Em
1977, Andrea Tonacci começa uma série
de projetos sobre comunidades indígenas que lhe
tomará diversos anos e uma quinzena de filmes
em diversos países, como os EUA, México,
Peru, Bolívia e, naturalmente, Brasil. De todos
esses filmes, a maioria permanece invisível ou
quase, impossibilitando um contato mais sistemático
com essa obra e inviabilizando uma visão de conjunto.
Os dois projetos exibidos pela Mostra do Filme Livre,
no começo do ano, permitem muito bem ver que
o "desvio pela questão indígena"
do final dos anos 70 está completamente alinhado
no percurso de Tonacci, tanto no desafio que se estabelece
no "o que filmar?" quanto aquele que talvez
mais seja caro ao realizador, o de "como apresentar?"
a incorporação do espectador no
processo criativo do filme já impressa no aparecimento
da câmera em Bang-Bang, mas exposta de
maneira geral na forma de dispor as informações
e criar um sentimento de desafio no espectador.
Daí talvez a maior dificuldade e risco de imprecisão,
que pode inclusive chegar à falácia, em
considerar que a produção desses filmes
indígenas participe de um olhar ou interesse
antropológico, quando na verdade o que estava
em jogo era antes de tudo uma pesquisa sobre limites
de aproximação e formalização
de uma experiência. Trocando em miúdos:
o que está em jogo em Os Arara e Conversas
no Maranhão não é uma etnografia
do outro, um exercício de antropologia visual,
mas uma discussão sobre que tipo de imagem criar,
e que relação ela vai entreter com o seu
espectador. Uma discussão que, naturalmente,
resvala para a própria questão de como
entrar em contato com um conjunto de comportamentos
e de valores (uma "cultura") que só
tende a ser visto por seus espectadores como algo exótico
(o lado "turístico" do entretenimento)
ou como algo a ser estudado e registrado para a posteridade
(o lado "antropológico"). O que Tonacci
tentará criar tanto na série quanto no
longa-metragem é um olhar que possa fugir de
ambas essas codificações confortáveis
e engajar o espectador como alguém interessado
humanamente naquilo, e motivado pelas
imagens a responder aos desafios, aos "buracos",
que a forma do filme coloca. Buracos que, em ambos os
projetos, derivam simplesmente da questão da
mediação. Tanto em Os Arara
quanto em Conversas no Maranhão, é
o estatuto do mediador que é posto à prova,
na maneira de se registrar as localidades em que os
filmes se passam, mas principalmente na forma de ordenar
as informações para o espectador.
A esse respeito, Os Arara é bastante distintivo.
Projeto de programa televisivo sobre os índios
Arara, uma tribo indígena não-contactada
(isto é, que jamais travou relações
amistosas com o homem branco), a série trabalha
com uma incompletude fundamental: não há
imagens dos arara a mostrar. Vemos habitações
abandonadas, vemos flechas presas à parede de
uma casa, conhecemos parte da história e da geografia
da tribo, descobrimos o cisma criado pela construção
da Transamazônica e a ameaça das empresas
de exploração, ma as duas primeiras partes
trabalham inteiramente, por assim dizer, na ausência
do objeto. E o que Tonacci faz para minimizar esse corte,
essa fissura feita à proposta original? Nada.
Ele simplesmente expõe os traços de existência
dos Arara, mostra as contingências que tornaram
o contato quase impossível, cria toda uma discussão
em torno da relação que as empresas e
o governo estabelecem com aquela área que a princípio
deveria ser inteiramente reservada para os Arara. Mas
Os Arara também não vai se formalizar
como filme-denúncia. Não porque as situações
não peçam uma postura de denúncia,
mas sobretudo porque a pose do denuncismo é geralmente
mais uma veleidade do documentarista do que algo que
ajude propriamente a entender os jogos de força
que se passam em cada caso.
Se a série é fracassada do ponto de vista
jornalístico e do espetáculo televisivo
a segunda parte também não filma
nada dos Arara, e ainda apresenta imagens com áudio
bastante comprometido; apenas na terceira parte, não
finalizada porque a rede Bandeirantes não quis
co-produzir, a Funai e a equipe do filme conseguem por
fim contactar a tribo , é justamente porque
ela recusa tanto a totalização do ponto
de vista ("Hoje você vai conhecer tudo sobre...")
quanto a casca falsa de jornalismo-aventura ("Hoje
vamos penetrar no mundo desconhecido e perigoso de..."),
mas é estruturada a partir de um ponto de vista
de diário, uma pedagogia em que o diretor parece
aprender ao mesmo tempo que seu espectador, num caderno
de notas compartilhado. Tonacci se ancora num guia
Sydney Possuelo, coordenador da "Frente de Atração
dos Arara" e um dos mais famosos sertanistas da
Funai e através desse contato privilegiado
estabelece um viés de atuação.
