ÁGUA FRIA
Olivier Assayas, L'Eau froide, França, 1994

Teenage horror story

Crescer é uma sujeira que fazem com a gente...

As crianças são como os anos, nunca mais voltam.
Louis Ferdinand Céline, Morte a Crédito

Há vários elementos que ligam os primeiros filmes de Olivier Assayas, mas de certa forma pode-se dizer que todos eles apontam na mesma direção: tratam-se de filmes de formação. De Désordre a Água Fria estamos diante de um cinema da busca da experiência e suas conseqüências. Um cinema amargo à medida que parte de uma constatação a contragosto: é preciso entrar na vida adulta. Nos primeiros filmes dessa série a ação invariavelmente toma o espaço de anos. Seus personagens permanecem num estado continuo de pós-adolescência à deriva independente de estarem numa posição mais confortavelmente classe média (A Criança de Inverno) ou de serem pequenos marginais (Paris se Levanta), a voz geracional que transpassa estes filmes é a mesma. São filmes em que cada imagem parece concentrada em levar seus protagonistas a uma imagem final inevitável. O que torna desde o principio estes filmes fascinantes é a inversão da lógica do gênero: acumula-se experiências, mas elas quebram ao invés de somar. Não há nenhuma iluminação no fim do caminho nestas histórias de formação, apenas compromisso. Não que Assayas seja algum pessimista crônico, longe disso. O que há no lugar é uma sucessão de imagens em que estas situações pesam sobre os rostos dos seus jovens atores, e o resto fica a cargo do espectador. A melhor descrição destes filmes foi provavelmente feita por Kent Jones num artigo escrito em 96 antes de Irma Vep (que representa não apenas um salto de reconhecimento para o cineasta, como também um ponto de virada a partir do qual sua obra se desdobraria em novas direções): Se Assayas parece preso a jovens, creio que a razão seja algo maior que uma fixação em adolescência. Cada um dos seus filmes acontece num período longo de tempo de forma a mostrar mudança, inevitavelmente significando capitulação e compromisso numa sociedade consumista, em que as energias da juventude são drenadas, gastas e desviadas para a marcha sem fim da utilidade.

Como Luiz Carlos Oliveira Jr observou recentemente, os primeiros filmes de Assayas podiam ser vistos a partir da perspectiva dos filhos, enquanto sua obra mais recente inverte a equação. A imagem mais marcante neste sentido talvez seja do encontro do protagonista com o pai (Gérard Blain) em A Criança de Inverno. Blain, que o espectador decerto associa a filmes como Os Primos de Chabrol e Hatari de Hawks, jamais foi filmado de forma tão dura, surgindo das sombras da luz de Denis Lenoir. A opção luminosa termina por revelar a impossibilidade de comunicação numa relação tão marcada pela autoridade. Daí que Água Fria seja o filme que encerre a primeira fase da carreira do cineasta: leva-se esta impossibilidade ao limite cena após cena. O divórcio no corpo da imagem que marcava os filmes anteriores entre a sensibilidade estética do cineasta capaz de transformar cada movimento e cada forma no mais vivo dos eventos – o sentimento de descoberta que cada imagem revela –, e o senso de que instante por instante as ações que vemos drenam as forças de suas personagens, é elevado aqui para o ponto central. A radicalidade de Olivier Assayas começa justamente na impossibilidade de resolução deste conflito estético. (Não surpreende que ele permaneça há tanto tempo nesta curiosa posição de ser ao mesmo tempo um nome conhecido mas obscuro no circuito de arte. Irma Vep seu único filme popular é geralmente – e erroneamente – tratado como uma espécie de A Noite Americana dos anos 90).

