CLEAN
Olivier Assayas, França/Canadá/Inglaterra, 2004

Une nouvelle vie

Quando acaba um filme de Olivier Assayas, sempre fica a impressão de que havia um mundo de coisas acontecendo, mas ainda assim nada acontecia. Se seus filmes são coletâneas de casualidades, são amontoados de encontros, passeios e diálogos que pouco parecem significar, o que os torna tão peculiares é o fato de os personagens estarem rodeados por signos das mais diversas procedências. Nada acontece, realmente – pelo simples fato de que tudo acontece. E não se trata de narratividade mínima, tampouco de disjunção narrativa: é preciso esquecer esse tipo de conceito para começar a se aproximar de um filme como Água Fria (ou Paris se Levanta, ou Irma Vep, ou demonlover...). Eis um dos motivos pelos quais a obra de Assayas possui menos admiradores do que merece: seus filmes não se explicam nem pelos jargões do cinema moderno e do cinema de autor (o que afasta deles um público que só se sente confortado quando reconhece certos traços de “artista”) nem pelos quadros do cinema comercial de grande público.

O esquema narrativo de Assayas é centrifugar o filme e guardar apenas o sobrenadante, descartar tudo que é sólido. A câmera, como decorrência natural, é o dispositivo que flutua por essa narrativa liquefeita, intensificando algumas de suas regiões. Mais um diretor que reverbera a formulação de Jean Mitry: enquanto a literatura parte de uma narrativa e cria um mundo, ao cinema já é dado o mundo – resta criar uma narrativa a partir dele (1). Independentemente do seu tema central (que chega a variar bastante de um trabalho para outro), qualquer filme de Assayas é, também – no que sua verve se assemelha à de Godard –, um filme sobre o mundo. Feitos por alguém que escreveu nos Cahiers du Cinéma na primeira metade dos anos 80, esses filmes nunca esquecem de fazer eco a alguns dos questionamentos-chave daquele momento. Nesse sentido, sua obra é herdeira tanto do cinema de Maurice Pialat quanto dos escritos de Serge Daney (que já proclamava o “ver o mundo através do cinema”). Filmes como Irma Vep, demonlover e Clean assumem seu pertencimento (e o de seus personagens) a um regime de circulação de imagens em que a função editorial (que escolhe, decupa, analisa) perde força diante da inextensão do campo que elas ocupam, criando uma aparente aleatoriedade da qual depende, no fundo, uma importante função de continuidade. Muito antes de provocar reinícios, as enormes elipses de Clean são análogas àquelas de Destinos Sentimentais: não importa o que aconteça, basta saltar no tempo e perceber que... a vida continua. Apesar das referências à cultura pop, Clean nada tem de assunto para “entendidos”; é o filme que ele faz com mais cara de “vida e nada mais” desde Fim de Agosto, Começo de Setembro.

Clean almeja – e conquista em grande parte – a difícil posição de filme ultrapensado-e-ainda-assim-emotivo, vindo a se somar ao corpus estético do “plano-conceito sentimental” (2). Um filme de rock sem distorção. Um filme de drogas sem hype. Uma personagem cujo percurso “espiritual” comanda a narrativa discretamente, sem que notemos os pontos precisos de sua mudança de vida. Se há um mérito particular de Assayas na consolidação desse intento? Para ter certeza, basta imaginar como seria o Clean de Danny Boyle. Ou o de Michael Winterbottom. Felizmente Assayas filma de outro jeito. Os melhores momentos de Clean são parecidos com os melhores momentos de todos os seus filmes pregressos: a câmera perseguindo Emily (a personagem de Maggie Cheung que está em nove a cada dez planos do filme) desde o salão do restaurante chinês até o estacionamento onde ela acenderá um cigarro (com a música de Brian Eno provocando um efeito siderante), a festa em que a performance da banda de rock é mais etérea do que visceral (ao mesmo tempo continuação e contraponto à seqüência da festa em Água Fria – melhor seqüência já filmada por Assayas? –, na qual cada acorde é uma rebelião declarada), o sorriso tímido de Maggie Cheung quando reencontra o filho (contenção de expressões comum a quase todas as personagens femininas de Assayas), as conversas com Nick Nolte filmadas por uma câmera que realiza um campo/contra-campo deslizante (é muito raro ele filmar um plano estático).

