Retomando um velho hábito
Se a história da TV no Brasil confunde-se com
a história das telenovelas, no caso da TV americana,
as séries semanais configuram-se como seu principal
produto de consumo no mercado interno e, em especial,
para os demais países do mundo. Quase tanto quanto
o cinema, não se deve negar seu potencial de
produto de exportação e divulgação
da cultura de seu país. Quem cresceu vendo televisão
durante as décadas de 1960 e 1970 foi bombardeado
com fortes influências daqueles que se convencionou
denominar "enlatados" em seus mais diversos
formatos, incluíndo séries cômicas,
dramáticas, de aventura e de animação.
A partir do final dos anos 70, a estabilização
de uma produção brasileira, principalmente
através da TV Globo, que a essa altura já
exercia seu quase monopólio como rede nacional,
fez diminuir o espaço que ela e conseqüentemente
as demais emissoras dedicaram aos seriados norte-americanos.
A própria Globo, inclusive, veio a preencher,
durante algum tempo, uma faixa de programação
com suas próprias séries semanais (Plantão
de Polícia, Malu Mulher e outras).
Raros foram os "enlatados" nos anos 80 a gozaram
de alguma popularidade ou mesmo exibição
regular no Brasil. Hart to Hart (Casal 20),
McGyver (Profissão Perigo),
Moonlighting (A Gata e o Rato) ou Alf
(Alf o Eteimoso) foram algumas das raríssimas
exceções, mas mesmo assim eram quase sempre
tratados como curinga ou tapa-buraco na programação,
sem que fosse respeitada uma seqüência cronológica
nos episódios. Vale também destacar que
nenhum desses programas podem ser incluídos entre
o que as networks dos EUA produziram de mais
expressivo no período. Só para ficar num
exemplo, o mais importante seriado cômico dos
anos 80, Cheers, jamais foi apresentado em TVs
abertas por aqui.
Ao longo da década de 1990, uma série
de eventos fez com que, gradativamente, o público
brasileiro ou ao menos uma determinada fatia desse
público viesse a retomar o hábito de
assistir e até mesmo discutir as séries
americanas. O mais importante deles, é claro,
foi a chegada das emissoras a cabo, com sua ampla variedade
de canais e seu descompromisso com uma audiência
homogênea e hegemônica a nível nacional,
que criou um espaço natural para a divulgação
das séries, respeitando uma coisa que as emissoras
brasileira sempre pareceram ignorar: uma ordem lógica
e seqüencial nos episódios. Isso fez tornar
mais claro o verdadeiro massacre que a Globo em especial
perpetrou em suas últimas tentativas de exibir
séries americanas em horário nobre nos
anos 90: a obra-prima Twin Peaks e as importantes
NYPD Blue (Nova York Contra o Crime) e
ER (Plantão Médico). Descobriu-se
tambem a importância dos programas serem assistidos
em som original com legendas, o que, em especial no
caso das comédias, faz-se essencial para sua
fruição mais intensa.
Outro evento importante remonta ainda a uma série
exibida pela Globo, mas no horário da tarde.
Lançada em 1990 nos EUA e chegando ao Brasil
pouco tempo depois, Beverly Hills 90210 (Barrados
no Baile), se não lança o tema,
consolida um espaço nas séries diretamente
dedicadas ao público adolescente. Depois de um
longo tempo, um "enlatado" voltou às
ordens do dia. São os jovens e adolescentes,
naturalmente devido ao seu maior tempo livre, os primeiros
a redescobrir os seriados e a torná-los novamente
assunto de conversa, antes que fatias de um público
mais adulto viessem também a abraçar esses
e outros programas do gênero. Nota-se que até
hoje são as séries de maior penetração
em um público jovem como Dawsons Creek,
Friends ou That 70s Show - algumas das
que, mesmo nas sucessivas reprises, conquistam os melhores
índices de audiência nas TVs a cabo. A
respeito de Bevwerly Hills 90210 vale também
lembrar que essa apresenta uma característica
marcante das séries que se desenvolveram desde
então: uma seqüência de dependência
narrativa entre os episódios, dentro da lógica
das novelas e folhetins. Ao contrário das séries
mais antigas, onde os episódios contavam histórias
independentes, quase todas as séries a partir
da década de 90 são fortemente amarradas
em ordem cronológica, o que acaba por requerer
do espectador um maior compromisso de acompanhá-las
com fidelidade.