Em se tratando de uma série para a televisão,
ainda não é possível abdicar inteiramente
da mediação. Mas, em todo caso, é
uma mediação que se dá no processo,
e não através de um ponto de vista supremo
(o da voz over). A lógica de Os Arara
é a de um percurso que se faz (não à
toa, o filme começa no avião que leva
equipe e sertanistas para as áreas próximas),
e do que consegue se apreender no processo.
Conversas no Maranhão também começa
através da locomoção, mas a estrutura
do filme se dá de forma completamente diferente.
Paradoxalmente, o filme obedece a um objetivo muito
mais pragmático1 e, ao mesmo
tempo, muito mais abstrato. Filmado em 1977 mas finalizado
apenas em 1983, o terceiro longa-metragem de Tonacci
gira em torno da duvidosa demarcação de
terra que a Funai vinha preparando para os Timbira.
Mas, dessa vez, não existe uma narrativa de aprendizado,
mas uma apreensão direta. Às conversas
que o título se refere, se intercalam filmagens
de rituais, costumes ou simples gestos cotidianos. Quando
se fala na língua autóctone, não
há legendas. Aparentemente, Conversas no Maranhão
cai na mesma linha de preocupações do
documentarismo que brota com o cinema novo: recorte
sócio-cultural, iconografia do outro e finalmente
o famoso "dar voz ao outro", tão abusado
numa determinada época. Mas o que esse filme
de Tonacci faz é, ao contrário, uma resposta
a isso. Não que o filme "seja" a voz
do outro, ou que o filme entregue a câmera aos
índios e ache que assim ele resolve a questão.
Simplesmente, Conversas no Maranhão desloca
o problema: o cinema não é um instrumento
para dar a voz, apenas para amplificá-la; a malícia
do "dar voz a" não é algo inerente
ao registro cinematográfico, mas a uma estratégia
intelectual, sociologizante de uso; e
por fim, o "dar a voz" é acima de tudo
uma operação de construção
final que imiscui o realizador com o discurso do outro,
confunde a voz do realizador com o discurso do outro,
rende loas e atribuições de heroísmo
e benevolência ao realizador e uma familiaridade
confortável com o outro tornado "objeto".
Ao armar seu filme fugindo da ratificação
dos discursos uns sobre os outros, ou evitando fazer
das conversas uma operação dialética
(que, como todos sabemos, utiliza as contradições
apenas para dar um recorte mais "autêntico"
à totalização), Tonacci evita a
posição de "filtro", porque
ele não faz questão de "preparar"
ao espectador as imagens que filma. Se a pergunta "o
quê?" aproximaria essas Conversas
da prática antropológica, a construção
do "como apresentar" emprega um outro procedimento,
bem mais radical, de apreensão: unicamente registrar,
quase indiscriminadamente, os vários depoimentos
dessas conversas, e montá-los alternadamente
com diversos outros aspectos da vida dos Timbira. A
forma do filme não instala o espectador nem constrói
um lugar apropriado para que ele assista ao material
do filme, suas seqüências e as ligações
entre seqüências, de forma que o papel de
mediador entra em cheque pela natureza própria
da forma do filme. A voz persiste, mas o "dar a
voz" está deslocado. Assim, Tonacci engaja
seu espectador na tessitura de sua obra de uma forma
semelhante que, quase quinze anos antes, Bang-Bang
fazia.
Se Os Arara é uma espécie de cinediário,
Conversas no Maranhão seria uma espécie
de carta co-escrita entre Tonacci e os Timbira, em que
eles mostrariam um pouco do que são do
que fazem, de como vivem, de como falam, de onde habitam
e reivindicariam para o governo uma demarcação
mais honesta de suas terras. O regime de co-autoria
aparece aqui em toda sua força: à tribo
cabe a escolha do "o quê", aquilo que
vai estar no filme e sua função principal
(a reivindicação por uma nova demarcação
de terras), enquanto a Tonacci cabe exclusivamente a
magia da mise-en-scène, realizada aqui
não a partir de enquadramentos e movimentos de
câmeras, mas da distância estabelecida entre
sentido do filme e espectador. É nesse momento
que, para os índios, o filme é uma coisa
(um instrumento), e para os brancos a quem, conscientemente,
Tonacci dirige seu filme é outra: uma
tentativa de olhar para si mesmo mais do que para o
outro, uma contra-devoração do olhar,
um processo, enfim, de aprendizagem. Não uma
antropologia, mas uma autoscopia.
Ruy Gardnier
1. Ver o texto
de apresentação no release do filme, que
faz do filme uma espécie de "documento oficial"
dos Timbira, em Palavras
de Tonacci.
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