Une nouvelle
vie
Quando acaba um filme de Olivier
Assayas, sempre fica a impressão de que havia
um mundo de coisas acontecendo, mas ainda assim nada
acontecia. Se seus filmes são coletâneas
de casualidades, são amontoados de encontros,
passeios e diálogos que pouco parecem significar,
o que os torna tão peculiares é o fato
de os personagens estarem rodeados por signos das mais
diversas procedências. Nada acontece, realmente
– pelo simples fato de que tudo acontece. E não
se trata de narratividade mínima, tampouco de
disjunção narrativa: é preciso
esquecer esse tipo de conceito para começar a
se aproximar de um filme como Água Fria
(ou Paris se Levanta, ou Irma Vep,
ou demonlover...). Eis um dos motivos pelos
quais a obra de Assayas possui menos admiradores do
que merece: seus filmes não se explicam nem pelos
jargões do cinema moderno e do cinema de autor
(o que afasta deles um público que só
se sente confortado quando reconhece certos traços
de “artista”) nem pelos quadros do cinema
comercial de grande público.
O esquema narrativo de Assayas é centrifugar
o filme e guardar apenas o sobrenadante, descartar tudo
que é sólido. A câmera, como decorrência
natural, é o dispositivo que flutua por essa
narrativa liquefeita, intensificando algumas de suas
regiões. Mais um diretor que reverbera a formulação
de Jean Mitry: enquanto a literatura parte de uma narrativa
e cria um mundo, ao cinema já é dado o
mundo – resta criar uma narrativa a partir dele
(1). Independentemente do seu tema central (que chega
a variar bastante de um trabalho para outro), qualquer
filme de Assayas é, também – no
que sua verve se assemelha à de Godard –,
um filme sobre o mundo. Feitos por alguém que
escreveu nos Cahiers du Cinéma na primeira metade
dos anos 80, esses filmes nunca esquecem de fazer eco
a alguns dos questionamentos-chave daquele momento.
Nesse sentido, sua obra é herdeira tanto do cinema
de Maurice Pialat quanto dos escritos de Serge Daney
(que já proclamava o “ver o mundo através
do cinema”). Filmes como Irma Vep,
demonlover e Clean assumem seu pertencimento
(e o de seus personagens) a um regime de circulação
de imagens em que a função editorial (que
escolhe, decupa, analisa) perde força diante
da inextensão do campo que elas ocupam, criando
uma aparente aleatoriedade da qual depende, no fundo,
uma importante função de continuidade.
Muito antes de provocar reinícios, as enormes
elipses de Clean são análogas
àquelas de Destinos Sentimentais: não
importa o que aconteça, basta saltar no tempo
e perceber que... a vida continua. Apesar das referências
à cultura pop, Clean nada tem de assunto
para “entendidos”; é o filme que
ele faz com mais cara de “vida e nada mais”
desde Fim de Agosto, Começo de Setembro.
Clean almeja – e conquista em grande
parte – a difícil posição
de filme ultrapensado-e-ainda-assim-emotivo, vindo a
se somar ao corpus estético do “plano-conceito
sentimental” (2). Um filme de rock sem distorção.
Um filme de drogas sem hype. Uma personagem
cujo percurso “espiritual” comanda a narrativa
discretamente, sem que notemos os pontos precisos de
sua mudança de vida. Se há um mérito
particular de Assayas na consolidação
desse intento? Para ter certeza, basta imaginar como
seria o Clean de Danny Boyle. Ou o de Michael
Winterbottom. Felizmente Assayas filma de outro jeito.
Os melhores momentos de Clean são parecidos
com os melhores momentos de todos os seus filmes pregressos:
a câmera perseguindo Emily (a personagem de Maggie
Cheung que está em nove a cada dez planos do
filme) desde o salão do restaurante chinês
até o estacionamento onde ela acenderá
um cigarro (com a música de Brian Eno provocando
um efeito siderante), a festa em que a performance da
banda de rock é mais etérea do que visceral
(ao mesmo tempo continuação e contraponto
à seqüência da festa em Água
Fria – melhor seqüência já
filmada por Assayas? –, na qual cada acorde é
uma rebelião declarada), o sorriso tímido
de Maggie Cheung quando reencontra o filho (contenção
de expressões comum a quase todas as personagens
femininas de Assayas), as conversas com Nick Nolte filmadas
por uma câmera que realiza um campo/contra-campo
deslizante (é muito raro ele filmar um plano
estático).