Finalmente, o principal fator na descoberta da importância
das séries da TV americana é, além
de uma maior variedade temática nos programas,
o marcante salto de qualidade, com programas a seu modo
inovadores, que parecem conjugar roteiros inteligentes
e até mesmo alguns graus de experimentalismo.
Seinfeld é um marco indiscutível,
com sua narrativa entrecruzada e personagens que são
tudo menos um modelo de conduta. Antes disso outro marco
fora Twin Peaks que deixou clara a amplitude
de possibilidades daquilo que poderia ser realizado
dentro da batida fórmula dos episódios
semanais de 30 ou 60 minutos. As séries dramáticas,
por sua vez, vieram a ser aos poucos impregnadas de
um realismo que por vezes beira a crueza leia-se principalmente
CSI.
O fato de emissoras a cabo em especial a HBO passarem
a produzir seus próprios seriados abre um novo
leque que traz programas até certo ponto livres
de uma forte censura interna das networks com
os seriados incluindo palavrões e cenas fortes
de sexo e violência, sem que tal se configure
com apelação. Muito pelo contrário,
séries dentro dessa linha The Sopranos (Família
Soprano), Six Feet Under(A Sete Palmos) e
Deadwood incluem-se certamente entre
o que de melhor já existiu em matéria
de dramaturgia para a TV. As inovações
vieram a se extender até as séries de
ação e 24 (24 Horas) com seu instigante
exercício de interminável sucessão
de clímaxes e sua narrativa em tempo "real"
é um dos programas que, juntamente aos citados
acima, mais colaborou para que os seriados da televisão
americana se tornassem finalmente alvo de intensa discussão,
estudos e crítica quanto à sua importância,
fazendo com que estes primeiros anos do século
XXI já tenham sido chamados de "era de ouro
das séries". Não somente pela qualidade
dos programas, mas também pelo fato de muito
dizerem sobre a cultura e sociedade americana. Mas até
que aqui chegássemos, um longo caminho teve de
ser percorrido.
As orígens: anos 50 e 60
O modelo das séries diárias da TV americana
como hoje conhecemos ficou consagrado a partir dos anos
1950, quando a TV passou a ocupar o lugar do rádio
como principal entretenimento doméstico da população
americana. Foi nesse período que se definiu,
inclusive, as distinções entre o tempo
de duração dos programas e que persistem
até hoje: drama ou aventura, 1 hora (ou 46 minutos,
descontando o tempo dos comerciais); comédias,
meia-hora (na prática, 23 minutos). Os programas
ressaltavam os cânones do american way of life,
na época em seu auge, com a estabilidade do sonho
da classe média americana e sua mentalidade conservadora.
Eram comuns os programas sobre uma família com
o pai provedor exemplar, a mãe dona-de-casa,
os filhos bem comportados e o destaque entre eles foi
Father Knows Best (Papai Sabe Tudo). Os
seriados de ação ressaltavam uma fidelidade
na lei e na justiça, que deveriam ser cumpridas
e mantidas a qualquer custo, principalmente nos modelos
populares do policial Dragnet, protagonizado
pelo zeloso e incorruptível detetive Joe Friday
do programa de advogados Perry Mason e
do western os longevos Gunsmoke e Bonanza.
O maior marco da década, no entanto, foi aquela
que pode ser definida como a mãe de todas as
comédias-de-situação, ou sitcoms:
I Love Lucy, que estreou em 1951. Os protagonistas,
um casal, dentro de um modelo bem conservador, como
seria de se esperar. Desi Arnaz e Lucile Ball, repetiam
o matrimônio da vida real em sua série,
onde o marido, um produtor artístico, era sempre
envolvido pelas trapalhadas de sua mulher, desajeitada
e doidivanas. Mas o amor dos dois a tudo superava. Foi
essa série quem definiu praticamente toda a gramática
do gênero, inclusive no que se refere à
gravação dos episódios ao vivo
perante uma claque, cujas risadas gravadas são
reproduzidas durante a exibição, persistente
até hoje na grande maioria das sitcoms.
Outro destaque entre as séries cômicas
do período foi The Honeymooners (1955),
com Jackie Gleason e Art Carney, que introduziu um pouco
de uma abordagem irônica e amarga no universo
"água-com-açúcar" das
comédias de então.
