OS ARARA & CONVERSAS NO MARANHÃO
Os Arara, série de tv, 3 epis., 1981-3
Conversas no Maranhão, 16mm, 1983

Em 1977, Andrea Tonacci começa uma série de projetos sobre comunidades indígenas que lhe tomará diversos anos e uma quinzena de filmes em diversos países, como os EUA, México, Peru, Bolívia e, naturalmente, Brasil. De todos esses filmes, a maioria permanece invisível ou quase, impossibilitando um contato mais sistemático com essa obra e inviabilizando uma visão de conjunto. Os dois projetos exibidos pela Mostra do Filme Livre, no começo do ano, permitem muito bem ver que o "desvio pela questão indígena" do final dos anos 70 está completamente alinhado no percurso de Tonacci, tanto no desafio que se estabelece no "o que filmar?" quanto aquele que talvez mais seja caro ao realizador, o de "como apresentar?" – a incorporação do espectador no processo criativo do filme já impressa no aparecimento da câmera em Bang-Bang, mas exposta de maneira geral na forma de dispor as informações e criar um sentimento de desafio no espectador.

Daí talvez a maior dificuldade e risco de imprecisão, que pode inclusive chegar à falácia, em considerar que a produção desses filmes indígenas participe de um olhar ou interesse antropológico, quando na verdade o que estava em jogo era antes de tudo uma pesquisa sobre limites de aproximação e formalização de uma experiência. Trocando em miúdos: o que está em jogo em Os Arara e Conversas no Maranhão não é uma etnografia do outro, um exercício de antropologia visual, mas uma discussão sobre que tipo de imagem criar, e que relação ela vai entreter com o seu espectador. Uma discussão que, naturalmente, resvala para a própria questão de como entrar em contato com um conjunto de comportamentos e de valores (uma "cultura") que só tende a ser visto por seus espectadores como algo exótico (o lado "turístico" do entretenimento) ou como algo a ser estudado e registrado para a posteridade (o lado "antropológico"). O que Tonacci tentará criar tanto na série quanto no longa-metragem é um olhar que possa fugir de ambas essas codificações confortáveis e engajar o espectador como alguém interessado humanamente naquilo, e motivado pelas imagens a responder aos desafios, aos "buracos", que a forma do filme coloca. Buracos que, em ambos os projetos, derivam simplesmente da questão da mediação. Tanto em Os Arara quanto em Conversas no Maranhão, é o estatuto do mediador que é posto à prova, na maneira de se registrar as localidades em que os filmes se passam, mas principalmente na forma de ordenar as informações para o espectador.

A esse respeito, Os Arara é bastante distintivo. Projeto de programa televisivo sobre os índios Arara, uma tribo indígena não-contactada (isto é, que jamais travou relações amistosas com o homem branco), a série trabalha com uma incompletude fundamental: não há imagens dos arara a mostrar. Vemos habitações abandonadas, vemos flechas presas à parede de uma casa, conhecemos parte da história e da geografia da tribo, descobrimos o cisma criado pela construção da Transamazônica e a ameaça das empresas de exploração, ma as duas primeiras partes trabalham inteiramente, por assim dizer, na ausência do objeto. E o que Tonacci faz para minimizar esse corte, essa fissura feita à proposta original? Nada. Ele simplesmente expõe os traços de existência dos Arara, mostra as contingências que tornaram o contato quase impossível, cria toda uma discussão em torno da relação que as empresas e o governo estabelecem com aquela área que a princípio deveria ser inteiramente reservada para os Arara. Mas Os Arara também não vai se formalizar como filme-denúncia. Não porque as situações não peçam uma postura de denúncia, mas sobretudo porque a pose do denuncismo é geralmente mais uma veleidade do documentarista do que algo que ajude propriamente a entender os jogos de força que se passam em cada caso.

Se a série é fracassada do ponto de vista jornalístico e do espetáculo televisivo – a segunda parte também não filma nada dos Arara, e ainda apresenta imagens com áudio bastante comprometido; apenas na terceira parte, não finalizada porque a rede Bandeirantes não quis co-produzir, a Funai e a equipe do filme conseguem por fim contactar a tribo –, é justamente porque ela recusa tanto a totalização do ponto de vista ("Hoje você vai conhecer tudo sobre...") quanto a casca falsa de jornalismo-aventura ("Hoje vamos penetrar no mundo desconhecido e perigoso de..."), mas é estruturada a partir de um ponto de vista de diário, uma pedagogia em que o diretor parece aprender ao mesmo tempo que seu espectador, num caderno de notas compartilhado. Tonacci se ancora num guia – Sydney Possuelo, coordenador da "Frente de Atração dos Arara" e um dos mais famosos sertanistas da Funai – e através desse contato privilegiado estabelece um viés de atuação. Em se tratando de uma série para a televisão, ainda não é possível abdicar inteiramente da mediação. Mas, em todo caso, é uma mediação que se dá no processo, e não através de um ponto de vista supremo (o da voz over). A lógica de Os Arara é a de um percurso que se faz (não à toa, o filme começa no avião que leva equipe e sertanistas para as áreas próximas), e do que consegue se apreender no processo.

