Você
começou sua carreira fazendo o curta Olho
por Olho e fotografando o filme do Rogério
Sganzerla, Documentário, e o filme do
Otoniel Serra, que passaram no Rio...
Passou no Festival JB, exatamente, passaram os três.
Você chegou a conviver com o pessoal da escola
São Luís, né?
Eu cheguei a dar aula lá algumas vezes
até o padre me mandar embora.
É mesmo? Deu aula de cinema?
É, imagine, sem saber nada...
Quarenta anos depois, como você avalia esse
primeiro momento?
Você está me perguntando como? O que
eram esses três filmes, como eles surgiram?
Como é que eles surgem e como é que
você olha eles hoje. Porque você deu alguns
passos seguintes bastante diferentes.
O que eu posso te falar é o que eu... Primeiro
que é isso: são quarenta anos, né?
E se eu olhar para esse período da minha vida...
Eu hoje, eu olho um pouco nostálgico, tem umas
coisas afetivas assim que eu sinto... Mas olhando hoje
para os filmes o que me parece é que, na verdade,
eram coisas um pouco diferentes os três, apesar
de ter trabalhado nos três, quer dizer... Falando
assim: a atitude do Olho por Olho, da minha parte,
eu acho que tinha uma revolta, uma raiva, uma impotência,
uma sensação, em suma, de achar um caminho,
uma solução, quer dizer, era uma coisa
meio pessoal, de um sentimento assim... De ter que romper
algo para poder chegar a alguma coisa. Já o filme
do Rogério me parece um filme mais pensado racionalmente,
digamos assim, com uma finalidade... O Rogério
era uma pessoa com uma formação de cinema,
naquele período, já bastante consolidada
já era um período em que ele estava
procurando escrever nos jornais, ele escrevia em uns
outros jornais na época, eu me lembro. Então
é uma postura um pouco diferente, é uma
pessoa um pouco mais consciente, vamos dizer assim,
do que seria estar fazendo cinema. Para mim ainda é
uma explosão pessoal, uma coisa meio intuitiva
e pessoal. E para ele, me parece que ele já tinha
um objetivo... O cinema já era uma coisa externa,
ele tinha uma formação do cinema americano,
uma coisa assim. O filme do Otoniel, eu acho que o Otoniel
era mais poético, mais... A palavra não
seria deslumbrado, mas mais fascinado, vamos dizer assim,
pela literatura, pela revelação do que
ele via, do que ele encontrava no mundo. Então
são três pessoas bem diferentes nesse período.
A proximidade da gente... Com o Rogério eu tinha
uma proximidade muito grande, afinal a gente estudava
na mesma escola, a gente se via todos os dias, ele morava
em uma pensão na frente ali na Maria Antônia,
almoçávamos ali na pensão, ele
freqüentava a minha casa, eu ficava na pensão
e é isso, uma relação de amigo,
uma coisa muito próxima, de amigo. Do Otoniel
eu já era um pouco mais longe, era mais uma pessoa,
eu não me lembro exatamente, o Otoniel acho que
era jornalista no Estado na época, acho até
que foi uma pessoa que deve ter ajudado o Rogério
lá, não sei direito, isso tem muito tempo.
Quer dizer, no fundo, eu sinto essa diferença
vendo hoje, na época, eu acho que não
tinha a menor idéia dessa distinção.
Eu estava dirigindo um e fazendo fotografia e câmera
dos três. E nesse ponto eu era a mesma pessoa,
apesar de estar olhando para situações
diferentes. Mas a minha abordagem como pessoa, a minha
maneira de estar fazendo, era a mesma expressão
que, eventualmente, eu botei no meu filme. Mas a estrutura
da cabeça dos outros era diferente, e o filme
sempre resulta em outra coisa. O Rogério, com
essa sua leitura e capacidade de olhar um pouco como
os filmes eram estruturados e com conhecimento de montagem,
ele, na verdade, montou os três. E se eles têm,
vamos dizer assim, essa concisão narrativa que
eu acho que os filmes têm, foi o Rogério
que fez. E a montagem foi uma nova estruturação
do filme. O olhar é uma coisa, a montagem é
outra, né. Eu sinto esses filmes assim. Mas eles
eram totalmente caseiros.
Agora eu fiquei curioso em relação
à sua formação de cinema, porque
você falou que o Rogério já era...
É, eu me lembro dele... Ele, por exemplo,
era uma pessoa que assistia aos filmes, mas ele via
muito analiticamente o cinema. Eu sempre... por exemplo,
a minha formação como cinema: não
estudei cinema, eu estudei engenharia e arquitetura.
Mas desde moleque gostava muito de cinema, ia a cinema,
fugia de casa para ir ao cinema, entrava em filme que
não podia. E assim, não digo todo dia,
mas me lembro que quando a Cinemateca era na Sete de
Abril, lá em São Paulo, eu assistia integralmente
às programações da Cinemateca,
então assistia a cinema polonês, japonês,
cinema alemão, cinema indiano. Mas era uma coisa
meio de descoberta, de revelação, algo
para o qual eu não tinha um distanciamento crítico,
era um envolvimento emocional, eu me identificava, adorava
o filme, saía... Então, era o que o filme
me provocava pessoalmente como revelação,
como descoberta que me ligava ao filme. E não
a técnica ou a fotografia ou não sei o
quê, tudo isso estava lá, mas... Mas estudei,
fui aprender fotografia, estudei...
