DE I LOVE LUCY A DESPERATE HOUSEWIVES
Notas sobre a história das séries americanas de tv

Retomando um velho hábito

Se a história da TV no Brasil confunde-se com a história das telenovelas, no caso da TV americana, as séries semanais configuram-se como seu principal produto de consumo no mercado interno e, em especial, para os demais países do mundo. Quase tanto quanto o cinema, não se deve negar seu potencial de produto de exportação e divulgação da cultura de seu país. Quem cresceu vendo televisão durante as décadas de 1960 e 1970 foi bombardeado com fortes influências daqueles que se convencionou denominar "enlatados" em seus mais diversos formatos, incluíndo séries cômicas, dramáticas, de aventura e de animação.

A partir do final dos anos 70, a estabilização de uma produção brasileira, principalmente através da TV Globo, que a essa altura já exercia seu quase monopólio como rede nacional, fez diminuir o espaço que ela e conseqüentemente as demais emissoras dedicaram aos seriados norte-americanos. A própria Globo, inclusive, veio a preencher, durante algum tempo, uma faixa de programação com suas próprias séries semanais (Plantão de Polícia, Malu Mulher e outras). Raros foram os "enlatados" nos anos 80 a gozaram de alguma popularidade ou mesmo exibição regular no Brasil. Hart to Hart (Casal 20), McGyver (Profissão Perigo), Moonlighting (A Gata e o Rato) ou Alf (Alf – o Eteimoso) foram algumas das raríssimas exceções, mas mesmo assim eram quase sempre tratados como curinga ou tapa-buraco na programação, sem que fosse respeitada uma seqüência cronológica nos episódios. Vale também destacar que nenhum desses programas podem ser incluídos entre o que as networks dos EUA produziram de mais expressivo no período. Só para ficar num exemplo, o mais importante seriado cômico dos anos 80, Cheers, jamais foi apresentado em TVs abertas por aqui.

Ao longo da década de 1990, uma série de eventos fez com que, gradativamente, o público brasileiro – ou ao menos uma determinada fatia desse público – viesse a retomar o hábito de assistir e até mesmo discutir as séries americanas. O mais importante deles, é claro, foi a chegada das emissoras a cabo, com sua ampla variedade de canais e seu descompromisso com uma audiência homogênea e hegemônica a nível nacional, que criou um espaço natural para a divulgação das séries, respeitando uma coisa que as emissoras brasileira sempre pareceram ignorar: uma ordem lógica e seqüencial nos episódios. Isso fez tornar mais claro o verdadeiro massacre que a Globo em especial perpetrou em suas últimas tentativas de exibir séries americanas em horário nobre nos anos 90: a obra-prima Twin Peaks e as importantes NYPD Blue (Nova York Contra o Crime) e ER (Plantão Médico). Descobriu-se tambem a importância dos programas serem assistidos em som original com legendas, o que, em especial no caso das comédias, faz-se essencial para sua fruição mais intensa.

Outro evento importante remonta ainda a uma série exibida pela Globo, mas no horário da tarde. Lançada em 1990 nos EUA e chegando ao Brasil pouco tempo depois, Beverly Hills 90210 (Barrados no Baile), se não lança o tema, consolida um espaço nas séries diretamente dedicadas ao público adolescente. Depois de um longo tempo, um "enlatado" voltou às ordens do dia. São os jovens e adolescentes, naturalmente devido ao seu maior tempo livre, os primeiros a redescobrir os seriados e a torná-los novamente assunto de conversa, antes que fatias de um público mais adulto viessem também a abraçar esses e outros programas do gênero. Nota-se que até hoje são as séries de maior penetração em um público jovem – como Dawson’s Creek, Friends ou That 70’s Show - algumas das que, mesmo nas sucessivas reprises, conquistam os melhores índices de audiência nas TVs a cabo. A respeito de Bevwerly Hills 90210 vale também lembrar que essa apresenta uma característica marcante das séries que se desenvolveram desde então: uma seqüência de dependência narrativa entre os episódios, dentro da lógica das novelas e folhetins. Ao contrário das séries mais antigas, onde os episódios contavam histórias independentes, quase todas as séries a partir da década de 90 são fortemente amarradas em ordem cronológica, o que acaba por requerer do espectador um maior compromisso de acompanhá-las com fidelidade.

