Se
"uma mentira contada mil vezes torna-se uma verdade"
é um ditado que procede, então ele poderia
ser perfeitamente aplicado à obra de Clint Eastwood,
situada num estranho limiar entre o regrado cinema narrativo
convencional e a expansão de fronteiras que caracterizaria
um cinema experimental. Pois se o cinema clássico-narrativo
representa aquele apego ao naturalismo "mentiroso",
em que tudo o que há de mais falso e artificial
se faria passar por uma verdade aos olhos do espectador,
em oposição ao realismo do cinema moderno
que buscaria revelar uma verdade do mundo, Clint, ao
aderir tão intimamente a este cinema clássico,
a todos os seus paradigmas e codificações,
com total paixão e sem questionamentos, atinge
um ponto em que uma verdade se faz revelar através
de todos os artifícios. O mundo está ali
refletido com extrema intensidade exatamente porque
a crença em todos aqueles paradigmas de representação
ultrapassa sua utilização apenas como
modelo recorrente. O cinema clássico encontra-se,
em suas mãos, esgarçado a um limite, tendo
sua resistência testada, assim como sua abrangência
e sua capacidade de expansão. O importante é
acreditar na capacidade de contar histórias e
de contar e recontar as mesmas histórias, de
voltar sempre às ficções americanas
da família e da violência, que pautaram
não apenas a História da América,
como a História do cinema americano. Quais seriam
as possibilidades de afeto e de constituição
familiar numa terra cujo batismo foi em sangue? Sangue
de índios e de colonos, de confederados e de
federais, de gângsteres e de assassinos, de inocentes
e de policiais.
Se como diz David Bordwell em The Classical Hollywood
Style, 1917-60, o modelo clássico-narrativo
prevê a incorporação de traços
estilísticos pessoais, apresentando razoável
maleabilidade e abertura para rompimentos moderados
de seus paradigmas, Clint seria aquele que provavelmente
melhor compreendeu a natureza deste cinema, talvez exatamente
por respirá-lo tão intensamente. Ele parece
oscilar entre a consciência e a não-consciência
das regras que regem o modelo, entre a auto-consciência
do seu fazer cinematográfico e o entregar-se
por completo ao prazer da narrativa. Cada plano de sua
decupagem é capaz de revelar esta situação
limítrofe: se planos gerais, planos americanos,
planos médios, e planos de conjunto se sucedem
de forma a organizar as histórias ordenadamente
no tempo e no espaço, planos detalhes inesperados,
angulações estranhas e iluminações
incomuns nos surpreendem freqüentemente. Um pouco
como se o filme tentasse por suas imagens escapar das
histórias que ele conduz, enquanto sentidos insuspeitos
são sugeridos a todo instante de fruição,
mas escorrem pelos cortes que separam os planos. Como
se o amor pela imagem pudesse transmitir algo além
desse mundo ficcional que acontece pelas ações
dos personagens. Este mundo americano calcado na grande
ficção da liberdade, ameaçada a
todo instante pelo mal, que espreita.
São questões diretamente ligadas à
gênese da América que pautam as entranhas
dos filmes de Eastwood. A formação de
núcleos comunitários (não necessariamente
"familiares" ao pé da letra), na base
da idéia de "nação";
a infância que é a semente do futuro desta
nação (prenunciado como grande); a violência
que não escolhe razão, motivo, lugar nem
hora pra nascer (como se fosse um dado inerente do próprio
processo civilizatório, que violenta inexoravelmente
a terra).
O pacto de carinho mútuo entre Frankie e Maggie
em Menina de Ouro, consolidado pela prática
da agressividade e selado por um gesto de violência
extrema; a amizade e o companheirismo de Terry e Phillip,
originados por um ato violento e atravessados pela constante
sensação de perigo e de apreensão
pelos comportamentos um do outro, em Um Mundo Perfeito;
a confiança de Steve em Frank Beachum e vice-versa,
perpassada por uma ação brutal cuja materialidade
parece ter-se evaporado e por outra tornada absolutamente
concreta por uma rígida estrutura estatal, em
Crime Verdadeiro; a amizade de Jimmy, Dave e
Sean rodeada por uma violência disseminada organicamente
de forma quase não-palpável, envolvendo
os atos de todos, espalhando-se por todos os cantos,
vindo à tona onde menos esperada, em Sobre
Meninos e Lobos, são alguns dos exemplos
da forma como Clint substancializa as questões
supracitadas no âmago dos gêneros cinematográficos
hollywoodianos. Seja no faroeste, no filme policial
ou de suspense, no romance ou no drama, há este
quê que ultrapassa o narrar da história,
que faz-se presente e vivo muito mais do que a categoria
"assunto" poderia supor, que pulsa para além
das ações concretas que pautam o que Deleuze
chamaria de autêntica "imagem-movimento".
Como se o objetivo do narrar não fosse os acontecimentos,
mas o que os acontecimentos são capazes de transmitir
(e não de "revelar"). Mas, em última
instância, o que há são apenas acontecimentos.
Acontecimentos que se dão dentro de um molde
de gênero narrativo.
É como se Clint, firmemente situado no interior
do "cinema americano", deslizasse o tempo
inteiro, escorregasse a cada plano estruturado na cadeia
narrativa para o limite no qual a ação
deixaria de ser ação pura para se vestir
de reflexão sobre a ação. Experiência
limítrofe com as sensações e sentimentos
que o modelo clássico é capaz de suscitar
na sua narratividade, seus filmes traduzem uma autêntica
paixão por este cinema ficcional de longa história,
consolidado como a grande realização americana.
Durável e indestrutível, sólido
e potente, repetitivo e ambicioso, sedutor e cativante.
Tatiana Monassa
* http://www.brightlightsfilm.com/47/clint.htm
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