Mas era uma coisa de fruição mesmo...
Mas era uma coisa de vida mesmo. Aquilo que tivesse
de vida era o que me dava desejo de fazer também,
como se fosse um caminho de conhecimento mesmo, de descoberta.
E nisso, falando agora, eu identifico que hoje continua
sendo a mesma coisa.
Isso lembra Bang Bang.
É. E esse filme atual mesmo, o Serras da Desordem...
Cada filme é de novo, é de novo, é
do zero, eu não sei nada, entendeu. Cada história,
toda vez, é um reencontrar claro que no caminho
do fazer você reencontra coisas que você
conhece, mas confesso que, se eu encontro alguma coisa
que eu conheço e vejo que me aproximo, eu fujo.
Porque já conheço aquilo.
O interesse é descobrir.
É, ir atrás. E o fato de ter ido,
de ter me dedicado a essa coisa um pouco dos índios
e parar lá no mato é porque é um
desconhecido, o outro, esse outro que, de fato, tem
uma outra cabeça, uma outra formação,
uma outra... Apesar de ser um homem igual a mim, a gente
é a mesma máquina, vamos dizer assim.
Essa possibilidade de encontrar algo que é uma
revelação é o que me motiva, digamos.
Não falar do conhecido, falar do que você
não conhece ainda.
É. Eventualmente falar do que eu não
conheço, baseado no que eu conheço.
Aprender...
Aprendê-los.
É curioso que o Carlão Reichenbach,
seu amigo, fala justamente outra coisa: que ele se recusa
a filmar o que ele não conhece. O seu caminho
seria então um olhar mais... Não vou dizer
de antropólogo, mas uma coisa mais...
É, você falou uma coisa de antropologia:
eu nunca olhei assim, porque minha formação
não é antropologia, mas me lembro de uma
crítica, uma análise que o Jean-Claude
Bernardet fez do meu filme Jouez Encore, Payez Encore
que é exatamente isso, ele fala da antropologia
de nós mesmos. E isso me marcou porque eu acho
que ele bateu em uma tecla certa nesse ponto: é
uma descoberta da gente, não é do outro.
O outro é um instrumento para o teu conhecimento,
para o teu auto-conhecimento, digamos. Mas o teu auto-conhecimento,
na verdade, é uma descoberta na vida, porque
o teu auto-conhecimento é relativo à existência
que você tem.
Mas a partir de olhar para outro.
Da parte de fora, não é uma... Senão,
sei lá, senão você não vive.
Seu filme seguinte foi Blá-blá-blá...
O filme seguinte foi Blá-blá-blá...
Foi filmado em 67 e ficou pronto, se não
me engano, em 68.
Tem muito a ver com determinados filmes políticos
da época, como o Terra em Transe...
É, você vê que tem o Paulo Gracindo.
E um filme do Bressane também, o Cara a
Cara. Mas já tem essa coisa, novamente, de
você não ter muita certeza do que está
comunicando de um mundo com o outro.
A idéia do filme é essa. A idéia
do filme não é fazer um discurso político
conseqüente, é mostrar a inconseqüência
da retórica do discurso político, que
é igual em qualquer lugar. Tanto que o filme
não é um discurso... Na soma, vamos dizer
assim, por mais que a gente use frases de outras pessoas
e você coloque em um texto como sendo a sua expressão,
quer dizer, você fala a frase, você bota
a sua emoção, você bota o teu conhecimento
interior, a sua motivação; mas o Blá-blá-blá,
ele é inteirinho costurado de frases conhecidas,
que vão de Cristo a Buda, a Castelo Branco, a
Hitler, a Henry Miller, a... Se você buscar internamente,
ele é uma costura de textos, de conjuntos de
coisas que foram, na minha cabeça, construindo
um discurso que, na verdade, é totalmente contraditório,
o tempo inteiro é...
E me parece que ele se perde. No final ele não
tem mais como fugir do próprio discurso.
No fundo, a frase dele é um pouco o que nós
estávamos falando atrás... Como é
que ele termina? Eu me lembro da última frase
do filme, é uma frase do "Primavera Negra"
do Henry Miller, que fala assim: "Essa noite
eu vou meditar sobre o homem que eu sou". Então
repito a história dessa busca, de ir atrás
qualquer que seja o caminho, é uma tentativa
de conhecimento. E o conhecimento do mundo se faz através
do teu autoconhecimento porque, na verdade, o mundo
é externo, mas o teu relacionamento do teu lado
interior com o mundo externo é o que faz o conhecimento.
A violência é muito presente, né?
Imediatamente pré AI-5.
O AI-5 é de 68?
É de 68... E aí começou o ciclo
do pessoal do Cinema Marginal, começou a haver
aquela produção, aquele surto de filmes...
Mas você sabe de uma coisa, eu fico pensando
assim... Os momentos, nos períodos mais difíceis,
mais instáveis, são os períodos
onde, pelo menos naquele momento para a gente, é
quando você tem mais vontade de dizer alguma coisa.
Nos períodos em que está tudo bem, digamos,
em que você está feliz, que não
tem que batalhar nada, quer dizer, batalhar nada não
existe, mas quando você está muito equilibrado,
aí vira... Você precisa mexer a coisa para
ter um pouco de turbulência, para poder existir
de novo uma motivação. Então, no
fundo, eu me provoco. Ir fazer um filme lá no
Maranhão agora é uma provocação
comigo, inclusive física, para ver se eu ainda
tenho a resistência de encarar...
