A Febre é construído
a partir da assunção pura e simples de uma divisão do
mundo entre pobres e ricos. E, mais do que isso, numa
oposição entre estes. Permeado de uma ingenuidade quase
abjeta, o filme mostra uma mulher, interpretada por
Vanessa Redgrave, que vive financeiramente bem, entrando
em contato com uma realidade que ela até então desconhecia:
a exclusão perpetrada pelo sistema capitalista. O didatismo
da narrativa, armada como um “quase-conto moral”, e
conduzida pela voz off incessante da personagem
principal, que em diversos momentos chega a falar frontalmente
para a câmera diante de um fundo neutro, configura na
verdade um labirinto de pensamentos, mais ou menos conectados
por livre associação e que percorrem o caminho de um
exame de consciência burguês movido a culpa católica.
Como um devaneio interior – ou um diário no qual se
expõem reflexões sobre o mundo – o filme procura expor
o espectador a uma desconstrução das lógicas naturalizadas
que movem o comportamento da classe média em particular.
Estar tranqüilo com sua condição econômica estável é
quase um crime, como colocado pelo filme. É preciso
sentir culpa por aqueles que sofrem no mundo, pois,
como a principal conclusão que o filme nos aponta, todos
aqueles que possuem algo são responsáveis pelo fato
dos outros não possuírem. Um atavismo dos grupos humanos
é a grande justificativa para tal, pois que a grande
separação existente entre aqueles que têm e aqueles
que não têm vem de tempos imemoriais, das injustiças
perpetradas historicamente por um grupo sobre outro.
A estratégia de “esclarecer” o espectador por um destrinchamento
dos pensamentos mais comuns acerca do assunto é então
combinada com uma ignorância por parte da personagem
do que se dá no mundo, como símbolo da indiferença dos
habitantes dos países ricos. A narrativa em tons fabulescos
(os personagens não têm nome, os países não tem nome,
nada é especificado ou contextualizado) fecha o circuito,
criando uma representação em traços gerais das dinâmicas
que movem a desigualdade social, como se o mergulho
nesta abstração, neste mundo caricaturado propiciasse
a reflexão (indireta) sobre a realidade. Como exemplo,
temos o país “de sotaque estranho” ao sul, regido por
uma ditadura sanguinária combatida por revolucionários
violentos: belo, mas habitado por uma população paupérrima,
que, no entanto, é corajosa e consegue manter altos
valores – isso é o que a personagem descobre na sua
viagem – após ter descoberto O Capital, de Marx,
deixado anonimamente na porta de sua casa e lido com
um misto de surpresa e curiosidade. A “febre” que a
acomete é, pois, a crise de consciência que a destrói
por conta desta série de revelações.
O que o filme tem de esquemático, ele tem de nocivo.
Debruçar-se sobre raciocínios íntimos e infantis, aparentemente
secretos, fora do domínio público, expondo-os como uma
grande forma de conquistar a adesão do espectador por
identificação, apenas reforça a distância existente
entre estes “pólos”, a diferença instransponível entre
os “privilegiados” e os “destituídos”, além de propagar
uma reflexão paternalista da pior espécie.
Tudo isto leva a uma discussão sobre a imagem. E sobre
o discurso. Talvez, para além da forma de narrar, didática
ao extremo e claramente adaptada de um monólogo teatral,
houvesse um interesse por este “outro” da parte de lá.
Mas, a partir do momento que a personagem viaja para
este “lá” e prossegue com seu discurso ordenador da
realidade (a perda de controle que toma conta dela não
é uma perda de controle sobre o mundo, mas apenas e
tão somente sobre seus próprios processos interiores),
tecendo as mais absurdas colocações como “os pobres
são belos” ou “como os olhos desta mendiga são vivos!”,
todo e qualquer outro discurso perde espaço. É enquadrado
em planos de fotografia de poucos tons saturados, em
close-up com grande angular, em câmera lenta... Pois
trata-se de potencializar o impacto “necessário” da
existência deste outro “desconhecido”. E de entender
e explicar toda e qualquer nuance do mundo e dos posicionamentos
possíveis de serem tomados, dar conta de tudo para assegurar
que ainda estamos no controle.
Podemos, sim, compreender as causas da violência revolucionária
em países periféricos, mas NÓS temos que entender. E
NÓS temos que condenar a ditadura que os assola e as
atitudes bravas daqueles que lutam pela sobrevivência.
E NÓS somos os responsáveis. Pela pobreza, pelas guerras,
pela nossa condição segura e confortável. E por tudo
que não conhecemos e não entendemos. E é bom que seja
assim, pois quando necessitarmos, é só fazer um exame
de consciência e sofrer como bom Cristo, de preferência
dentro de um quarto (ou um banheiro, como no filme),
teorizar bastante e depois reencontrar, ao alcance da
mão, todas as coisas boas que amamos – e que os “pobres”
deveriam ter também, pois é essa a grande “injustiça”
do mundo, que todos não possam desfrutar dos mesmos
bens que nós (liberal-capitalista-branco-ocidental-cristão-esclarecidos).
Travestido de humilde compreensão e mea culpa,
A Febre é na verdade uma grande assertiva da
hegemonia dos países centrais, que revela bem o tipo
de postura que movimenta instituições como a UNESCO,
apoiadora do filme. Se o ativismo e a militância são
necessários em diversos aspectos, talvez igualmente
importante seja pensar na nossa imagem e no nosso discurso,
antes de nos voltarmos para os outros. Tentar compreender
um pouco das dinâmicas que informam o mundo para então
saber como nos inserir e como jogar com ela.
Tatiana Monassa
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