Teenage
horror story
Crescer é uma sujeira que fazem com a gente...
As crianças são como os
anos, nunca mais voltam.
Louis Ferdinand Céline, Morte a Crédito
Há vários elementos que ligam os primeiros
filmes de Olivier Assayas, mas de certa forma pode-se
dizer que todos eles apontam na mesma direção:
tratam-se de filmes de formação. De Désordre
a Água Fria estamos diante de um cinema
da busca da experiência e suas conseqüências.
Um cinema amargo à medida que parte de uma constatação
a contragosto: é preciso entrar na vida adulta.
Nos primeiros filmes dessa série a ação
invariavelmente toma o espaço de anos. Seus personagens
permanecem num estado continuo de pós-adolescência
à deriva independente de estarem numa posição
mais confortavelmente classe média (A Criança
de Inverno) ou de serem pequenos marginais (Paris
se Levanta), a voz geracional que transpassa estes
filmes é a mesma. São filmes em que cada
imagem parece concentrada em levar seus protagonistas
a uma imagem final inevitável. O que torna desde
o principio estes filmes fascinantes é a inversão
da lógica do gênero: acumula-se experiências,
mas elas quebram ao invés de somar. Não
há nenhuma iluminação no fim do
caminho nestas histórias de formação,
apenas compromisso. Não que Assayas seja algum
pessimista crônico, longe disso. O que há
no lugar é uma sucessão de imagens em
que estas situações pesam sobre os rostos
dos seus jovens atores, e o resto fica a cargo do espectador.
A melhor descrição destes filmes foi provavelmente
feita por Kent Jones num artigo escrito em 96 antes
de Irma Vep (que representa não apenas
um salto de reconhecimento para o cineasta, como também
um ponto de virada a partir do qual sua obra se desdobraria
em novas direções): Se Assayas parece
preso a jovens, creio que a razão seja algo maior
que uma fixação em adolescência.
Cada um dos seus filmes acontece num período
longo de tempo de forma a mostrar mudança, inevitavelmente
significando capitulação e compromisso
numa sociedade consumista, em que as energias da juventude
são drenadas, gastas e desviadas para a marcha
sem fim da utilidade.
Como Luiz Carlos Oliveira Jr observou
recentemente, os primeiros filmes de Assayas podiam
ser vistos a partir da perspectiva dos filhos, enquanto
sua obra mais recente inverte a equação.
A imagem mais marcante neste sentido talvez seja do
encontro do protagonista com o pai (Gérard Blain)
em A Criança de Inverno. Blain, que o
espectador decerto associa a filmes como Os Primos
de Chabrol e Hatari de Hawks, jamais foi filmado
de forma tão dura, surgindo das sombras da luz
de Denis Lenoir. A opção luminosa termina
por revelar a impossibilidade de comunicação
numa relação tão marcada pela autoridade.
Daí que Água Fria seja o filme
que encerre a primeira fase da carreira do cineasta:
leva-se esta impossibilidade ao limite cena após
cena. O divórcio no corpo da imagem que marcava
os filmes anteriores entre a sensibilidade estética
do cineasta capaz de transformar cada movimento e cada
forma no mais vivo dos eventos – o sentimento de descoberta
que cada imagem revela –, e o senso de que instante
por instante as ações que vemos drenam
as forças de suas personagens, é elevado
aqui para o ponto central. A radicalidade de Olivier
Assayas começa justamente na impossibilidade
de resolução deste conflito estético.
(Não surpreende que ele permaneça há
tanto tempo nesta curiosa posição de ser
ao mesmo tempo um nome conhecido mas obscuro no circuito
de arte. Irma Vep seu único filme popular
é geralmente e erroneamente tratado
como uma espécie de A Noite Americana
dos anos 90).
O filme abre-se com o casal de protagonistas (Cyprien
Fouquet e Virginie Ledoyen) roubando discos numa loja.