Pouco se alterou no panorama, ao menos na primeira metade
da década de 60. As comédias seguiam ressaltando
os valores da família na qual homem e mulher
ocupavam cada seu devido lugar The Dick Van Dyke
Show, Bewitched (A Feiticeira), e
mesmo I Dream of Jeannie (Jeannie é
um Gênio), onde mesmo não configurando
um casal convencional, Jeannie tudo fazia para conquistar
o amor de seu "amo", o Major Nelson. Nas séries
dramáticas, em sua maioria persistia o maniqueísmo.
Nessa década destacaram-se as séries de
ficção científica, capitaneadas
pelo sucesso de The Twilight Zone (Alem da
Imaginação), criada por Rod Sterling
em 1959, com episódios isolados que abriam espaço
para um comentário crítico sobre a sociedade
de então, mergulhada na paranóia da guerra
fria. Esse contexto fantástico acabou funcionando
como pretexto para que outras séries se aprofundassem
em alguns temas mais ousados, como The Invaders (Os
Invasores) ou mesmo a mais importante e influente
delas: Star Trek (Jornada nas Estrelas),
que Gene Rodenberry lançou em 1966. Menos ambiciosas,
mas igualmente marcantes foram Lost in Space (Perdidos
no Espaço) e os programas de Irwin Allen:
Voyage to the Bottom of the Sea (Viagem ao
Fundo do Mar), Land of the Giants (Terra
de Gigantes) e Time Tunnel (O Tunel do
Tempo).
O advento da cultura pop não passou despercebido
e veio mesmo aflorar na TV na segunda metade dessa década
com as comédias, onde parecia haver um maior
espaço para que fossem testadas inovações.
Nesse momento surge Batman com seu exagero camp.
E também The Monkees, que une a linguagem
dos filmes que Richard Lester dirigiu com os Beatles
a um psicodelismo então emergente. E o fenômeno
James Bond inspirou Buck Henry e Mel Brooks a gerarem
a melhor série cômica da década,
Get Smart (Agente 86). Vale lembrar que
todos os programas citados nesse parágrafo fogem
ao modelo de sitcom gravado ao vivo.
Entre inovações e caretice: anos 70
e 80
Passando à década de 70, as comédias
continuaram mantendo seu papel de vanguarda quanto à
temática, com três indiscutíveis
destaques. The Mary Tyler Moore Show (1970) foi
pioneira em lançar uma protagonista feminina
solteira, trabalhadora e independente. All in the
Family (1971) subverte o modelo do pai de família
de conduta irrepreensível com seu protagonista
Archie Bunker (Carroll OConnor), um velho consevador,
mesquinho e preconceituoso ao extremo, que residia com
a esposa ingênua, a filha volúvel e o genro
encostado. Foi a primeira sitcom a abordar temas
considerados sérios, como crise de meia-idade
e o racismo não disfarçado de Archie;
apesar de não ter sido exibida no Brasil, serviu
de modelo para que a Globo desenvolvesse o projeto original
de A Grande Família. Finalmente MASH
(1972), herdada do cinema e que criticava a instuição
militar em pleno período da guerra no Vietnã.
Mas este programa resistiu ao advento da guerra e se
fixou no imaginário das platéias norte-americanas,
ficando no ár durante 11 temporadas. Seu episódio
final se mantém há mais de 20 anos como
um recorde insuperável de audiência.
Os seriados policiais passam a apresentar também
alguma evolução, principalmente no que
se refere ao perfil dos protagonistas, que se distanciam
um pouco do caráter inflexível do herói
de Dragnet. Os detetives de Kojak, Baretta,
Starsky & Huich (Justiça
em Dobro) ou The Rockford Files (Arquivo
Confidencial) absorvem a malícia e a malandragem
das ruas e os episódios, antes calcados em investigações
cerebrais, incorporam o rítmo ágil a as
perseguições de filmes como Bullit,
Operação França ou Perseguidor
Implacável. Surge também o correspondente
a The Mary Tyler Moore Show nas séries
de ação: Charlies Angels (As
Panteras), com belas mulheres como heroínas
que não se furtavam em fazer uso da sensualidade
no cumprimento de suas missões.
Com a eleição de Reagan para Casa Branca,
as séries cômicas parecem passar a refletir
essa nova onda de conservadorismo. Praticamente todas
as sitcoms dos anos 80 retomam os valores de
família e seus episódios terminam com
alguma forma de "lição de vida".
É o período de The Cosby Show,
Family Ties (Caras e Caretas), The
Golden Girls (Super Gatas) e Roseanne.