Já era possível notar, nos últimos
filmes do diretor, uma constatação pessoal:
o homem precisa amadurecer. Se antes a adolescência
parecia dilatada ao máximo na vida dos seus personagens
masculinos (do que Jean-Pierre Léaud em Paris
se Levanta é o melhor exemplo), Fim
de Agosto, Começo de Setembro já
aponta para uma transição que é
tão inexorável quanto o avanço
do calendário anual. Os anos passam, a vida muda
e na sua esteira vem a responsabilidade. Daí
a atitude completamente pé-atrás de Assayas
em relação ao estatuto da imagem na contemporaneidade
em demonlover, um filme feito com a ousadia empírica
de um “filho”, mas com a palavra final plena
da responsabilidade de um “pai”. Curiosa
postura para um cineasta que muitas vezes se mostra
porta-voz da geração pós-rock (que
basicamente desconhece o que seria uma concepção
teleológica do mundo), essa fase recente talvez
se resuma à questão de passar a pensar
pelo prisma da descendência: o mundo agora construído
será herdado por outra geração.
É justamente numa relação mãe-filho
que o enredo da regeneração invade sua
obra: para rever seu filho, Emily decide se livrar das
drogas, re-perspectivar sua vida. Do céu incendiado
do início ao horizonte azul-claro do final, o
filme afirma nitidamente seu processo de “limpeza”.
Embora já tenha recebido críticas que
sugerem esses termos, contudo, Assayas está longe
de ter reavivado o academicismo enfadonho do cinéma
de papa (expressão que Truffaut utilizava
para se referir à “tradição
de qualidade” que tanto combatia nos anos 50).
Seu cinema permanece obstinado na captação
de uma força de vida que a câmera busca
sentir quase de dentro (e o trabalho realizado ao lado
de Maggie Cheung em Clean não é
para qualquer um).
É tremendamente
fácil encontrar ressonâncias de outros
cineastas na obra de Assayas; o incomum é alguém
identificar onde começa o cinema dele próprio.
Trata-se de um cineasta que teve uma formação
estética abrangente, adepto de uma nova cinefagia,
por conta da ampliação da oferta de imagens.
Perfeitamente compreensível a inclusão
de Shinji Aoyama (diretor de Eureka) nos agradecimentos
finais de demonlover: ele também faz
um cinema que aponta para uma disponibilidade estética
tão maior quanto menor é sua capacidade
de organizá-la racionalmente, como se houvesse
uma infinidade de formas instantaneamente utilizáveis,
mas um número limitado de molduras a comportá-las.
Embalados por Sonic Youth (demonlover) ou por
Jim O’Rourke solo (Eureka), os cinemas
de Assayas e Aoyama comprovam que, no ambiente contemporâneo,
a circulação de signos excede a circulação
de “processos significantes”, e a produção
de afetos é mais determinante que a produção
de discursos. Por isso a colocação da
música se dá sempre no cerne da composição
das cenas em Assayas: seu cinema não vive sem
o poder da música de catalisar sensações
puras. E Clean atende ainda mais a esse princípio,
pois estruturalmente ele se apresenta como um filme-partitura.
Para quem aprende a sua linguagem, a partitura contém
virtualmente a música, basta lê-la e senti-la.
Clean é mais ou menos isso: ouvir uma
música que está amortecida em uma superfície
plana. Assayas já soube impregnar nossos ouvidos
com maior intensidade, sem dúvida, mas sua nova
música merece também destaque: bonita
e calma.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
1. “O romance é
uma narrativa que se organiza em mundo, o filme um mundo
que se organiza em narrativa”, in Esthétique
et psychologie du cinema (Jean Mitry, 1965)
2. cf. Olivier Joyard, “C’est
quoi ce plan (la suite)?” (Cahiers nº 580,
pós-Cannes 2003)
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