Finalmente, o principal fator na descoberta da importância das séries da TV americana é, além de uma maior variedade temática nos programas, o marcante salto de qualidade, com programas a seu modo inovadores, que parecem conjugar roteiros inteligentes e até mesmo alguns graus de experimentalismo. Seinfeld é um marco indiscutível, com sua narrativa entrecruzada e personagens que são tudo menos um modelo de conduta. Antes disso outro marco fora Twin Peaks que deixou clara a amplitude de possibilidades daquilo que poderia ser realizado dentro da batida fórmula dos episódios semanais de 30 ou 60 minutos. As séries dramáticas, por sua vez, vieram a ser aos poucos impregnadas de um realismo que por vezes beira a crueza – leia-se principalmente CSI.

O fato de emissoras a cabo – em especial a HBO – passarem a produzir seus próprios seriados abre um novo leque que traz programas até certo ponto livres de uma forte censura interna das networks com os seriados incluindo palavrões e cenas fortes de sexo e violência, sem que tal se configure com apelação. Muito pelo contrário, séries dentro dessa linha – The Sopranos (Família Soprano), Six Feet Under(A Sete Palmos) e Deadwood – incluem-se certamente entre o que de melhor já existiu em matéria de dramaturgia para a TV. As inovações vieram a se extender até as séries de ação e 24 (24 Horas) com seu instigante exercício de interminável sucessão de clímaxes e sua narrativa em tempo "real" é um dos programas que, juntamente aos citados acima, mais colaborou para que os seriados da televisão americana se tornassem finalmente alvo de intensa discussão, estudos e crítica quanto à sua importância, fazendo com que estes primeiros anos do século XXI já tenham sido chamados de "era de ouro das séries". Não somente pela qualidade dos programas, mas também pelo fato de muito dizerem sobre a cultura e sociedade americana. Mas até que aqui chegássemos, um longo caminho teve de ser percorrido.

As orígens: anos 50 e 60

O modelo das séries diárias da TV americana como hoje conhecemos ficou consagrado a partir dos anos 1950, quando a TV passou a ocupar o lugar do rádio como principal entretenimento doméstico da população americana. Foi nesse período que se definiu, inclusive, as distinções entre o tempo de duração dos programas e que persistem até hoje: drama ou aventura, 1 hora (ou 46 minutos, descontando o tempo dos comerciais); comédias, meia-hora (na prática, 23 minutos). Os programas ressaltavam os cânones do american way of life, na época em seu auge, com a estabilidade do sonho da classe média americana e sua mentalidade conservadora. Eram comuns os programas sobre uma família com o pai provedor exemplar, a mãe dona-de-casa, os filhos bem comportados e o destaque entre eles foi Father Knows Best (Papai Sabe Tudo). Os seriados de ação ressaltavam uma fidelidade na lei e na justiça, que deveriam ser cumpridas e mantidas a qualquer custo, principalmente nos modelos populares do policial – Dragnet, protagonizado pelo zeloso e incorruptível detetive Joe Friday – do programa de advogados – Perry Mason – e do western – os longevos Gunsmoke e Bonanza.

O maior marco da década, no entanto, foi aquela que pode ser definida como a mãe de todas as comédias-de-situação, ou sitcoms: I Love Lucy, que estreou em 1951. Os protagonistas, um casal, dentro de um modelo bem conservador, como seria de se esperar. Desi Arnaz e Lucile Ball, repetiam o matrimônio da vida real em sua série, onde o marido, um produtor artístico, era sempre envolvido pelas trapalhadas de sua mulher, desajeitada e doidivanas. Mas o amor dos dois a tudo superava. Foi essa série quem definiu praticamente toda a gramática do gênero, inclusive no que se refere à gravação dos episódios ao vivo perante uma claque, cujas risadas gravadas são reproduzidas durante a exibição, persistente até hoje na grande maioria das sitcoms. Outro destaque entre as séries cômicas do período foi The Honeymooners (1955), com Jackie Gleason e Art Carney, que introduziu um pouco de uma abordagem irônica e amarga no universo "água-com-açúcar" das comédias de então.

