UM CAMINHO POR ENTRE AS SÉRIES
Questões, problemas e problemáticas

1. Um primeiro problema: numa série, quem é o autor? Quem é aquele que detém a síntese dos múltiplos esforços expressivos fornecidos pelos membros da equipe? Não é tão simples assim. Se no cinema, mesmo a partir das limitações de liberdade impostas pelos produtores – e, por vezes, por atores ou fotógrafos –, o diretor é aquele que realiza o discurso e o sentido de um filme, pois nele se encerram as decisões visuais do que entra ou não no plano, e de como se organiza aquilo que entra no quadrado da câmera. Numa série, a criação é partilhada. Os diretores e os roteiristas são contratados, há produtores de set e produtores executivos, mas parece que a única figura que coordena todas as etapas do processo e confere a elas um sentido propriamente estético é a figura do criador da série. O criador não é só um mentor do projeto, alguém que imagina os personagens, o meio, as relações: é também alguém que supervisiona o que é escrito e montado, e dá as cartas naquilo que é dirigido. Mesmo que o criador não seja o homem que dirige os atores e diz "ação" para começar a rodar, é dele a síntese de sentido e cabe a ele, em quase todos os aspectos, a criação de um universo. Uma única brecha: o estilo visual.

2. E é por isso que geralmente todo piloto de série, ou ao menos os pilotos das séries mais importantes, é dado a alguém que entra em completa sintonia com o mundo que os criadores têm em mente. Para 24 Horas, por exemplo, Joel Surnow e Robert Cochran chamaram Stephen Hopkins para inventar a "cartilha" da série: um conjunto de procedimentos de estilo de enquadramento e montagem que todos os diretores, a partir daquele momento, deverão seguir (não à toa, alguns dos episódios mais decisivos da primeira temporada voltam a ser dirigidos por Hopkins). Para Deadwood, David Milch contou com Walter Hill para a gramática básica de como a câmera percorre o espaço, como a luz é captada, como os atores são dirigidos. Em alguns casos, são os próprios criadores ou produtores executivos que aparecem para dirigir o piloto: o mais que notório caso de Twin Peaks para David Lynch, mas também John Landis para Dream On. Não existe uma metáfora fácil, adaptável do universo do cinema, para que possamos fazer as correlações. O criador não é o produtor, não é o roteirista, não é o diretor. E tampouco o diretor do piloto assume uma função característica do cinema (a não ser os casos excepcionais, como os filmes de Harry Potter, em que a escritora Rowling funciona um pouco como criadora e os diretores, Columbus ou Cuarón). Na maioria dos casos, existe uma bipartição de autoria, pendendo para os criadores: eles montam todo o tecido expressivo, mas cabe aos diretores encontrar a linguagem visual na qual os diretores dos episódios seguintes vão se basear para dar continuidade estilística à série.

3. O que entra numa outra problemática, a dos diretores contratados para seguir uma certa linha mestra. Serão eles meros executores ou conseguirão eles imprimir algo de pessoal em relação ao formato da série? Seu talento se mede na eficiência com a qual cumprem um padrão estabelecido ou na forma como se distanciam da norma? Há sempre vários graus. Assim, é possível considerar que o diretor do capítulo em que o seqüestrador da filha de Jack Bauer é assassinado por seu superior na primeira temporada de 24 Horas é um mau diretor, não só porque ele se permite algumas liberdades estilísticas que não estavam na cartilha (zooms espetaculosos sendo o principal), mas sobretudo porque essa "contribuição" casa mal com a gramática adquirida, ao contrário de melhorar o estilo da série. Mas, claro, é possível conceber contribuições que funcionem bem e sirvam como episódios específicos com um estilo que é feito uma vez e jamais retomado (episódio de Tarantino em ER), ou como um estilo que a série possa vir a considerar como padrão posteriormente. Ainda se está longe de se chegar a uma aproximação metodológica do estudo da direção em séries, mas é importante que se comece: não são poucos diretores que fizeram episódios de séries e se envolveram em gramáticas mais ou menos estritas de composição. Abel Ferrara (Miami Vice), David Cronenberg (a série Sexta-Feira 13), Gerd Oswald (A Quinta Dimensão), entre outros, tiveram que se adequar a formatos estabelecidos de série e dirigir episódios.

4. São questões a se colocar quando se analisa uma dessas emissões: a câmera frenética, o split-screen charmoso, a forma como a câmera está sempre atrasada em relação aos personagens no modo como as novidades transcorrem em 24 Horas – devemos isso a Surnow & Cochran ou a Hopkins? A pouca iluminação, vindo sempre da lateral, a pouca utilização de maquiagem, a interpretação contida e tensa em Deadwood – Walter Hill ou David Milch? Claro que grande parte do interesse dessas séries se dá fora do domínio de estilo visual – as circunvoluções de cada personagem em ambas as séries, o ritmo de 24 Horas, ou a relação com a iconografia do oeste americano, os hábitos e a maneira de falar em Deadwood, por exemplo.

5. Outro dado a se ter em mente é que, diferentemente da maior parte das produções americanas, as séries se fazem na correria, e em algumas ocasiões um episódio é dirigido sem que o quinto episódio à frente tenha sequer sido escrito. Isso é um dado a se levar em conta, assim como o tamanho da temporada, os padrões e as facilidades de produção. É diferente dar coerência e sentido de integralidade a dez horas de produção disseminadas entre diversos roteiristas e diretores diferentes de fazer o mesmo com um produto de duas horas dirigido por uma pessoa só. Como em geral as séries não são pensadas pelos diretores com muito tempo de antecedência, o espaço para certos detalhes é sensivelmente menor em relação aos filmes (ou, ao menos, em relação aos melhores filmes), o que serve menos de desculpa do que dá um valor suplementar a determinadas séries com padrão superior de produção, como as da HBO (A Sete Palmos, A Família Soprano, Deadwood).

6. Terreno ainda instável para avaliações definitivas de estilo, narrativa e quetais, a série americana vive um apogeu de formas e temas de um período clássico que ainda não se tornou auto-consciente: sonho da época de ouro dos estúdios hollywoodianos, regressão pós-cinema moderno? Antes uma nova experiência da crença cinematográfica e um convívio com uma recuperação do gênero que fazem falta no cotidiano das salas de cinema hoje em dia, viciadas que estão (a se ver nos filmes de terror, por exemplo) nos jogos de esperteza com o espectador. Momento privilegiado porque recupera, depois do modernismo e de seu pós, um instante de crença sem necessidade de aceder a um neo-classicismo que recalca a idade da imagem. A imagem se problematiza na surdina, disfarçada de mero veículo de entretenimento. Hora para o começo de uma nova política dos autores?

Ruy Gardnier