Serras da Desordem no Maranhão então
foi uma provocação pessoal?
Essa é uma maneira de dizer, mas é algo
que te diz assim: "Estou vivo, ainda tenho que
aprender, ainda tenho força para andar, ir atrás,
não importa onde é". A Gente sempre
tem um pouco de auto-afirmação, buscando
justificar a existência, ter um sentido pra estar
fazendo as coisas. Eu acho que a gente interfere; eu
não faço um filme para passar no cinema
e dar dinheiro. No fundo, me interessa que esse filme
interfira em alguma coisa, provoque alguma coisa, senão
uma reflexão, um momento de dúvida, um
momento de questionamento seja ele qual for. O que quer
dizer isso? Basta esse espacinho na cabeça de
alguém, que não seja uma certeza que algo,
então, torna a viver. Quando você tem a
certeza, pára, a coisa morre. A palavra não
é morre, é pára, estaciona.
Tem uma frase do Artaud que diz que as idéias
claras são idéias mortas.
Artaud era uma pessoa que eu adorava, também
lia. Era uma presença que era presente nessa
época.
No livro do Jairo [Ferreira, ndr], Cinema de Invenção,
tem vários discursos assim. Tem um texto do Nelson
Aguilar sobre Bang Bang e também tem um
texto do Carlão sobre o filme do Mojica, O
Ritual dos Sádicos, e os dois usam o Artaud
como uma referência. Eu percebi que, na época,
havia um certo interesse pela escrita dele.
Pela aventura da vida dele, né? Afinal, o livro
é a expressão...
A própria escrita é...
A vida.
E também ser a expressão possível,
que, ainda assim, não é ideal. Ele fez
um texto em certo momento dizendo que toda escrita é
uma porcaria...
É, porque também é um momento
que pára, na hora em que você escreve uma
palavra, se ela é definitiva, se ela significa
simplesmente o que está escrito, a palavra acabou.
É como o que você falou do filme.
Agora, por que a poesia vale? Porque a poesia te
joga brechas, te dá espaços, ela não
te dá certezas, ela não te dá pedras,
ela te dá o espaço entre as pedras, vamos
dizer assim.
E o seu filme tem a ver com isso.
Acho que sim.
No Bang Bang isso fica especialmente claro,
porque ele insinua que vai acontecer uma certa história,
parece que tem um enigma para você decifrar na
história, mas, na verdade, quando o cara pára
para explicar a história, atiram uma torta nele.
Pois é, se chega a ter uma explicação,
não me interessa; me interessa é continuar
com o caminho aberto. E, olha, escrever o roteiro do
Bang Bang, ele não é o filme, aliás
nenhum roteiro é porra nenhuma do que o filme
resulta. Mas o roteiro do Bang Bang começou
com uma historinha simples, uma historinha meio policial:
uma perseguição, um personagem que a gente
não sabia direito quem era, tinha três
bandidos que queriam o que ele tinha, era um pouco cômico...
Na verdade, a inspiração, veja bem, você
me fez lembrar disso agora, era algum conto policial
desses bem vagabundos, do tipo que vende em banca de
jornal, aquelas coisas assim, que tinha um personagem
que era um detetive, mas ele era meio Carlitos, ele
era meio... Uma coisa assim... Veio essa lembrança
agora, meio sem ligação.
Foi isso que serviu como inspiração,
você quer dizer?
É, foi a partir dali que... É isso,
me veio em mente agora... O quê que isso amarrou
com Bang Bang? Eu não sei, porque Bang
Bang não tem nada a ver com isso. Mas olha,
escrever o roteiro, porque precisava de um roteiro e
etc., foi um processo sofrido. Era uma coisa assim,
da folha branca na máquina de escrever, onde
escrever uma frase lógica ou uma historinha lógica
era uma coisa que eu não queria botar naquela
página.
E isso se manteve até o fim, até filmar?...
A coisa dos improvisos do Pereio, já tinha idéias
escritas?...
Bom, primeiro porque era uma época de muita
maconha, muita droga, muita... Era um pouco muito
não significa o excesso, não significa
o junkie, significa simplesmente a liberdade
e uma tranqüilidade com isso, não se sentia...
Apesar da época de repressão.
Não tinha culpa, no caso.
Não, absolutamente. Era uma conquista, era
algo que você estava enfrentando porque sabia
também da dificuldade, mas sem sentir a repressão.
Porque era muito jovem também, 21, 22 anos, nem
me lembro; então você não pensa
nas conseqüências, na verdade. E o Bang
Bang, toda noite, isso eu me lembro bem, o que estava
escrito, o que devia ser filmado, sei lá, digamos:
Pereio e Jura Otero no bar vão conversar. Tinha
uma seqüência escrita, diálogos e
tal. Mas aí, na noite anterior, aquilo ali não
era satisfatório. A cena era reescrita, totalmente
reescrita de noite como base pra no dia seguinte poder
chegar para o Pereio, para a Jura ou para as pessoas
e simplesmente poder dar para elas, botá-las
em uma situação e dar para elas, vamos
dizer assim, indicações dos sentimentos
que eu gostaria que aquilo expressasse só.