Pouco se alterou no panorama, ao menos na primeira metade da década de 60. As comédias seguiam ressaltando os valores da família na qual homem e mulher ocupavam cada seu devido lugar – The Dick Van Dyke Show, Bewitched (A Feiticeira), e mesmo I Dream of Jeannie (Jeannie é um Gênio), onde mesmo não configurando um casal convencional, Jeannie tudo fazia para conquistar o amor de seu "amo", o Major Nelson. Nas séries dramáticas, em sua maioria persistia o maniqueísmo.

Nessa década destacaram-se as séries de ficção científica, capitaneadas pelo sucesso de The Twilight Zone (Alem da Imaginação), criada por Rod Sterling em 1959, com episódios isolados que abriam espaço para um comentário crítico sobre a sociedade de então, mergulhada na paranóia da guerra fria. Esse contexto fantástico acabou funcionando como pretexto para que outras séries se aprofundassem em alguns temas mais ousados, como The Invaders (Os Invasores) ou mesmo a mais importante e influente delas: Star Trek (Jornada nas Estrelas), que Gene Rodenberry lançou em 1966. Menos ambiciosas, mas igualmente marcantes foram Lost in Space (Perdidos no Espaço) e os programas de Irwin Allen: Voyage to the Bottom of the Sea (Viagem ao Fundo do Mar), Land of the Giants (Terra de Gigantes) e Time Tunnel (O Tunel do Tempo).

O advento da cultura pop não passou despercebido e veio mesmo aflorar na TV na segunda metade dessa década com as comédias, onde parecia haver um maior espaço para que fossem testadas inovações. Nesse momento surge Batman com seu exagero camp. E também The Monkees, que une a linguagem dos filmes que Richard Lester dirigiu com os Beatles a um psicodelismo então emergente. E o fenômeno James Bond inspirou Buck Henry e Mel Brooks a gerarem a melhor série cômica da década, Get Smart (Agente 86). Vale lembrar que todos os programas citados nesse parágrafo fogem ao modelo de sitcom gravado ao vivo.

Entre inovações e caretice: anos 70 e 80

Passando à década de 70, as comédias continuaram mantendo seu papel de vanguarda quanto à temática, com três indiscutíveis destaques. The Mary Tyler Moore Show (1970) foi pioneira em lançar uma protagonista feminina solteira, trabalhadora e independente. All in the Family (1971) subverte o modelo do pai de família de conduta irrepreensível com seu protagonista Archie Bunker (Carroll O’Connor), um velho consevador, mesquinho e preconceituoso ao extremo, que residia com a esposa ingênua, a filha volúvel e o genro encostado. Foi a primeira sitcom a abordar temas considerados sérios, como crise de meia-idade e o racismo não disfarçado de Archie; apesar de não ter sido exibida no Brasil, serviu de modelo para que a Globo desenvolvesse o projeto original de A Grande Família. Finalmente MASH (1972), herdada do cinema e que criticava a instuição militar em pleno período da guerra no Vietnã. Mas este programa resistiu ao advento da guerra e se fixou no imaginário das platéias norte-americanas, ficando no ár durante 11 temporadas. Seu episódio final se mantém há mais de 20 anos como um recorde insuperável de audiência.

Os seriados policiais passam a apresentar também alguma evolução, principalmente no que se refere ao perfil dos protagonistas, que se distanciam um pouco do caráter inflexível do herói de Dragnet. Os detetives de Kojak, Baretta, Starsky & Huich (Justiça em Dobro) ou The Rockford Files (Arquivo Confidencial) absorvem a malícia e a malandragem das ruas e os episódios, antes calcados em investigações cerebrais, incorporam o rítmo ágil a as perseguições de filmes como Bullit, Operação França ou Perseguidor Implacável. Surge também o correspondente a The Mary Tyler Moore Show nas séries de ação: Charlie’s Angels (As Panteras), com belas mulheres como heroínas que não se furtavam em fazer uso da sensualidade no cumprimento de suas missões.

