Um dos fenômenos mais marcantes,
que se acentua a partir da segunda metade do século
passado, e hoje aparece vivo como nunca no mundo (e
por isso mesmo também encarnado no cinema mundial),
é o ataque de má consciência do Primeiro Mundo (em especial,
dos europeus) em relação ao seu passado, e mesmo o seu
presente, no que tange o Terceiro Mundo. Esta tendência,
se está mais viva do que nunca, como podemos ver no
verdadeiro tratado sobre o assunto que é A
febre, exibido no Festival do Rio, e se encontra
seu exemplar mais “artisticamente relevante” no igualmente
deplorável Caché, pode ser vista ainda em muitos
outros dos filmes em cartaz nos festivais internacionais
do momento. Pois o filme que aqui analisamos se encaixa
perfeitamente no "sub-gênero".
O título do filme de Marco Tulio Giordana, aliás,
já diz quase tudo sobre as intenções do filme: abrir
os olhos da burguesia italiana para o fato de que há
miséria no mundo (e pior, na porta de suas casas). O
filme começa com cenas banais do cotidiano de uma família
pequeno-burguesa típica, numa pequena cidade italiana.
Vivem bem, felizes – mas a filmagem curiosamente traz
o cheiro de que a tragédia se aproxima daquele lar.
Nenhum plano é realizado simplesmente por interesse
no que fazem e dizem aquelas pessoas, todos parecem
sempre antecipar e reiterar que aquela felicidade precisará
pagar um preço. É o bom e velho cinema que usa seus
personagens para passar lições de moral.
Lá pela meia hora do filme, a sequência que insere a
tragédia até causa algum interesse, porque parece instaurar
uma perda de controle, um luto sincero. A sensação dura
poucos segundos, pois o salvamento que se aproxima reinsere
o cunho sociológico barato: retirado do mar onde se
afogava por um barco de refugiados (cujos pilotos podiam
facilmente ir dirigir a pickup que persegue bicicletas
em Nordeste), o jovem burguês abrirá seus olhos
para a verdade do mundo – na forma de dois irmãos romenos
pobres (mas muito bonitos). Isso tudo num barco que
parece patrocinado pelas United Colors of Benetton.
Quando sei nato... é o exemplar típico do cinema-ONG:
apelando para o dualismo da culpa social e da piedade,
rebaixa os “menos favorecidos” a objetos de fascínio/compaixão
nas mãos dos autênticos protagonistas, os sujeitos de
sempre, a burguesia. Na metáfora que monta, tenta nos
dizer que todos são crianças, e é sendo fiel a este
mote que realiza seu filme: assume o espectador como
um menino de 7 anos de idade, desavisado, ingênuo, precisando
de esclarecimentos sobre “como são as coisas do mundo”,
de alguém que lhe dê a mão e mostre o caminho. Cheio
de falsos finais, não consegue resistir à tentação de
chafurdar cada vez mais na sua própria piscina de auto-lamentação.
O objetivo é o de sempre: que ao final as platéias se
sintam mais “humanas” simplesmente por terem expiado,
elas também, as suas culpas, se identificando com os
personagens em sua via crúcis iluminadora, e apiedadas
do sofrimento alheio. Cinema-circo, versão assistencialista.
Para que não se diga que é filme sem função,
a verdadeira utilidade de obras como Quando sei nato...,
passa bem longe do esclarecimento que supõe, ou de qualquer
relevância política ou social: o que ele faz melhor
é nos ajudar a entender, mais do que qualquer mensalão,
as origens e a profundidade da crise do pensamento de
esquerda no mundo.
Eduardo Valente
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