E, de resto, eu devo, de fato, a essas pessoas... o
Bang Bang não é um filme feito
só por Andrea. É costurado por mim, etcetera
e tal, mas ali tem uma criatividade que essas pessoas
botaram. Eu acho que elas puseram ali um pouco da vida
delas. Eu tive a oportunidade, por exemplo, o conflito
afetivo entre Pereio e Jura era um conflito real; eu
simplesmente aproveitei que eles não estavam
bem, digamos assim, discutindo, brigavam e etc., para
colocar aquela impossibilidade de se lidar, mas com
o desejo de continuar se relacionando. Eu estava lembrando
agora: eu estive em Belo Horizonte há umas duas
semanas ou três semanas quando teve uma Mostra
de Cinema Marginal, um Seminário, e revi o Ezequias
Marques, que é o velho baixinho que faz o ceguinho.
Eu não sabia...
O bandido cego que fica atirando.
É, o bandido cego. Na época, era um
ator mineiro, mais jovem, me indicaram ele, eu filmei,
mas eu nunca me aproximei humanamente, digamos assim,
a ponto de conhecer a vida dele, de ter muito tempo
para conversar no dia-a-dia. Porque aquele filme foi
feito em onze dias, se você pensar foi uma pauleira.
E, agora, que ele está velhinho, eu estive lá,
me convidou à casa dele e me contou que quando
ele era menino, aos onze anos, uma coisa assim, ele
fugiu de casa para acompanhar um circo.
História clássica, né? (risos)
Porra! Isso me deixou muito feliz porque eu entendi
de onde que surgia o personagem que ele consegue fazer.
Ele é um Carlitos, ele é um circense,
ele tem toda essa história assim. Se essas pessoas
não tivessem essa carga emocional, essa carga
de busca e de ansiedade de vida, o filme não
seria o que é. Todo mundo ali era assim, os atores,
digamos. A Jura foi uma cigana, filha de ciganos, raptada
quando criança na vida real, que não sabe
quem eram os pais, aonde viveu, em suma, era reichiana
já naquela época. Pereio, o doido que
sempre era, que todo mundo conhece e admira...
Acho que ele nunca tinha interpretado ele mesmo.
Era o doido sadio, o louco sadio mesmo.
Mas o filme cria a persona Pereio, não me
lembro antes de um filme em que ele usasse a persona
dele, a presença Pereio: aquela coisa de "o
Pereio chegou".
Engraçado, você falou uma coisa, acho
que esse filme de fato marca ele também porque
a partir daí ele dificilmente consegue separar
o Pereio dos papéis que ele faz. Ele faz sempre
o Pereio.
E antes não, tinha feito Os Fuzis...
Antes ele se forçava a um outro papel.
Nesse filme é muito marcante isso, a coisa
se mistura.
Tinha o Milton Gontijo, que é uma pessoa
também sofrida, teve paralisia quando era criança,
teve um puta acidente, viu um amigo morrer tomando um
tiro. Ele faz o papel de bêbado, no bar esse
ficou meu amigo até a morte.
Ele é dublado pelo Pereio, né?
É. O Pereio é que faz as duas
vozes.
É uma espontaneidade que na verdade é
encenada, porque é filmada e depois é
dublada, é refeita.
E aquilo tudo, por exemplo, o telefone, ele surge
quando o plano está sendo rodado. O diálogo
surge na improvisação, ele não
existia no texto escrito. A essa ponto a gente estava
solto, a ponto de incorporar na hora, já filmando,
a câmera rodando, não é um pouco
antes, não, estava tocando: "Ih, olha,
o telefone!" (rindo). E o cara ia atender
e eu disse: "Não, deixa tocar!".
É curioso que daí em diante a sua produção
ia se voltar para os documentários...
Olha, uma das minhas preocupações, um
esforço que eu fiz, era a tentativa de esvaziar.
Na medida em que eu estava escrevendo a história
do Bang-Bang, a idéia era extrair, não
deixar que aquele signo, ou aquela frase ou aquele personagem
fossem óbvios. Toda vez que algo ficava óbvio,
algum sentido ficava muito claro, então não,
então eu tirava fora. A questão era: "Como
que esse símbolo, essa imagem, pode ser mais
ambíguo possível, mais múltiplo
possível na cabeça de quem assiste?".
Esse era o objetivo do filme, isso era consciente, deixar
as possibilidades de significados abertas à interpretação.
Tanto que o filme, na estrutura em que foi escrito,
não tinha necessariamente essa ordem que tem
do modo que é exibido inicialmente eram rolos
separados, que poderiam ser exibidos independente da
ordem do rolo. Cada conjunto era um conjunto, entendeu?
Eram seqüências que podiam passar na ordem
que fosse. Eu fiz a experiência, não de
todas as possibilidades porque isso seria inviável,
mas fiz isso na moviola eu trocava os rolos, passava
assim e assado, e a história persistia, o que
eu queria estava lá...
E chegou a fazer isso em sessões públicas?
Uma vez, no Belas Artes, aí eu tive problemas,
o projecionista reclamou: "Mas tem que ter uma
ordem". Porque o cara não pode pegar
um rolo qualquer e botar, então eu fiz em rolos
duplos, e tentei que tivesse a alternativa de variar
entre os quatro rolos duplos, mas aí numeraram
e mantiveram uma ordem.