Conversas no Maranhão também começa através da locomoção, mas a estrutura do filme se dá de forma completamente diferente. Paradoxalmente, o filme obedece a um objetivo muito mais pragmático1 e, ao mesmo tempo, muito mais abstrato. Filmado em 1977 mas finalizado apenas em 1983, o terceiro longa-metragem de Tonacci gira em torno da duvidosa demarcação de terra que a Funai vinha preparando para os Timbira. Mas, dessa vez, não existe uma narrativa de aprendizado, mas uma apreensão direta. Às conversas que o título se refere, se intercalam filmagens de rituais, costumes ou simples gestos cotidianos. Quando se fala na língua autóctone, não há legendas. Aparentemente, Conversas no Maranhão cai na mesma linha de preocupações do documentarismo que brota com o cinema novo: recorte sócio-cultural, iconografia do outro e finalmente o famoso "dar voz ao outro", tão abusado numa determinada época. Mas o que esse filme de Tonacci faz é, ao contrário, uma resposta a isso. Não que o filme "seja" a voz do outro, ou que o filme entregue a câmera aos índios e ache que assim ele resolve a questão.

Simplesmente, Conversas no Maranhão desloca o problema: o cinema não é um instrumento para dar a voz, apenas para amplificá-la; a malícia do "dar voz a" não é algo inerente ao registro cinematográfico, mas a uma estratégia – intelectual, sociologizante – de uso; e por fim, o "dar a voz" é acima de tudo uma operação de construção final que imiscui o realizador com o discurso do outro, confunde a voz do realizador com o discurso do outro, rende loas e atribuições de heroísmo e benevolência ao realizador e uma familiaridade confortável com o outro tornado "objeto". Ao armar seu filme fugindo da ratificação dos discursos uns sobre os outros, ou evitando fazer das conversas uma operação dialética (que, como todos sabemos, utiliza as contradições apenas para dar um recorte mais "autêntico" à totalização), Tonacci evita a posição de "filtro", porque ele não faz questão de "preparar" ao espectador as imagens que filma. Se a pergunta "o quê?" aproximaria essas Conversas da prática antropológica, a construção do "como apresentar" emprega um outro procedimento, bem mais radical, de apreensão: unicamente registrar, quase indiscriminadamente, os vários depoimentos dessas conversas, e montá-los alternadamente com diversos outros aspectos da vida dos Timbira. A forma do filme não instala o espectador nem constrói um lugar apropriado para que ele assista ao material do filme, suas seqüências e as ligações entre seqüências, de forma que o papel de mediador entra em cheque pela natureza própria da forma do filme. A voz persiste, mas o "dar a voz" está deslocado. Assim, Tonacci engaja seu espectador na tessitura de sua obra de uma forma semelhante que, quase quinze anos antes, Bang-Bang fazia.

Se Os Arara é uma espécie de cinediário, Conversas no Maranhão seria uma espécie de carta co-escrita entre Tonacci e os Timbira, em que eles mostrariam um pouco do que são – do que fazem, de como vivem, de como falam, de onde habitam – e reivindicariam para o governo uma demarcação mais honesta de suas terras. O regime de co-autoria aparece aqui em toda sua força: à tribo cabe a escolha do "o quê", aquilo que vai estar no filme e sua função principal (a reivindicação por uma nova demarcação de terras), enquanto a Tonacci cabe exclusivamente a magia da mise-en-scène, realizada aqui não a partir de enquadramentos e movimentos de câmeras, mas da distância estabelecida entre sentido do filme e espectador. É nesse momento que, para os índios, o filme é uma coisa (um instrumento), e para os brancos – a quem, conscientemente, Tonacci dirige seu filme – é outra: uma tentativa de olhar para si mesmo mais do que para o outro, uma contra-devoração do olhar, um processo, enfim, de aprendizagem. Não uma antropologia, mas uma autoscopia.

Ruy Gardnier

1. Ver o texto de apresentação no release do filme, que faz do filme uma espécie de "documento oficial" dos Timbira, em Palavras de Tonacci.