Com a eleição de Reagan para Casa Branca, as séries cômicas parecem passar a refletir essa nova onda de conservadorismo. Praticamente todas as sitcoms dos anos 80 retomam os valores de família e seus episódios terminam com alguma forma de "lição de vida". É o período de The Cosby Show, Family Ties (Caras e Caretas), The Golden Girls (Super Gatas) e Roseanne. Como já foi dito, a melhor sitcom da década e uma das maiores de todos os tempos - só perdendo, a meu ver, para Seinfeld – foi Cheers. Esta começou seguindo o modelo moralista de suas contemporâneas, com as frustradas investidas de Sam Malone (Ted Danson em atuações inacreditáveis), ex-jogador de beisebol, dono de bar e alcoólatra recuperado, para conquistar Diane (Shelley Long), sua garçonete e eterna estudante universitária. Com a saída de Diane após a 4ͺ temporada e a chegada de uma nova gerente, Rebecca (Kirstie Alley), o seriado abraça o espírito de deboche e molecagem coerente com seu cenário – um botequim de Boston – e mergulha num humor levemente insano com personagens inesquecíveis: a mal-humorada garçonete Carla (Rhea Perlman), o barman Woody (Woody Harrelson), os biriteiros Norm (George Wendt) e Cliff (John Ratzenberger) e o psiquiatra Frasier (Kelsey Grammer). Este, após a saída do ár de Cheers, ao fim da 11ͺ temporada, ganhou sua própria e também excelente série, já em 1993.

A década de 80 marca também o aparecimento, em 1981, de um programa policial considerado revolucionário por apresentar uma linguagem mais crua e menos maniqueísta, que somente se consolidaria de forma definitiva nos anos 90. Hill Street Blues (Chumbo Grosso) narra o cotidiano de uma delegacia localizada em um bairro pobre de Nova York, com seus policiais, uns mais, outros menos honestos. Um dos primeiros seriados a ser levado a sério como objeto de crítica, não gozou da mesma repercussão com o público da era Reagan e não teve uma longa permanência. Aqui no Brasil, mantendo-se o hábito, foi mal-lançado e pouco depois assassinado pela Globo, ficando depois perdido nas exibições irregulares de emissoras menores. Melhor destino teve Miami Vice (1984) que incorporou a linguagem fragmentada dos videoclipes em ascenção na década de 80, lançando moda com seus cenários glamurosos e figurinos característicos de seus detetives mauricinhos.

O panorama se expande: anos 90

Chega 1990. Ano de estréia de Twin Peaks e Seinfeld. Daí prá frente, o panorama das séries jamais será o mesmo de antes. Sobre a primeira, há sempre muita coisa a ser dita. David Lynch e Mark Frost levam o barco da TV americana a mares nunca dantes navegados. Um seriado à frente não somente da sua, mas de qualquer época. Mesmo com o fracasso de público da segunda temporada, sua herança concretizou-se à longo prazo, expandindo gradativamente às fronteiras das temáticas a serem abordadas pelas séries. Seu primeiro filho dileto surge em 1992, Picket Fences, que reproduz, de forma mais palatável, o universo da degradação oculta por trás das pequenas cidades.

Seinfeld apareceu sem o mesmo impacto inicial de Twin Peaks. Um piloto independente em 1989. Primeira e segunda temporadas curtas, lançadas como tapa-buraco na programação de férias da NBC. Ao longo delas, os criadores Larry David e Jerry Seinfeld, como também os atores Michael Richards (Kramer), Julia Louis-Dreyfuss (Elaine) e Jason Alexander (George), roteiristas (Larry Charles, Elaine Pope e outros) e o diretor Tom Cherones foram lentamente azeitando uma fórmula absolutamente pioneira, que ao longo da 3ͺ temporada, que foi de 1991 a 1992, então no horário nobre, já estava perfeitamente estabelecida com todo o seu brilho. Foi uma aposta ousada da emissora, insistir em um programa de características absolutamente diversas ao que era feito em sitcoms e que começou com uma audiência inexpressiva. A descoberta pelo público veio aos poucos, e com a chegada da 4ͺ temporada, Seinfeld ocupa seu merecido lugar entre os líderes de audiência da TV americana – donde jamais viria a sair até seu final, em maio de 1998 – mandando às favas toda a correção política e o moralismo que imperava nas séries que o antecederam. Seus roteiros elaboradíssimos e o rítmo ágil dos episódios deixaram marca em tudo o que foi feito em matéria de sitcom nos anos seguintes.