O Glauber Rocha quis fazer o mesmo no A Idade
da Terra.
É, eu li isso depois, o Ricardo Miranda me contou
essa história, de que tinha essa intenção
também de poder ser projetado sem ordem de rolos...
Sobre os seus documentários, o Fernão
Ramos já escreveu um texto fazendo uma aproximação
com o Cinema Direto norte-americano...
Bem, mas isso são os outros que interpretam...
Na verdade, eu nem leio muito o que escrevem sobre o
que eu fiz, porque senão eu acho que me atrapalham,
porque já faz uma certa lógica, e eu tento
escapar um pouco dessa lógica consecutiva, de
A+B=C, de 1+1=2. Não, 1+1 é igual a quinze,
a sete, eu não sei! Depende de quem é
um e quem é o outro um. Eu vou descobrindo, o
caminho vai se abrindo, a coisa vai se revelando. Por
exemplo, no Bang Bang, o plano em que o jipe
corre, eu não fiz o percurso da estrada inteiro
antes de filmar, mas sabia que tinha uma montanha lá
no fundo que dava um rumo, um sentido. O que eu queria
era que houvesse uma aceleração nesse
sentido, então o que eu fiz foi pegar a música
do Hatari!, aquele filme do Howard Hawks, e botei
um cassete ao lado do Pereio no jipe, e disse: "Pereio,
vai ouvindo a batida e vai pisando fundo e vai acelerando
conforme a batida da música, e manda ver!"...
(risos)
A câmera então seguia tão incerta
quanto o personagem?
Bem, eu ia acompanhando... Eu sabia quando o rolo
estava chegando no fim e queria enquadrar meio de lado,
pra poder dar o corte. E quase não deu, porque
o Pereio acelerou mesmo. E eu estava no outro carro
com o Thiaguinho na câmera, o Thiago Veloso...
E o jipe é um carro que escapa ao controle.
É, o jipe escapa, ele tem que acelerar. Eu
estava numa C-14, e a gente tinha botado um pranchão
na frente dela pendurado com dois cabinhos de aço,
mas a prancha estava a essa altura do chão (sinaliza
uma altura baixa), e aquilo é chão
de terra. Isso hoje eu chamo de irresponsabilidade,
de alguma maneira. E o Thiaguinho sentado, com um tripé
ali no pranchão, com uma proteção
pra não levar pedra, e a gente deu sorte porque
nenhuma pedra bateu na lente... E eu dirigindo a C-14
e olhando pro Thiago, e a minha preocupação
inicial seria seguir o carro do Pereio, mas naquele
momento a minha preocupação de fato era:
"Caralho, se esse negócio der uma bicadinha
no chão, nós todos vamos, ele antes e
depois...".
Voava todo mundo!... (risos)
Então... A gente teve sorte, o que eu posso dizer?
Não aconteceu nada com o Thiago, e quando a música
abre... Mas você estava perguntando dos meus documentários.
Olha, é uma coisa pessoal. Naquela época,
meu pai faleceu, e a gente fica querendo afirmar alguma
coisa, provar que é capaz de ganhar a vida. Tinha
naquela época aquela coisa de categoria especial
para os filmes, de curta-metragem e documentário,
e eu fiz uns quatro com outras pessoas. A idéia
era fazer e vender o filme, levantar dinheiro e continuar
trabalhando. O filme com a Ruth, Jouez Encore Paiez
Encore, que foi finalizado apenas em 1995, foi montado
em 1975.
Como foi a produção dele?
Ele foi feito em vídeo com a primeira camerazinha
da Sony, fita de rolo, meia polegada. A Ruth pagou o
transfer para 16mm e montei na moviola. Me mudei
de São Paulo para o Rio para fugir dela na montagem.
Não queria a presença dela, não
era sobre ela que eu estava fazendo o filme. Essa era
a condição, não ser sobre ela.
Documentei o grupo, as relações, não
era sobre a peça com ela. E tive problemas. Quem
salvou esse filme foi o Paulo Emilio. Ele exibia filmes
brasileiros nas aulas, um dia ele foi exibir o meu filme
e a Ruth mandou a polícia, porque ela não
queria a exibição. A sorte ou azar é
que tinha uma cópia de um filme do André
Luiz Oliveira, e levaram o filme dele em vez do meu.
Paulo Emilio sumiu com a cópia, escondeu na casa
dele e ficamos sem saber do paradeiro da cópia.
Uma dia eu recebo um telefonema, era 1980 e pouco, e
a Lygia Fagundes Telles me liga, dizendo que encontrou
um pacote com um bilhete do Paulo Emilio para mim. O
Paulo Emilio salvou o filme...
Mas era a versão mais longa?
Era, existe a versão integral, que foi remontada.
Tive de concordar com ela em tirar duas cenas para poder
ter acesso ao negativo, que ela seqüestrou. A fita
de vídeo também desapareceu. Bem, eram
cenas inconvenientes para ela e eu retirei, mas fiquei
com os negativos, que não mando nem para a Cinemateca.
