Menina de Ouro de Clint Eastwood (2004)
O Aviador de Martin Scorsese (2004)
24 Horas de Joel Surnow e Robert Cochran (2002)
A recém-lançada coleção de DVDs com filmes de Jerry Lewis é a principal atração da seção DVD/VHS nesse mês.
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No mesmo ano em que Gus Van Sant fazia com Elefante seu quebra-cabeça sobre os acontecimentos de Columbine e suas repercussões sociais, Joel Surnow e Robert Cochran lançavam o segundo ano da série 24/24 Horas, tomando uma direção totalmente diferente do primeiro ano da série, baseado sobretudo em relações familiares. No segundo ano, a presença de uma bomba nuclear prestes a explodir em solo americano é o pretexto para refletir e fazer retornar em forma de ficção uma série de fenômenos típicos dos Estados Unidos pós-11 de setembro. Não apenas um clima de paranóia e as simplificações de "Bush is wrong", mas todo um ambiente em que o capital corporativo cria conspirações políticas, em que o terrorismo apátrida é desculpa vagabunda para invadir países cheios de petróleo, em que terríveis cenas de tortura fazem parte do cotidiano político e, por fim, em que é dentro do próprio território americano que se encontra o mal que é atribuído ao outro (o estrangeiro). 24 Horas, temporada 2, é de forma mais sinfônica e grandiosa – ou com repertório menos "erudito" – o Elefante de 11 de setembro: sobrepõe ao dado histórico um princípio estético e faz reviver de outra forma aquilo que jamais poderia ser vivido da mesma forma com o mesmo vigor.

Isso para quê? Simplesmente para mostrar que, no terreno do audiovisual, foi uma série de televisão, e não um filme ou grupo de filmes (dentre os quais há diversos interessantes, os de Robert Greenwald e William Karrel sendo muito melhores do que os de Greg Palast e Michael Moore, isso para não falar nos reflexos patéticos de filmes como Tróia ou Alexandre) que mais e melhor conseguiu refletir um estado de espírito e um regime de tensão americanos na ressaca dos ataques terroristas ao World Trade Center e ao Pentágono. E não é só num caso extremo de comoção social que a série toma o lugar que o cinema já ocupou: tanto nas próprias tradições de gênero, comédia principalmente, é a série que vem se portando como laboratório de ponta, e o cinema apenas segue a onda. Se há alguns anos a série já batia à porta e dizia que ela precisava ser observada com mais carinho e atenção, hoje em dia é impossível uma fazer uma avaliação do terreno audiovisual sem uma minuciosa análise das séries americanas mais importantes do ponto de vista estético e/ou político-social.

O que remete à questão maior, ou ao menos a uma questão igualmente decisiva ne geopolítica do cinema: a força da ficção americana, sua pregnância nas formas de contar histórias através do audiovisual e suas formas de mitificar determinadas vivências (que é indissociável, resta dizer, de um complexo econômico e político de diastribuição mundial). Junto a isso, há filmes desgarrados da ideologia oficial, mas que carregam com seu estilo uma carga dessa tradição mais-que-americana de superação, e tentam ver nesse contexto a fissura, a falha que volta a tragar o mundo e a arte de volta para um mundo de sombras e incertezas. Nesse mês, dois grandes filmes americanos entram em cartaz quase simultaneamente: O Aviador de Martin Scorsese e Menina de Ouro de Clint Eastwood. Ambos carregam em si a efígie da superação e seu reverso, o estigma do herói mas também seu limite. Dois mundos muito diferentes, mas que juntos parecem testemunhar através da expressão e da narrativa um certo mal-estar dos tempos modernos, escorando-se ou num passado recente (Scorsese) ou num relato aparentemente atemporal (Eastwood). Filmes sem deus, mas também filmes em que a experiência do homem como deus deu errado.

Junto com as séries mais interessantes – 24 Horas, Deadwood, Friends, A Família Soprano –, esses filmes trabalham em cima de uma série de aspectos da vida americana e conseguem introduzir, em modelos ao mesmo tempo originais e populares, novos questionamentos para a imagem e para o mundo. Seria essa última frase uma possível explicação de por que o cinema nos interessa? Ao menos, certamente, é nossa aposta...

     
  Ruy Gardnier