Já era possível notar, nos últimos filmes do diretor, uma constatação pessoal: o homem precisa amadurecer. Se antes a adolescência parecia dilatada ao máximo na vida dos seus personagens masculinos (do que Jean-Pierre Léaud em Paris se Levanta é o melhor exemplo), Fim de Agosto, Começo de Setembro já aponta para uma transição que é tão inexorável quanto o avanço do calendário anual. Os anos passam, a vida muda e na sua esteira vem a responsabilidade. Daí a atitude completamente pé-atrás de Assayas em relação ao estatuto da imagem na contemporaneidade em demonlover, um filme feito com a ousadia empírica de um “filho”, mas com a palavra final plena da responsabilidade de um “pai”. Curiosa postura para um cineasta que muitas vezes se mostra porta-voz da geração pós-rock (que basicamente desconhece o que seria uma concepção teleológica do mundo), essa fase recente talvez se resuma à questão de passar a pensar pelo prisma da descendência: o mundo agora construído será herdado por outra geração. É justamente numa relação mãe-filho que o enredo da regeneração invade sua obra: para rever seu filho, Emily decide se livrar das drogas, re-perspectivar sua vida. Do céu incendiado do início ao horizonte azul-claro do final, o filme afirma nitidamente seu processo de “limpeza”. Embora já tenha recebido críticas que sugerem esses termos, contudo, Assayas está longe de ter reavivado o academicismo enfadonho do cinéma de papa (expressão que Truffaut utilizava para se referir à “tradição de qualidade” que tanto combatia nos anos 50). Seu cinema permanece obstinado na captação de uma força de vida que a câmera busca sentir quase de dentro (e o trabalho realizado ao lado de Maggie Cheung em Clean não é para qualquer um).

É tremendamente fácil encontrar ressonâncias de outros cineastas na obra de Assayas; o incomum é alguém identificar onde começa o cinema dele próprio. Trata-se de um cineasta que teve uma formação estética abrangente, adepto de uma nova cinefagia, por conta da ampliação da oferta de imagens. Perfeitamente compreensível a inclusão de Shinji Aoyama (diretor de Eureka) nos agradecimentos finais de demonlover: ele também faz um cinema que aponta para uma disponibilidade estética tão maior quanto menor é sua capacidade de organizá-la racionalmente, como se houvesse uma infinidade de formas instantaneamente utilizáveis, mas um número limitado de molduras a comportá-las. Embalados por Sonic Youth (demonlover) ou por Jim O’Rourke solo (Eureka), os cinemas de Assayas e Aoyama comprovam que, no ambiente contemporâneo, a circulação de signos excede a circulação de “processos significantes”, e a produção de afetos é mais determinante que a produção de discursos. Por isso a colocação da música se dá sempre no cerne da composição das cenas em Assayas: seu cinema não vive sem o poder da música de catalisar sensações puras. E Clean atende ainda mais a esse princípio, pois estruturalmente ele se apresenta como um filme-partitura. Para quem aprende a sua linguagem, a partitura contém virtualmente a música, basta lê-la e senti-la. Clean é mais ou menos isso: ouvir uma música que está amortecida em uma superfície plana. Assayas já soube impregnar nossos ouvidos com maior intensidade, sem dúvida, mas sua nova música merece também destaque: bonita e calma.

Luiz Carlos Oliveira Jr.



1. “O romance é uma narrativa que se organiza em mundo, o filme um mundo que se organiza em narrativa”, in Esthétique et psychologie du cinema (Jean Mitry, 1965)

2. cf. Olivier Joyard, “C’est quoi ce plan (la suite)?” (Cahiers nº 580, pós-Cannes 2003)