Mas eu tenho de dizer que, antes de ver, ela não
interferiu. Queria ver, antes de pronto, mas não
viu. Acho que o documentário permite eu me inserir
na situação. Você pode estudar,
mas, quando está filmando, você não
sabe o que acontecerá é um primeiro
e último encontro com o entrevistado. Com o Conversas
no Maranhão é a mesma coisa. Eu nunca
tinha ido, não sabia a língua dos índios
e ficamos um mês sem fazer nada. Estudei um pouco,
mas não teve nada a ver com o filme. Tivemos
um mês de relacionamento, fui adotado por uma
família, morei com eles, a gente saía
para caçar, depois sentávamos à
noite para fumar um baseado e olhar as estrelas... Porque
eles são altos astrônomos, não sei
se vocês sabem. Eu aprendi a observar os satélites
porque eles me ensinaram, eles sabem quando um corpo
estranho aparece no céu. Vivem cantando e dançando...
Depois de um mês, sem nunca terem sido filmados
ou visto TV, expliquei o que tinha ido fazer. Eles não
têm uma palavra para imagem, então, tive
de explicar como a câmera captura a imagem, prende
ela lá dentro e depois exibe em outro lugar.
Eles entenderam no ato e começaram a fazer reivindicações.
Você comandou a câmera ou deixou na mão
deles?
Levei uma outra câmera, de Super-8, e deixei
nas mãos deles. Só instruía a enquadrar
e trocar o cartucho. Depois desse trabalho, montei um
projeto chamado Visão dos Vencidos. Consegui
uma bolsa americana, que me deu credibilidade diante
das universidades e instituições. Eu era
alguém, muito jovem, mas com boa bolsa. E vi
muitas coisas dos índios americanos, ou seja,
os índios manuseiam a câmera há
muito tempo. A diferença é que os índios,
hoje, fazem filmes como a gente. Conversas no Maranhão
era para nós, brancos, mas teve importância
para os índios, porque quando a geração
seguinte viu o filme aconteceu algo importante. Os jovens
não conheciam como os velhos narradores contavam
as histórias, apenas conheciam as versões
de seus pais, e quando viram que essas versões
eram diferentes começaram a entrar em atrito
com os pais. Eles estavam diante de uma prova incontestável.
Minha idéia é sempre provocar algo e interferir
na realidade.
Como era a relação com eles na filmagem?
Eu perguntava para eles o que eles queriam que outros
vissem, e eles selecionaram o que era importante. Então
me levaram para alguns lugares que eles queriam mostrar.
Não me lembro de terem proibido de filmar nada.
Aí, com a bolsa americana, eu viajei e conheci
reservas americanas, índios na América
Central e na América do Sul, inclusive no Brasil,
onde entra guarani e tupiniquim. Tudo isso foi feito
em vídeo e a idéia era interativa, uma
comunidade vendo o vídeo da outra. Isso em 1978
e 1979. No Espírito Santo, gravei um velho guarani
e depois mostrei esse material para os guaranis do litoral
de Cananéia. O velho de lá fez um ritual,
cantando uma música por meia hora, mas, quando
os índios de Cananéia viram, ficaram putos,
não comigo, mas com o velho do Espírito
Santo, porque ele não poderia ter feito aquele
ritual para mim, um branco, jamais poderia ter participado
daquele recado particular entre eles, uma coisa privada.
Eu não entendia o que ele dizia e cantava. Mas
ficaram temerosos de que eu podia revelar algum segredos
deles... Bem, aí foi isso. Gravei nos EUA, mostrei
material deles aqui no Brasil, levei fitas dos brasileiros
para os índios americanos e fiz um percurso que
vai da aldeia à escala da representação
oficial. Tem, por exemplo, depoimentos de índios
americanos que já... não são brancos,
porque o cara é índio, não tem
jeito, mas o cara tinha ONG, com escritório perto
da ONU. Eram políticos ativistas mesmo, tanto
que era na cidade de Minneapolis, no meio da cidade...
Imagina uma reserva indígena no centro da cidade.
Eles tomaram um quarteirão, invadiram e tomaram
um quarteirão... Eram prédios assim, tomados.
Depois isso resultou na fuga daquele sujeito, Letellier,
ele foi lá para o Canadá, e os americanos
seqüestraram o cara lá. Esses índios
me levaram para gravar o recado de um fulano, mas o
fulano é clandestino, procurado pelo FBI, então,
eu tive de ficar rodando com eles por três dias.
Eles me botaram em situações delicadas,
do tipo entrar em um bar de brancos com eles, e eles
todos armados, porque eles se defendem. Mas como eu
reajo? Como me comporto diante dos brancos? Acabei indo,
gravei o depoimento. O cara estava escondido em um prédio
todo detonado, num refúgio mesmo, como é
na Palestina hoje. E esse material rodou, foi visto
em comunidades diferentes. Fui também ao México,
naqueles grupos meio revolucionários, com caras
falando contigo com espingarda na mão. Aí
eu fiquei conhecendo o caminho do dinheiro das ONGs.
E vi a grande traição feita a esses povos
indígenas. Para te dar uma idéia, existe
uma fundação chamada InterAmerica Foundation,
ligada ao governo americano. Como fui atrás dessa
história? Eu estava no Peru e descobri um projeto
ligado a Unesco. Tinham colocado 10 Toyotas com equipamentos
de vídeo para que as comunidades indígenas
fizessem os seus programas, com essa idéia de
intercâmbio e comunicação, de entregar
nossas armas ao outro, mas isso é cascata, porque
o vídeo é mais um instrumento de dominação.