Ele escapa, ela é presa, e dali por diante o
filme trata de levar ao limite cada situação
até um senso de ruptura. O olhar de Olivier Assayas
até então jamais se revelara tão
atento. A seqüência da festa é um
raro momento de cinema contemporâneo: não
há muitas cenas tão ricas nos detalhes,
tão precisas na construção de uma
experiência específica e na riqueza sensorial
como a imersão que Assayas proporciona neste
tour de force. Ainda melhor é a seqüência
anterior, de passeio poético pela floresta. A
contemplação de uma paisagem é
rara no cinema de Assayas, na medida que seu interesse
pelo espaço vai no sentido de revelar o conflito
entre seus personagens. Aqui, no entanto, ele permanece
fixando-se na paisagem por minutos, e a câmera
de Denis Lenoir arranja a cada instante uma nova maneira
de torná-la um organismo vivo, num momento verdadeiramente
fantasmagórico.
Muito mais do que os sujeitos que tentam aplicar os
aforismos das Notas sobre o Cinematógrafo
ao pé da letra, Olivier Assayas apreendeu muito
com Robert Bresson. O que Água Fria mais
lembra é justamente o Bresson final (O Diabo
Provavelmente, O Dinheiro) mesmo que superficialmente
seus estilos possam parecer tão distantes. Assayas
apontou as similaridades entre estes filmes e o cinema
de horror que vinha da América do Norte na época
(Carpenter, Cronenberg, Romero). A aproximação
é das mais úteis e serve para iluminar
não só Bresson e Assayas mas boa parte
do cinema dito moderno desde Rossellini no pós-guerra
até filmes como Elefante e Mal dos
Trópicos. Para além de todos os clichês
a respeito das longas deambulações, do
realismo e dos tempos mortos que geralmente animam comentários
sobre este cinema, há um forte elemento de filme
de horror que passa por boa parte deles. Uma espécie
de decoro no/do horror que talvez seja melhor exemplificado
pelo Noite e Neblina de Resnais e pela afirmação
de Rivette de que o cinema devia levar o espectador
a encarar o horror. È uma sensibilidade bastante
européia que de lá migrou para o resto
do mundo inclusive para o próprio filme
de horror americano (começando pelos filmes que
Jacques Tourneur fez para Val Lewton). Detratores de
Elefante às vezes se referem a ele como
alguma espécie de slasher de arte, definição
que tem mais de verdade do que se pensa. Van Sant claramente
faz uso de abordagens que se pode associar ao filme
de horror, mas são de um modo geral opções
que ao longo dos anos se incorporaram ao vocabulário
do filme dito de arte, é só a temática
do filme de Van Sant que desnuda as relações
entre elas e cinema de horror.
O que tudo isto tem a ver com Água Fria?
O filme de Assayas é um dos grandes filmes de
horror do cinema contemporâneo, muito bem inserido
nesta tradição, em particular num grupo
mais especifico de filmes (Ato Final de Skolimowski,
os já mencionados filmes de Bresson, Aos Nossos
Amores e A Infância Nua de Pialat,
a maior parte da filmografia de Gus Van Sant e – por
que não? – Martin de Romero) que aplicam
esta sensibilidade especifica ao filme de formação.
A adolescência serve a este cinema muito bem.
Pode-se dizer mesmo que se trata de uma perfeita simbiose
entre tema e enfoque. Aqui Assayas constrói isso
por muitos meios, mas especialmente apostando no inexplicável.
Jamais saberemos, por exemplo, por que Gilles rasga
as poltronas de um metrô. O que sobra no final
de Água Fria, como em quase todos os filmes
de Assayas, é uma espécie de ferida exposta,
um corredor de dor que simplesmente existe e é
um dado posto, parte do estar no mundo. Há também
um grande vazio na comunicação, os personagens
parecem sempre buscar grupos, mas no fundo é
como se chegar ao outro fosse uma impossibilidade. Termina-se
invariavelmente só, mesmo na comemoração
coletiva. A solidão sempre foi um aspecto importante
do cinema de Assayas, mas nunca com tanta força
como aqui. A experiência de adolescência
poucas vezes encontrou tradução tão
forte quanto neste filme de horror de Olivier Assayas.
Filipe Furtado
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