De uma forma ou de outra, quase todas as séries daí para a frente têm um pouco de Seinfeld. Como Friends (1994), que retoma de forma mais convencional e com personagens mais jovens a idéia de um grupo de amigos morando em Nova York. O universo das sitcoms passa a ser também um objeto referencial para as novas séries cômicas, com muitas delas atualizando para o contexto de suas épocas as antigas fórmulas. Ou não seria Mad About You (1992), com as desventuras e trapalhadas de um casal, uma versão de I Love Lucy para os anos 90? Importantíssima é também Everybody Loves Raymond (1996), que inverte a idéia dos seriados-família e seus modelos de retidão de comportamento, trabalhando um humor cuja graça vem justamete da exploração das falhas de caráter de suas personagens. Devemos, também lembrar que, já nessa época, sopram ventos liberalizantes do governo democrata de Bill Clinton, o que tornou possível uma chegada da franca abordagem da temática homossexual ao universo das sitcoms. Primeiro com Ellen, cuja protagonista interpretada pela atriz lésbica Ellen DeGeneres assume sua condição gay num episódio de 1997. Mesmo que a temporada seguinte de Ellen não tenha sido bem aceita pelo o público, sendo, consequentemente, cancelada, abriram-se as portas para o sucesso de Will and Grace (1998), que, na verdade, não passa de uma espécie de variação bem menos inspirada de Seinfeld, protagonizada por quatro amigos hedonistas, cujos dois representantes do sexo masculino são homossexuais.

Antes de seguir avante, devemos regressar no tempo a 1989, ano que esteou aquela que é, atualmente, a mais antiga série ainda em cartaz no horário nobre americano: The Simpsons, fazendo esquecer que desenho é coisa de criança. Esse genial programa de Matt Groening estabeleceu-se como nada menos que um tratado de todos os temas possíveis e imagináveis, concernentes não somente à cultura americana, mais a todo o mundo. Se algo ou alguém ainda não foi alvo do deboche dos Simpsons, provavelmente um dia o será. É impressionante como a série consegue manter-se por tanto tempo – está agora na 16ͺ temporada – com uma qualidade média tão homogêneamante elevada. E quanto mais passam os anos, mais seus criadores vão rompendo barreiras, indo, inclusive na contra-corrente do conservadorismo dominante na política americana recente, e que tem justamente na emissora que exibe o programa – a Fox – um de seus baluartes. Exemplo disso vem da chegada da notícia que um episódio recém-exibido nos EUA (ainda inédito no Brasil) aborda casamentos homossexuais e a saída do armário de uma das irmàs de Marge. Na cola dos Simpsons, floresceram, também, diversos outros desenhos animados com temática adulta, dentre os quais o destaque vai para o escracho absoluto de South Park (1997).

Como sempre, as mudanças nos seriados dramáticos vêm de forma mais lenta, e somente na primeira metade da década de 90 os programas policiais abraçaram a crueza de linguagem de Hill Street Blues. O mesmo criador, Steven Bocchio, repete sua fórmula, com melhor êxito de audiência, em NYPD Blue (Nova York Contra o Crime) (1993), que, assim como Homicide: Life in the Street (Homicídio), também de 1993, contrasta com o maniqueísmo persistente em Law and Order (Lei e Ordem) (1990). Essa abordagem de temas mais crua e seca, à qual incorporam-se personagens de caráter dúbio, foi também abraçada pelos programas protagonizados por médicos, vistos até então como santos habitando a Terra, mas não completamente endeusados em E.R. (Plantão Médico) e Chicago Hope, ambos lançados em 1994. The Practice (O Desafio) (1997) propõe uma operação similar para com o universo do sistema judiciário. Não devemos também esquecer do marcante retorno à ficção científica paranóica dos anos 60, The X-Files (Arquivo-X) (1993), que com seu carisma conquistou uma fiel legião de fãs e exerceu também importante contribuição para a repopularização das séries americanas no Brasil.