É igual o computador. Ele te dá uma estrutura
mental para você trabalhar, ele te impõe
uma estrutura, não é a sua. Você
não diz para o computador fazer o que você
quer. Você faz o que computador te permite fazer
na forma em que ele faz. Mas onde eu estava?
Você falava de quando conheceu a InterAmerica
Foundation...
Ah, então fui atrás dessa história,
querendo saber que projeto aquele, ainda muito ingênuo
em relação a tudo aquilo. A finalidade
desses vídeos que eram distribuídos para
os índios era começar a mostrar como uma
comunidade plantava, era uma comunicação
para se formar uma unidade, uma coesão daquelas
comunidades, uma ideologia de formação
de um povo, de auxílio. Uma série de vídeos
era sobre a produção da fibra do algodão,
plantio de fibras para tecidos. A Levis estava por
trás da Interamerica Foundation. E a Levis era
importadora do Peru, de fibras para suas fábricas.
As fibras vinham com qualidade diferentes, então
tinham de gastar uma grana alta para dar uniformidade
à qualidade do produto. Eles precisavam que o
Peru vendesse um produto mais uniforme. Então
eles faziam esses vídeos "culturais"
como uma forma de se comunicarem, e aí passaram
a interferir na produção, e todos os índios
passaram a fazer da mesma maneira. Havia interesse financeiro
em uniformizar tudo, e isso quebrou as diferenças
e especificidades de cada cultura e juntou todos no
sistema comercial. Meu relatório da bolsa foi
sobre isso. Esse material só foi visto por índios.
Depois disso, fui me dedicar a grupos não-contactados.
Fui conhecer os Arara.
E fez vídeos com eles...
É, mas pra isso tive três anos de vivência
no Pará. Uma vez fiquei oito meses seguidos na
floresta. Aí a gente muda. Você muda metabolicamente
e muda as ordens dos seus sentidos. Aqui, agora, a vista
está em primeiro lugar. Mas se você está
em uma mata fechada o ouvido passa a substituir a vista.
É ele que te dá a sensação
de profundidade, que te diz o que tem atrás dessa
folhagem que está a poucos metros de você.
Você deixa de ter linha reta, formas lisas, não
tem mais, a superfície é multifacetada.
Você não vê o horizonte. E isso provoca
coisas, viu? Isso altera de fato sua percepção.
A acuidade auditiva que se desenvolve... O homem é
uma coisa maluca. A gente na verdade poderia desenvolver
tanto, de fato, o ser humano. A gente acha que desenvolvimento
de ser humano é implantar um chip qualquer em
uma pessoa, para que seja homem biônico, mas o
desenvolvimento dos seus sentidos... Eu aprendi e te
digo: se você se condiciona diferentemente, você
vai perceber mais coisas. Por exemplo, eu voltei depois
desses oito meses na mata... Eu tive um acidente, cortei
minha mão... E quando cheguei em São Paulo
uma das coisas que me surpreendeu foi que tudo o que
eu olhava tinha tantos detalhes... O som... Eu tenho
um Fusca e, quando eu voltei pela primeira vez para
meu Fusca, e olha que eu estudei mecânica, fiz
engenharia, mas os ruídos que eu escutava...
Eu ouvia um monte de coisas que nunca tinha ouvido.
Depois você perde. Quinze dias depois você
não ouve mais nada. Perde totalmente. Onde foi
parar tudo aquilo? Foi o que eu percebi. A gente é
o que a gente resolver ser. Mas foi um aprendizado.
Agora, essa fantasia que eu tinha do olhar do outro,
como se o olhar do outro pudesse me revelar alguma coisa...
Negativo, não é através de tecnologia.
Através de tecnologia, o cara só vai macaquear
o que a gente faz. Não são culturas que
criaram tecnologia, nem de reprodução
de imagem, nem de memória. As civilizações
que cultivam a morte, digamos, você tem memórias
delas porque elas constroem em pedra. Eles constroem
em folhas. Seis meses mais tarde não tem mais
nada. O passado é o recontar do presente, sempre
a mesma coisa.
Você fez uma série de documentários
com músicos.
Gravei coisas com músicos. Mas só
um foi finalizado. Confesso para vocês: sou uma
pessoa frustrada em relação à quantidade
de material. Eu gravava muito, filmava muito, mas terminar
é complicado. Falta dinheiro, as coisas vão
sendo guardadas. A quantidade de material que eu perdi
nessas viagens que fiz, olha... Eu tenho as fitas, mas
as máquinas não existem mais, não
tem como assistir, e o suporte está grudento,
quer dizer, acabou... Com toda nossa fantasia de memória,
de criar sistemas, hoje nós estamos anulando
a memória. O sistema digital são apenas
números, não tem nem mais como ver o que
é. E basta uma panezinha qualquer que está
perdido. O que me adianta ter um banco de dados digitais
se eu não sei o que é aquilo? A história
do homem é ainda essa aqui, a da conversa. A
tradição oral ainda é a grande
força da identidade do homem. Cultura é
isso, essa coisa viva, não um passado registrado,
que você nem sabe o que é.
Você fez ainda um filme sobre a Biblioteca
Municipal de São Paulo e outro sobre o Teatro
Municipal.
