"Eu
vejo Bang-Bang como um filme em branco",
dizia Andrea Tonacci no debate que a Mostra do Filme
Livre proporcionou para o cineasta discorrer sobre sua
obra. Mas essa página em branco não é
aquela de Mallarmé, mas uma outra, propícia
às injunções de um novo estado
do cinema brasileiro e à chegada de uma nova
geração à realização
cinematográfica. Era o desejo de um grupo novo
de realizadores que pegava o cinema num momento já
codificado demais, extracodificado em suas significações
políticas, em seus questionamentos forma/conteúdo,
na exaustão do das formas canônicas e,
de certa forma, também das modernas do cinema
novo. A página em branco, então, não
se dá mais por um sentimento de absoluto diante
do inexplorado e da pureza do movimento antes do fazer-se
da arte, mas pelo esvaziamento deliberado dos moldes
de feitura das obras. Na entrevista
que dá à Contracampo, Tonacci fala da
necessidade de esvaziar o filme, no sentido de lhes
retirar o clichê e tornar todos os comportamentos
ambíguos. Mas parece que são apenas
dois exemplos de um programa mais geral, que consistiria
em renovar o cinema pela negação de tudo
aquilo que o cinema já tinha desgastado. Assim
como a passagem de Cara a Cara para Um Anjo
Nasceu e de O Bandido da Luz Vermelha para
A Mulher de Todos, a guinada de Blá-blá-blá
para Bang-Bang nasce de uma porta que esses cineastas
fecham em relação a um possível
diálogo com o cinema de antes. Não é
mais tempo para conciliações. É
preciso de alguma forma começar do zero. É
preciso esvaziar a página.
Parece heróico, mas não é nada
cômoda a sensação de ser jovem e
ter o mundo inteiro diante de si, e ainda assim não
ter o que se celebrar além do zero. Tanto mais
que não é uma geração que
renega a anterior, mas que a admira profundamente: tanto
o cinema clássico quanto o cinema novo são
referenciados, e não da forma derrisória
que se costuma mencionar. Da mesma forma, não
é uma geração que nasce unicamente
com uma força negativa de destruir a arte instituída
(embora ela exista e seja forte), mas que aparece acima
de tudo com um desejo enorme de fazer filmes que façam
a diferença, que digam alguma coisa sobre
o novo ritmo de vida, sobre o espírito de uma
nova modalidade de existência, com novos costumes:
eros que engaja eles a fazer a tela vibrar com novas
proposições acerca do que pode uma imagem.
Bressane e a exacerbação da violência,
Sganzerla e a multi-referencialidade, Tonacci e a interatividade
lúdica. Então, o zero esconde um eros,
ou vice-versa. Fecha-se uma porta, mas nesse mesmo momento
abre-se uma outra, em outro lugar. Se atrapalha a construção
psicológica dos personagens, se constrange a
idéia de uma narrativa teleológica que
determina todas as significações de um
filme, jamais incomodará a relação
de encantamento que um plano de cinema pode proporcionar.
Bang-Bang, inclusive, talvez seja o filme mais
fetichista desse primeiro momento do "cinema marginal",
ao trabalhar planos complexos e criar uma iconografia
inusitada e pop. Sinal de que, longe de tirar do cinema
seu potencial de sedução, jogo e potência
do falso, trata-se antes de realizá-la ao máximo,
mas fora das bases mais costumeiras de identificação
com os personagens e ponto-de-vista confortável
do espectador. Ou ainda: trazer o espectador para dentro
do filme, mas não como ele está acostumado.
Blá-blá-blá, então,
aponta quatro hipóteses mas não se fecha
em nenhuma. Se o filme é devedor na temática
e num certo clima melancólico enragé
pós-derrota (O Desafio, Terra em
Transe, Cara a Cara), ele ao menos já
estabelece uma forma de não sobrepor e hierarquizar
saídas. O filme simplesmente as demarca e deixa
o julgamento ao espectador. Bang-Bang, por sua
vez, retoma o curta-metragem inicial, Olho por Olho,
e mostra, contra a regra teleológica da narrativa,
que o percurso é mais importante que o local
de chegada, que o movimento é melhor do que a
inércia do resultado final. A atração
dos personagens e das situações criadas
pelo filme não se dá através de
tensões dramáticas ou de construções
psicológicas, mas utilizando ora o absurdo das
situações, ora a estranheza aberrante
dos atores tomados como ícones.
Se a partir de Bang-Bang a carreira de Tonacci
dá um salto, é muito por injunções
da própria vida (ter que ganhar seu próprio
dinheiro, por exemplo). Dizer que ela não tem
nada a ver como o trabalho anterior seria francamente
errado; dizer que a continuidade é absoluta seria
igualmente desabonador. Visto de hoje, o que mais parece
é que, embora seus trabalhos a partir da década
de 70 sejam como diretor contratado (caso de Jouez
encore, payez encore) ou como bolsista em centro
de pesquisas (vários de seus filmes indígenas),
ele teve relativa liberdade para desenvolver suas preocupações
e atribuir novos lugares tanto ao zero quanto ao eros.