A ampliação do mercado de TV a cabo faz com que o canal HBO diversifique suas atividades, deixando de ser um mero exibidor de filmes e partindo para a produção própria de seus filmes e séries. A primeira delas a se destacar foi The Larry Sanders Show (1992), satirizando os bastidores dos talk shows e recebendo como convidados personalidades que interpretavam a si mesmas. Logo após o término dessa última, em 1988, o HBO lança outra comédia que, mesmo com circulação restrita a assinantes, atinge uma repercussão digna da TV aberta: Sex and the City. Apesar de um tratamento demasiado estilizado e superficial do universo feminino, o quarteto de dondocas novaiorquinas marca época, ganhando espaço e discussão na mídia. O êxito do modelo de comédias da HBO indica um certo cansaço da sitcom tradicional, com risadas gravadas. A linguagem se aproxima do modelo mais cinematográfico dos dramas e se expande aos canais abertos. Ally McBeal (1997) prescinde do formato clássico e inova, absorvendo o nonsense dos desenhos animados e se firmando como uma rara série cômica com episódios de uma hora. Outra sitcom pouco convencional surgida nessa linha é Malcom in the Middle (1999).

Em busca da realidade: a virada para o novo século

O HBO tráz também em 1999 outra atração que iria ampliar definitivamente o universo de discussão das séries: The Sopranos (Família Soprano), que muito deve ao filme Os Bons Companheiros, de Martin Scorsese. Capo de uma quadrilha mafiosa de segunda-linha, Tony Soprano (James Gandolfini) se divide entre o universo violento do crime organizado e o cotidiano de um chefe de família suburbana comum, com direito a crises matrimoniais e psicológicas que o levam a frequentar o consultório de uma psicoterapeuta. Também um retrato de uma família pouco convencional é a outra série da HBO a causar impressão tão ou mais intensa que The Sopranos, Six Feet Under (A Sete Palmos) (2001), com os irmãos Fischer lutando para manter sua agência funerária após a morte do pai. As duas séries configuram o ápice do gênero, o que para muito contribuiu o formato HBO de temporadas de tamanho reduzido (13 episódios). Este torna cada capítulo passível de um acabamento artesanal mais rebuscado, que os aproxima de pequenos filmes, com roteiros muito bem amarrados e direção que por vezes transcende os limites da eficiência televisiva. A recente Deadwood (2004) tende a seguir a mesma linha de qualidade.

Com a virada para o século XXI, as emissoras de TV passam a se ver infestadas por um novo produto que conquista as audiências e parece roubar a atenção das séries semanais: os reality shows. Para encarar a concorrência, os produtores passam a impregnar suas séries de um realismo que acaba se aliando a uma maior sofisticação, resultando em progrmas de inegável apelo e qualidade. CSI (2000) leva aos píncaros uma crueza realista, reproduzindo com verossimilhança os mórbidos detalhes das investigações de um grupo de legistas. Em 2001 surgem 24 (24 Horas), composto por episódios de uma hora que somados representam um dia de desespero e ação vertiginosa na vida de um agente federal, e Alias, trabalhando o universo ilusório da espionagem. The Shield (2002) chega ao limite de se apresentar como um seriado policial cujo "herói" é um detetive absolutamente corrupto. Nip/Tuck (2003) retrata o ambiente perverso e glamuroso de uma clínica de cirurgia plástica em Miami mostrando detalhes dos procedimentos nela realizados. Mesmo o a princípio pouco atraente tema do cotidiano da equipe que trabalha nas funções burocráticas da Casa Branca rende o idealizado, mas interessante The West Wing (1999).

Até as séries cômicas passam a trabalhar um universo próximo ao dos reality shows. Larry David, principal força criadora por trás de Seinfeld, radicaliza elementos de sua proposta anterior, interpretando a si próprio em Curb Your Enthusiasm (Segura a Onda) (2000), do HBO. Arrested Development (2003) tem seus episódios narrados como um quase-documentário sobre uma família sem princípios. Por outro lado, surge o primeiro sitcom protagonizado por uma família real, The Osbournes (2002).

A oferta de séries de interesse torna-se tão intensa que acompanhar todos os bons programas torna-se tarefa hercúlea. Como cantava Raul Seixas, "é tanta coisa no menu que eu não sei o que comer". Curioso é que, em meio a tão rico panorama, o grande sucesso da temporada 2004/2005, Desperate Housewives, parece indicar um retorno a um formato mais convencional e, a princípio, ultrapassado. Como o retrocesso ao conservadorismo que a própria América vem atravessando durante a gestão republicana de George W. Bush.

GIlberto Silva Jr.