Como já foi dito, a melhor sitcom da década
e uma das maiores de todos os tempos - só perdendo,
a meu ver, para Seinfeld foi Cheers.
Esta começou seguindo o modelo moralista de suas
contemporâneas, com as frustradas investidas de
Sam Malone (Ted Danson em atuações inacreditáveis),
ex-jogador de beisebol, dono de bar e alcoólatra
recuperado, para conquistar Diane (Shelley Long), sua
garçonete e eterna estudante universitária.
Com a saída de Diane após a 4ͺ
temporada e a chegada de uma nova gerente, Rebecca (Kirstie
Alley), o seriado abraça o espírito de
deboche e molecagem coerente com seu cenário
um botequim de Boston e mergulha num humor levemente
insano com personagens inesquecíveis: a mal-humorada
garçonete Carla (Rhea Perlman), o barman Woody
(Woody Harrelson), os biriteiros Norm (George Wendt)
e Cliff (John Ratzenberger) e o psiquiatra Frasier (Kelsey
Grammer). Este, após a saída do ár
de Cheers, ao fim da 11ͺ temporada,
ganhou sua própria e também excelente
série, já em 1993.
A década de 80 marca também o aparecimento,
em 1981, de um programa policial considerado revolucionário
por apresentar uma linguagem mais crua e menos maniqueísta,
que somente se consolidaria de forma definitiva nos
anos 90. Hill Street Blues (Chumbo Grosso)
narra o cotidiano de uma delegacia localizada em um
bairro pobre de Nova York, com seus policiais, uns mais,
outros menos honestos. Um dos primeiros seriados a ser
levado a sério como objeto de crítica,
não gozou da mesma repercussão com o público
da era Reagan e não teve uma longa permanência.
Aqui no Brasil, mantendo-se o hábito, foi mal-lançado
e pouco depois assassinado pela Globo, ficando depois
perdido nas exibições irregulares de emissoras
menores. Melhor destino teve Miami Vice (1984)
que incorporou a linguagem fragmentada dos videoclipes
em ascenção na década de 80, lançando
moda com seus cenários glamurosos e figurinos
característicos de seus detetives mauricinhos.
O panorama se expande: anos 90
Chega 1990. Ano de estréia de Twin Peaks e
Seinfeld. Daí prá frente, o panorama
das séries jamais será o mesmo de antes.
Sobre a primeira, há sempre muita coisa a ser
dita. David Lynch e Mark Frost levam o barco da TV americana
a mares nunca dantes navegados. Um seriado à
frente não somente da sua, mas de qualquer época.
Mesmo com o fracasso de público da segunda temporada,
sua herança concretizou-se à longo prazo,
expandindo gradativamente às fronteiras das temáticas
a serem abordadas pelas séries. Seu primeiro
filho dileto surge em 1992, Picket Fences, que
reproduz, de forma mais palatável, o universo
da degradação oculta por trás das
pequenas cidades.
Já Seinfeld apareceu sem o mesmo impacto
inicial de Twin Peaks. Um piloto independente
em 1989. Primeira e segunda temporadas curtas, lançadas
como tapa-buraco na programação de férias
da NBC. Ao longo delas, os criadores Larry David e Jerry
Seinfeld, como também os atores Michael Richards
(Kramer), Julia Louis-Dreyfuss (Elaine) e Jason Alexander
(George), roteiristas (Larry Charles, Elaine Pope e
outros) e o diretor Tom Cherones foram lentamente azeitando
uma fórmula absolutamente pioneira, que ao longo
da 3ͺ temporada, que foi de 1991 a 1992,
então no horário nobre, já estava
perfeitamente estabelecida com todo o seu brilho. Foi
uma aposta ousada da emissora, insistir em um programa
de características absolutamente diversas ao
que era feito em sitcoms e que começou
com uma audiência inexpressiva. A descoberta pelo
público veio aos poucos, e com a chegada da 4ͺ
temporada, Seinfeld ocupa seu merecido lugar
entre os líderes de audiência da TV americana
donde jamais viria a sair até seu final, em
maio de 1998 mandando às favas toda a correção
política e o moralismo que imperava nas séries
que o antecederam. Seus roteiros elaboradíssimos
e o rítmo ágil dos episódios deixaram
marca em tudo o que foi feito em matéria de sitcom
nos anos seguintes.
De uma forma ou de outra, quase todas as séries
daí para a frente têm um pouco de Seinfeld.