A apreensão imediata, o registro como experiência
ou como aventura, parecem ser o desejo que une tanto
Jouez encore, payez encore quanto Conversas
no Maranhão, aproveitando uma mesma natureza
processual, mas criando, conforme o grupo e os processos
apresentados, retratos muito diferentes.
A experiência não-filtrada iguala realizador
e espectador numa mesma busca. A evocação
do cinema direto americano, algumas vezes referida para
lidar com esses trabalhos, nos parece uma aproximação
um tanto arbitrária. Por mais que os procedimentos
sejam semelhantes e a crueza das imagens nos dê,
de fato, uma incrível sensação
de que estamos vendo o "real" irrigar a tela,
Tonacci não vai se aproveitar disso para criar
uma espécie de essencialismo e uma virtude quase
edênica da imagem cinematográfica em registrar
o que está à sua frente. Como sempre,
Tonacci vai se apoderar dessas formas sempre na base
de um jogo (um jogo retratado no filme, com suas tensões
próprias, e um jogo que se estabelece entre o
filme e o espectador, com suas tensões nascidas
de um deslocamento próprio do ponto-de-vista
mais comum de "instalação" dentro
do filme). Zeros ou zEros que aqui não participam
mais de correntes diversas, mas equivalentes, já
que é a vontade de esvaziar o lugar-do-espectador
do documentário que vai instalar uma nova modulação
de desejo a partir do qual o sentido do filme vai ser
criado. Falar de metalinguagem no cinema de Tonacci
é tão inapropriado quanto falar de antropologia
acerca dos filmes de índios: a relação
que se estabelece com o espectador não é
de comentário sobre a obra, mas de jogo, de desafio
ao espectador.
Um breve comentário, então, sobre os diversos
anos de produção de filmes sobre comunidades
indígenas entre o final dos anos 70 e o começo
dos anos 80. É curioso que esse percurso revele
um padrão que pode ser observado, em alguma medida,
na trajetória de diversos cineastas saídos
do cinema marginal no final da década de 60 e,
então, já com dez anos de carreira. No
final da década de 70, Julio Bressane faz, em
três partes, sua Viagem Através do Brasil,
e Rogério Sganzerla faz um filme inteiramente
baseado em manuscritos antigos e arqueologia, O Abismo,
e Elyseu Visconti já tinha uma carreira de filmes
sobre ritos populares e religiosidade. Adicione a isso
uma certa paixão de todos pelo oriente, e o que
temos? Temos um coquetel com muito pouca coisa em comum,
a não ser o fato de serem todos opostos ao padrão
daquilo que naquele momento já se apresentava
claramente como uma sociedade industrial de consumo,
respaldada pelo governo militar e apropriada à
existência de uma classe média e de um
tipo particular de vida que era exatamente o que esses
cineastas ironizavam ou criticavam em seus primeiros
filmes. O índio, a religiosidade mitológica,
o oriente, o primitivo são no momento a única
oportunidade de fazer a sociedade industrial voltar
ao zero (ou para "aplicar grau zero" à
sociedade assim constituída), mas ao mesmo tempo
de achar um eros em meio à confortável
instalação reinante. Dirigir o olhar ao
índio é para Andrea Tonacci a possibilidade
de apresentar ao homem branco a possibilidade de um
outro tipo de vivência, menos utilitária,
mais coletiva, e talvez e aí quem sabe
resida uma parte idealista no teor de militância
dos filmes uma tentativa de prencher a página
branca com a exuberância da vida indígena
(o que certas cenas com trilha sonora evocam em Os
Arara, ou Conversas no Maranhão em
geral).
Depois de alguns anos realizando projetos menos pessoais,
Tonacci volta em 2006 com Serras da Desordem,
um de seus filmes mais ambiciosos, e um que, curiosamente,
parece sintetizar todas as etapas de sua carreira: há
nele a deambulação de Olho por Olho,
a construção em camadas de Bang-Bang,
o índio como opção à vida
formatada... mas acima de tudo a idéia da relação
com o espectador como um processo lúdico em que
os signos vão ganhando outros significados à
medida que o filme passa, e até a relação
de representação que o filme estabelece
se transforma. Em Serras da Desordem, o espectador
precisa pular de registro o tempo inteiro: documentário,
psicodrama, reconstituição, ficção
pura e simples? Narrador interessado, desinteressado
ou participante? Antecipar qualquer discussão
acima disso seria estragar o prazer de um filme-mistério
que constrói sua forma segundo uma lógica
de espetáculo (o mistério, a dúvida)
que curiosamente, quase paradoxalmente, se desvela da
maneira mais natural possível, fazendo da forma
do filme uma coisa tão orgânica quanto
a sua filmagem. O que é certo é que, com
Serras da Desordem, Tonacci cria uma relação
com seu espectador que funciona com 0% de violência
e 100% de jogo (o que, pelo menos em seus filmes mais
ambiciosos, é novidade), e assim reordena mais
uma vez seu zero e seu eros. Eis que ele pode finalmente
preencher sem medo a página em branco.
Ruy Gardnier
|