de Herzog. Mas agora, o deslocamento não é só dos "personagens" existentes no filme, mas um deslocamento do próprio diretor, que lança sua visão crítica pensando o papel do homem. Se em Kaspar Hauser ou em Stroszek ambos personagens eram representativos do ser específico que não se enquadra em padrões estabelecidos, nos documentários soa a impressão de feito por alguém deslocado. E este deslocamento interno se dá quando no Paraíso de Herzog (numa das três partes em que é dividido Fata Morgana) reina a mediocridade, numa seqüência escrachada em que músicos sem nenhum talento tocam em uma banda. Aqui a ironia é colocada a tona em favor do ridículo, pois esta vergonha alheia compartilhada com o espectador parece ser a do diretor face ao mundo.  

Sensação parecida está presente em Lições da Escuridão. Numa insistente perseguição junto aos bombeiros que tentam apagar o fogo nos campos de petróleo – resultado dos conflitos na Guerra do Golfo – Herzog faz o espectador transitar ora entre os próprios bombeiros, ora numa visão distanciada. Acompanhamos, num tempo bastante específico, em que a ação é valorizada, a persistência dos bombeiros – a opção de montagem de Herzog valoriza cada plano, atribuindo-lhe uma força específica. A extensão do tempo (em conjunto com a música presente) insere o espectador num universo paralelo, em que suas próprias reflexões têm seu espaço garantido. As chamas parecem infinitas. A água parece nunca ser suficiente. Porém essa disputa (também dos elementos da natureza) envolve o espectador que de certo modo se identifica naquela atividade, acreditando que o abrandamento da situação caótica existente é também o abrandamento das guerras e conflitos criados pelo homem. É como se apagar as chamas levantadas na Guerra do Golfo representasse a demarcação do fim do conflito. No entanto, qual não é a surpresa do espectador quando, nos momentos finais do filme, a narração off de Herzog nos comunica que os bombeiros já não conseguiam mais conviver com a ausência do fogo, era preciso reanimá-lo – e assim o fazem. A atitude é um forte golpe no espectador. Não há mais escapatória, predomina um tom pessimista, pois é quase a constatação de que o ideal predatório esta indelevelmente ligado ao homem. O estranhamento do espectador, agora ainda mais incômodo, é transmitido pela ambigüidade nas decisões humanas, existentes na figura dos bombeiros. E não podemos estar tranqüilos num ambiente em que o conflito (também físico) se faz obrigatório. Mais uma vez Herzog alimenta o diálogo com o espectador, provocando a retórica existencial.  

Lições da Escuridão apresenta também uma temática que será fortemente revisitada na obra de Herzog – a superação do indivíduo. Se aqui o diretor ainda não se detém exclusivamente no acompanhamento da atividade dos bombeiros, tal atitude (de proximidade) será encontrada em O Pequeno Dieter Precisa Voar, Diamante Branco ou Juliane Cai na Selva. Nos três filmes o espectador é inserido e conduzido na aventura proposta e aqui o interesse é mais no conceito presente quando pensamos o conjunto de filmes do diretor alemão. Independente do sonho de voar, de construir um dirigível ou de sobreviver na floresta amazônica por 12 dias (temas respectivos aos filmes citados), a determinação do indivíduo é o que sempre prevalece. E isso não é novo em sua obra. Aguirre – A Cólera dos Deuses ou Fitzcarraldo representam na ficção essa mesma necessidade de superação. Nos dois filmes, os personagens (ambos interpretados por Klaus Kinski) traçam objetivos específicos e a ação é toda concentrada na conquista. E o modo de abordagem da perspectiva de sucesso é trabalhado de maneira bastante semelhante tanto na ficção como no documentário. Se o desejo de transportar um navio (com proporções gigantescas) para que se construa um teatro de óperas em plena floresta amazônica parece absurdo, o mesmo podemos dizer do sonho da construção de um dirigível que voe também pela floresta amazônica. Independente do conteúdo da trama, as questões levantadas são constantemente repisadas. A determinação de Herzog (inclusive bastante conhecido por isso – vide a mobilização na conturbada filmagem de Fitzcarraldo) é refletida na de seus personagens. E se na ficção ainda perdurava a impressão de que o sonho do "louco" só é cabível num universo fantástico, o documentário vem contradizer tal assertiva. 

E nos interessa pensar o que leva Herzog a se deter numa temática específica. Sem estabelecer relações de causa e conseqüência, temos dois momentos, não distintos, em que ora encontramos o estranhamento do indivíduo no espaço habitável (mesmo o do próprio diretor em sua concepção), ora vemos a luta incansável de indivíduos que acreditam nos seus sonhos e possibilidades e vão de encontro a elas. Nesse ínterim é que aparece O Grande Êxtase do Entalhador Steiner. E aqui o conflito já começa no próprio título do filme, pois o êxtase sugerido não está no entalhador Steiner, ou em qualquer decorrência de tal ofício, mas sim em outra atividade por ele exercida – o esqui. E aí sim, no esporte, é que se destaca Steiner. Conhecido pela quebra de recordes nos saltos de esqui, o filme conta sua trajetória de altos e baixos ao longo da carreira. Herzog, acreditando ser este o melhor esquiador do mundo, acompanha uma maratona de competições de Steiner. Mas seu peculiar olhar certamente não está preso exclusivamente nos recordes ou quebra de barreiras conseguidos pelo competidor. Utilizando-se de uma câmera lenta, constantemente presente, há o registro dos saltos de Steiner. Seu tempo de permanência no ar é longamente estendido e assim é possível acompanhar, numa velocidade deturpada da original, cada movimento feito em todo trajeto de suspensão. No entanto, a figura de Steiner no ar, acompanhado pela câmera, parece sempre tentar fugir do plano. Quando a câmera está distante, evidentemente o esquiador está inteiramente enquadrado. No entanto, quando se tenta uma aproximação, seu corpo se desloca e as margens do quadro são ultrapassadas. O envolvimento do espectador com o filme é dirigido num sentido de acompanhar as façanhas esportivas do competidor, isto até o momento em que a narração off (mais uma vez presente – como forma de interferência na fruição espectatorial) de Herzog aparece nos comunicando que o único momento em que Steiner se sente realmente confortável, ou, que sente algum prazer, é quando está suspenso, no ar, voando. Mas é justamente em tal momento que opera seu desligamento com o mundo que habita (representado pelo seu deslocamento físico a partir dos saltos de esqui). Uma via das muitas possibilidades de compreensão da obra de Herzog, aparece assim em O Grande Êxtase do Entalhador Steiner. Estão aqui presentes deslocamento e superação. Um como complemento do outro. Um como fomento do outro. Pois Herzog parece funcionar assim: transitando e deslocando-se sempre a procura da superação, ainda que em conflito consigo próprio e com o universo que habita, refletindo isso tanto na ficção quanto no documentário.


Raphael Mesquita

 

 





O Enigma de Kaspar Hauser (1974)


Fata Morgana (1971)


O Grande Êxtase do Entalhador Steiner (1974)