O do teatro é lindo, eu adoro, é um
musical. Tem duas versões. Uma de meia hora que
fui obrigado a fazer, por conta de uma exigência
do Minc, e outra de uma hora. Mostrei essa para o Minc,
eles ficaram putos, mas o Weffort gostou da versão
de uma hora. As cinco mil cópias que foram feitas
foram todas usadas para o Ministério das Relações
Exteriores. Nenhuma foi distribuída na finalidade
que tinha, que era para as Bibliotecas do Professor,
no país inteiro. Me contaram, não posso
afirmar, mas é o que soube.
Você já trabalha há bastante
tempo no projeto de Serras da Desordem, não?
Dez anos. É uma ficção baseada
na realidade. Essa busca de tentar extrair a ficção
da realidade é algo que sempre tentei dentro
do documentário tudo depende de como você
olha. Então tentei narrar a história de
um índio com os próprios índios,
onde em certas situações eu filmo o cotidiano
deles e em outras eu represento com eles situações
que já aconteceram. Viajei mesmo. Fui ao Maranhão,
Bahia, Brasília. Fui encontrar as pessoas que
esse índio encontrou durante os dez anos de peregrinação.
E todos toparam, então refiz com o índio
a viagem que ele fez nos anos 70, quando a família
foi toda massacrada, ele escapou e, durante dez anos,
ele veio descendo para o Planalto Central, mas é
apanhado na Bahia, em 1988, e ninguém sabia quem
era, ninguém entendia a língua dele. Chamaram
intérpretes de línguas próximas,
e o acaso faz o seguinte: o índio que chamam
como intérprete está de porre e não
pode vir. Aí o cara do posto manda outro, de
18 anos, que falava mais ou menos o português,
mas dominava bem o tupi. Foi ele, no lugar do outro.
Quando ele chegou em Brasília, ele ficou travado
porque o índio perdido é o pai dele. Eles
se reencontram. Os dois ficam sabendo que nenhum deles
foi morto no massacre. O pai depois não quis
ficar na aldeia do filho, porque muitos falam português,
pela proximidade com os brancos, então ficou
em uma aldeia de um grupo mais nômade. Essa é
uma história que me tocou, me pegou por esse
lado do reencontro, da perda e, diante do não
saber, o reencontro é uma família despedaçada
que se reencontra. Achei isso positivo como elemento
narrativo. Foi uma época difícil, porque
eu tinha me separado, estava vivendo longe de um filho
pequeno, então era um sentimento que eu estava
sentindo e essa história é muito reveladora
de nossas esperanças. No meio da filmagem, o
índio foi atropelado e quase morreu! Cara, eu
fiquei péssimo. O cara sobreviveu a tudo e eu,
com minha intenção branquinha, ao refazer
o trajeto dele, ele quase morre... Fiquei mal com essa
atitude de interferência. Porque pode ter conseqüências
que você não espera, né?...
Filmou muito?
Filmei 140 horas de material. Oito horas em 35mm
e o restante em Mini-dv. É passado e presente,
preto e branco e a cores, mas não é exatamente
isso. O preto e branco expressa a interioridade do índio.
Nunca pensei em interferir na imagem, mexer nela, mas
vou fazer algumas alterações com a tecnologia
digital.
Novos projetos?
Projetos eu tenho sim, mas estou tão envolvido
com esse e está tão arrastado para conseguir
sair dele, estou com todos os contratos vencidos, com
dívidas. Ainda não me cobraram porque
sabem que é complicado... Mas eu tive que justificar
os atrasos. Por exemplo, o contrato do Ministério
vale por um ano, só que o dinheiro chegou sete
meses depois, então é um contrato que
não tenho como cumprir. Mas eles sabem disso
e estão sendo corretos. Não sei agora
para onde vai agora, mas estou vendo ai um cinema meio
franchising. Não sei se vale a pena entrar
nessas leis. Prefiro produzir de uma maneira mais simples
e pessoal, com amigos. Eu sou autônomo não
tenho laboratório, mas faço o resto em
casa, do roteiro à mixagem. Olha, o contrato
com a Petrobrás não é patrocínio,
mas de publicidade. Eles me dão um tanto de dinheiro
para aparecer o nome deles por tantos segundos em tal
lugar no filme.
E é a primeira coisa a aparecer nos filmes...
Como se eles fossem produtores. E como se dinheiro
fosse deles e não de isenção de
impostos. É como a televisão, que é
concessão pública. Governo é isso,
de esquerda ou direita, ele é mantenedor. Espero
que a garotada nova tenha raiva do que esteja acontecendo
no mundo, porque essa raiva é que vai gerar a
possibilidade de um pessoal independente, marginalizado,
que gere um cinema que questione tudo o que está
acontecendo, para exigir uma reflexão, e não
essa pasmaceira mercadológica.
Tem gente dizendo aí que filmes de periferia
não são vistos, que o que dá público
agora é comédia...
Ah, as fórmulas, as estratégias, pelo
amor de Deus, cara, tira isso da frente... O franchise
é a solução do esperto. Não
tenho interesse nesse cinema feito no Brasil. Só
tenho ido ver filmes de amigos. E quando estou para
filmar, aí é que eu não vejo filmes
mesmo. As imagens interferem demais em nossa cabeça.
Prefiro buscar minhas próprias imagens, preciso
de um esvaziamento desse consumismo cultural..
Entrevista realizada em 2005 por Daniel Caetano, Francis
Vogner, Francisco Guarnieri e Guilherme Martins. Transcrição
de Bianca Novaes e Cléber Eduardo.
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