Como Friends (1994), que retoma de forma mais
convencional e com personagens mais jovens a idéia
de um grupo de amigos morando em Nova York. O universo
das sitcoms passa a ser também um objeto
referencial para as novas séries cômicas,
com muitas delas atualizando para o contexto de suas
épocas as antigas fórmulas. Ou não
seria Mad About You (1992), com as desventuras
e trapalhadas de um casal, uma versão de I
Love Lucy para os anos 90? Importantíssima
é também Everybody Loves Raymond (1996),
que inverte a idéia dos seriados-família
e seus modelos de retidão de comportamento, trabalhando
um humor cuja graça vem justamete da exploração
das falhas de caráter de suas personagens. Devemos,
também lembrar que, já nessa época,
sopram ventos liberalizantes do governo democrata de
Bill Clinton, o que tornou possível uma chegada
da franca abordagem da temática homossexual ao
universo das sitcoms. Primeiro com Ellen,
cuja protagonista interpretada pela atriz lésbica
Ellen DeGeneres assume sua condição gay
num episódio de 1997. Mesmo que a temporada
seguinte de Ellen não tenha sido bem aceita
pelo o público, sendo, consequentemente, cancelada,
abriram-se as portas para o sucesso de Will and Grace
(1998), que, na verdade, não passa de uma espécie
de variação bem menos inspirada de Seinfeld,
protagonizada por quatro amigos hedonistas, cujos dois
representantes do sexo masculino são homossexuais.
Antes de seguir avante, devemos regressar no tempo a
1989, ano que esteou aquela que é, atualmente,
a mais antiga série ainda em cartaz no horário
nobre americano: The Simpsons, fazendo esquecer
que desenho é coisa de criança. Esse genial
programa de Matt Groening estabeleceu-se como nada menos
que um tratado de todos os temas possíveis e
imagináveis, concernentes não somente
à cultura americana, mais a todo o mundo. Se
algo ou alguém ainda não foi alvo do deboche
dos Simpsons, provavelmente um dia o será.
É impressionante como a série consegue
manter-se por tanto tempo está agora na 16ͺ
temporada com uma qualidade média tão
homogêneamante elevada. E quanto mais passam os
anos, mais seus criadores vão rompendo barreiras,
indo, inclusive na contra-corrente do conservadorismo
dominante na política americana recente, e que
tem justamente na emissora que exibe o programa a
Fox um de seus baluartes. Exemplo disso vem da chegada
da notícia que um episódio recém-exibido
nos EUA (ainda inédito no Brasil) aborda casamentos
homossexuais e a saída do armário de uma
das irmàs de Marge. Na cola dos Simpsons,
floresceram, também, diversos outros desenhos
animados com temática adulta, dentre os quais
o destaque vai para o escracho absoluto de South
Park (1997).
Como sempre, as mudanças nos seriados dramáticos
vêm de forma mais lenta, e somente na primeira
metade da década de 90 os programas policiais
abraçaram a crueza de linguagem de Hill Street
Blues. O mesmo criador, Steven Bocchio, repete sua
fórmula, com melhor êxito de audiência,
em NYPD Blue (Nova York Contra o Crime)
(1993), que, assim como Homicide: Life in the Street
(Homicídio), também de 1993,
contrasta com o maniqueísmo persistente em Law
and Order (Lei e Ordem) (1990). Essa abordagem
de temas mais crua e seca, à qual incorporam-se
personagens de caráter dúbio, foi também
abraçada pelos programas protagonizados por médicos,
vistos até então como santos habitando
a Terra, mas não completamente endeusados em
E.R. (Plantão Médico) e
Chicago Hope, ambos lançados em 1994.
The Practice (O Desafio) (1997) propõe
uma operação similar para com o universo
do sistema judiciário. Não devemos também
esquecer do marcante retorno à ficção
científica paranóica dos anos 60, The
X-Files (Arquivo-X) (1993), que com seu carisma
conquistou uma fiel legião de fãs e exerceu
também importante contribuição
para a repopularização das séries
americanas no Brasil.
