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No mesmo ano em que Gus Van Sant fazia com Elefante
seu quebra-cabeça sobre os acontecimentos de Columbine
e suas repercussões sociais, Joel Surnow e Robert Cochran
lançavam o segundo ano da série 24/24 Horas,
tomando uma direção totalmente diferente do
primeiro ano da série, baseado sobretudo em relações
familiares. No segundo ano, a presença de uma bomba
nuclear prestes a explodir em solo americano é o pretexto
para refletir e fazer retornar em forma de ficção
uma série de fenômenos típicos dos Estados
Unidos pós-11 de setembro. Não apenas um clima
de paranóia e as simplificações de "Bush
is wrong", mas todo um ambiente em que o capital corporativo
cria conspirações políticas, em que o
terrorismo apátrida é desculpa vagabunda para
invadir países cheios de petróleo, em que terríveis
cenas de tortura fazem parte do cotidiano político
e, por fim, em que é dentro do próprio território
americano que se encontra o mal que é atribuído
ao outro (o estrangeiro). 24 Horas, temporada 2, é
de forma mais sinfônica e grandiosa ou com repertório
menos "erudito" o Elefante de 11 de
setembro: sobrepõe ao dado histórico um princípio
estético e faz reviver de outra forma aquilo que jamais
poderia ser vivido da mesma forma com o mesmo vigor.
Isso para quê? Simplesmente para mostrar que, no terreno
do audiovisual, foi uma série de televisão,
e não um filme ou grupo de filmes (dentre os quais
há diversos interessantes, os de Robert Greenwald e
William Karrel sendo muito melhores do que os de Greg Palast
e Michael Moore, isso para não falar nos reflexos patéticos
de filmes como Tróia ou Alexandre) que
mais e melhor conseguiu refletir um estado de espírito
e um regime de tensão americanos na ressaca dos ataques
terroristas ao World Trade Center e ao Pentágono. E
não é só num caso extremo de comoção
social que a série toma o lugar que o cinema já
ocupou: tanto nas próprias tradições
de gênero, comédia principalmente, é a
série que vem se portando como laboratório de
ponta, e o cinema apenas segue a onda. Se há alguns
anos a série já batia à porta e dizia
que ela precisava ser observada com mais carinho e atenção,
hoje em dia é impossível uma fazer uma avaliação
do terreno audiovisual sem uma minuciosa análise das
séries americanas mais importantes do ponto de vista
estético e/ou político-social.
O que remete à questão maior, ou ao menos a
uma questão igualmente decisiva ne geopolítica
do cinema: a força da ficção americana,
sua pregnância nas formas de contar histórias
através do audiovisual e suas formas de mitificar determinadas
vivências (que é indissociável, resta
dizer, de um complexo econômico e político de
diastribuição mundial). Junto a isso, há
filmes desgarrados da ideologia oficial, mas que carregam
com seu estilo uma carga dessa tradição mais-que-americana
de superação, e tentam ver nesse contexto a
fissura, a falha que volta a tragar o mundo e a arte de volta
para um mundo de sombras e incertezas. Nesse mês, dois
grandes filmes americanos entram em cartaz quase simultaneamente:
O Aviador de Martin Scorsese e Menina de Ouro
de Clint Eastwood. Ambos carregam em si a efígie da
superação e seu reverso, o estigma do herói
mas também seu limite. Dois mundos muito diferentes,
mas que juntos parecem testemunhar através da expressão
e da narrativa um certo mal-estar dos tempos modernos, escorando-se
ou num passado recente (Scorsese) ou num relato aparentemente
atemporal (Eastwood). Filmes sem deus, mas também filmes
em que a experiência do homem como deus deu errado.
Junto com as séries mais interessantes 24
Horas, Deadwood, Friends, A Família
Soprano , esses filmes trabalham em cima de uma
série de aspectos da vida americana e conseguem introduzir,
em modelos ao mesmo tempo originais e populares, novos questionamentos
para a imagem e para o mundo. Seria essa última frase
uma possível explicação de por que o
cinema nos interessa? Ao menos, certamente, é nossa
aposta...
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