O filme abre-se com o casal de protagonistas (Cyprien Fouquet e Virginie Ledoyen) roubando discos numa loja. Ele escapa, ela é presa, e dali por diante o filme trata de levar ao limite cada situação até um senso de ruptura. O olhar de Olivier Assayas até então jamais se revelara tão atento. A seqüência da festa é um raro momento de cinema contemporâneo: não há muitas cenas tão ricas nos detalhes, tão precisas na construção de uma experiência específica e na riqueza sensorial como a imersão que Assayas proporciona neste tour de force. Ainda melhor é a seqüência anterior, de passeio poético pela floresta. A contemplação de uma paisagem é rara no cinema de Assayas, na medida que seu interesse pelo espaço vai no sentido de revelar o conflito entre seus personagens. Aqui, no entanto, ele permanece fixando-se na paisagem por minutos, e a câmera de Denis Lenoir arranja a cada instante uma nova maneira de torná-la um organismo vivo, num momento verdadeiramente fantasmagórico.

Muito mais do que os sujeitos que tentam aplicar os aforismos das Notas sobre o Cinematógrafo ao pé da letra, Olivier Assayas apreendeu muito com Robert Bresson. O que Água Fria mais lembra é justamente o Bresson final (O Diabo Provavelmente, O Dinheiro) mesmo que superficialmente seus estilos possam parecer tão distantes. Assayas apontou as similaridades entre estes filmes e o cinema de horror que vinha da América do Norte na época (Carpenter, Cronenberg, Romero). A aproximação é das mais úteis e serve para iluminar não só Bresson e Assayas mas boa parte do cinema dito moderno desde Rossellini no pós-guerra até filmes como Elefante e Mal dos Trópicos. Para além de todos os clichês a respeito das longas deambulações, do realismo e dos tempos mortos que geralmente animam comentários sobre este cinema, há um forte elemento de filme de horror que passa por boa parte deles. Uma espécie de decoro no/do horror que talvez seja melhor exemplificado pelo Noite e Neblina de Resnais e pela afirmação de Rivette de que o cinema devia levar o espectador a encarar o horror. È uma sensibilidade bastante européia que de lá migrou para o resto do mundo – inclusive para o próprio filme de horror americano (começando pelos filmes que Jacques Tourneur fez para Val Lewton). Detratores de Elefante às vezes se referem a ele como alguma espécie de slasher de arte, definição que tem mais de verdade do que se pensa. Van Sant claramente faz uso de abordagens que se pode associar ao filme de horror, mas são de um modo geral opções que ao longo dos anos se incorporaram ao vocabulário do filme dito de arte, é só a temática do filme de Van Sant que desnuda as relações entre elas e cinema de horror.

O que tudo isto tem a ver com Água Fria? O filme de Assayas é um dos grandes filmes de horror do cinema contemporâneo, muito bem inserido nesta tradição, em particular num grupo mais especifico de filmes (Ato Final de Skolimowski, os já mencionados filmes de Bresson, Aos Nossos Amores e A Infância Nua de Pialat, a maior parte da filmografia de Gus Van Sant e – por que não? – Martin de Romero) que aplicam esta sensibilidade especifica ao filme de formação. A adolescência serve a este cinema muito bem. Pode-se dizer mesmo que se trata de uma perfeita simbiose entre tema e enfoque. Aqui Assayas constrói isso por muitos meios, mas especialmente apostando no inexplicável. Jamais saberemos, por exemplo, por que Gilles rasga as poltronas de um metrô. O que sobra no final de Água Fria, como em quase todos os filmes de Assayas, é uma espécie de ferida exposta, um corredor de dor que simplesmente existe e é um dado posto, parte do estar no mundo. Há também um grande vazio na comunicação, os personagens parecem sempre buscar grupos, mas no fundo é como se chegar ao outro fosse uma impossibilidade. Termina-se invariavelmente só, mesmo na comemoração coletiva. A solidão sempre foi um aspecto importante do cinema de Assayas, mas nunca com tanta força como aqui. A experiência de adolescência poucas vezes encontrou tradução tão forte quanto neste filme de horror de Olivier Assayas.


Filipe Furtado

 

 




Virginie Ledoyen em Água Fria (1994) de Olivier Assayas