A ampliação do mercado de TV a cabo faz
com que o canal HBO diversifique suas atividades, deixando
de ser um mero exibidor de filmes e partindo para a
produção própria de seus filmes
e séries. A primeira delas a se destacar foi
The Larry Sanders Show (1992), satirizando os
bastidores dos talk shows e recebendo como convidados
personalidades que interpretavam a si mesmas. Logo após
o término dessa última, em 1988, o HBO
lança outra comédia que, mesmo com circulação
restrita a assinantes, atinge uma repercussão
digna da TV aberta: Sex and the City. Apesar
de um tratamento demasiado estilizado e superficial
do universo feminino, o quarteto de dondocas novaiorquinas
marca época, ganhando espaço e discussão
na mídia. O êxito do modelo de comédias
da HBO indica um certo cansaço da sitcom
tradicional, com risadas gravadas. A linguagem se aproxima
do modelo mais cinematográfico dos dramas e se
expande aos canais abertos. Ally McBeal (1997)
prescinde do formato clássico e inova, absorvendo
o nonsense dos desenhos animados e se firmando
como uma rara série cômica com episódios
de uma hora. Outra sitcom pouco convencional
surgida nessa linha é Malcom in the Middle
(1999).
Em busca da realidade: a virada para o novo século
O HBO tráz também em 1999 outra atração
que iria ampliar definitivamente o universo de discussão
das séries: The Sopranos (Família
Soprano), que muito deve ao filme Os Bons Companheiros,
de Martin Scorsese. Capo de uma quadrilha mafiosa
de segunda-linha, Tony Soprano (James Gandolfini) se
divide entre o universo violento do crime organizado
e o cotidiano de um chefe de família suburbana
comum, com direito a crises matrimoniais e psicológicas
que o levam a frequentar o consultório de uma
psicoterapeuta. Também um retrato de uma família
pouco convencional é a outra série da
HBO a causar impressão tão ou mais intensa
que The Sopranos, Six Feet Under (A Sete Palmos)
(2001), com os irmãos Fischer lutando para manter
sua agência funerária após a morte
do pai. As duas séries configuram o ápice
do gênero, o que para muito contribuiu o formato
HBO de temporadas de tamanho reduzido (13 episódios).
Este torna cada capítulo passível de um
acabamento artesanal mais rebuscado, que os aproxima
de pequenos filmes, com roteiros muito bem amarrados
e direção que por vezes transcende os
limites da eficiência televisiva. A recente Deadwood
(2004) tende a seguir a mesma linha de qualidade.
Com a virada para o século XXI, as emissoras
de TV passam a se ver infestadas por um novo produto
que conquista as audiências e parece roubar a
atenção das séries semanais: os
reality shows. Para encarar a concorrência,
os produtores passam a impregnar suas séries
de um realismo que acaba se aliando a uma maior sofisticação,
resultando em progrmas de inegável apelo e qualidade.
CSI (2000) leva aos píncaros uma crueza
realista, reproduzindo com verossimilhança os
mórbidos detalhes das investigações
de um grupo de legistas. Em 2001 surgem 24 (24
Horas), composto por episódios de uma hora
que somados representam um dia de desespero e ação
vertiginosa na vida de um agente federal, e Alias,
trabalhando o universo ilusório da espionagem.
The Shield (2002) chega ao limite de se
apresentar como um seriado policial cujo "herói"
é um detetive absolutamente corrupto. Nip/Tuck
(2003) retrata o ambiente perverso e glamuroso
de uma clínica de cirurgia plástica em
Miami mostrando detalhes dos procedimentos nela realizados.
Mesmo o a princípio pouco atraente tema do cotidiano
da equipe que trabalha nas funções burocráticas
da Casa Branca rende o idealizado, mas interessante
The West Wing (1999).
Até as séries cômicas passam a trabalhar
um universo próximo ao dos reality shows.
Larry David, principal força criadora por trás
de Seinfeld, radicaliza elementos de sua proposta
anterior, interpretando a si próprio em Curb
Your Enthusiasm (Segura a Onda) (2000), do
HBO. Arrested Development (2003) tem seus episódios
narrados como um quase-documentário sobre uma
família sem princípios. Por outro lado,
surge o primeiro sitcom protagonizado por uma
família real, The Osbournes (2002).
A oferta de séries de interesse torna-se tão
intensa que acompanhar todos os bons programas torna-se
tarefa hercúlea. Como cantava Raul Seixas, "é
tanta coisa no menu que eu não sei o que comer".
Curioso é que, em meio a tão rico panorama,
o grande sucesso da temporada 2004/2005, Desperate
Housewives, parece indicar um retorno a um formato
mais convencional e, a princípio, ultrapassado.
Como o retrocesso ao conservadorismo que a própria
América vem atravessando durante a gestão
republicana de George W. Bush.
GIlberto Silva Jr.
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