Pré-estréia
de Hell’s Angels. Howard Hughes, ao lado de Jean
Harlow, assiste ao filme, apreensivo. Exibido na janela
1.37:1, como era a única possibilidade para o
cinema sonoro em 1930, Scorsese, no entanto, através
de discreto zoom in, traz o acalentado projeto
de Hughes para o formato utilizado em O Aviador,
o 2.35:1. Ao transformar Hell’s Angels do fullscreen
para o scope, Martin Scorsese resume a tensão
sobre a qual se respeita sua carreira, entre o respeito
e o culto à tradição cinematográfica
da Hollywood clássica e a modernidade experimental,
que ele herda de diretores tais quais Luchino Visconti,
Max Ophüls e Stanley Kubrick, a qual emerge no
pós-Segunda Guerra Mundial com o fortalecimento
de métodos independentes de produção.
Unindo posições em aparência antagônicas,
está o amor ímpar do cineasta pela sétima
arte pela imagem fílmica.
Martin Scorsese se diverte com a anedota sobre o encontro
de Stanley Kubrick com Frank Capra: "Senhor Capra, seus
filmes são maravilhosos, pena que a realidade
não seja como eles", teria dito o então
enfant terrible ao veterano cineasta. Em O
Aviador, Scorsese, de fato, realiza a ponte entre
ambos, através de duas seqüências:
na primeira, o encontro de Hughes com a família
de Katharine Hepburn parece saído diretamente
de Do Mundo Nada Se Leva, enquanto, na segunda,
os homens ameaçadores que o paranóico
magnata observa, após o vôo com sucesso
do Hércules, remetem ao final de O Grande
Golpe.
Da tradição à modernidade, dos
EUA idealizado pelo cinema clássico do studio
system hollywoodiano à América "real"
mostrada com o surgimento de uma geração
de realizadores independentes, nas décadas de
50 e 60, capitaneados por Kubrick e por Cassavetes,
aos quais se seguiram, nos anos 70, os cineastas da
"nouvelle vague americana", constituída, além
do próprio Scorsese, de Francis Coppola, Terrence
Malick, Brian De Palma, Michael Cimino, George Lucas,
Steven Spielberg, entre outros, que tomaram de assalto
os estúdios falidos para produzirem obras autorais
em nível industrial, antes que as empresas corporativas
engolissem Hollywood e passassem a controlar e a ditar
o material a ser filmado. Em Uma Viagem Pessoal pelo
Cinema Norte-Americano, Scorsese chama Kubrick e
Cassavetes de "iconoclastas", por romperem com o sistema
de produção visual vigente, da mesma forma
que classifica King Vidor e Howard Hawks de "contrabandistas",
cineastas que, mesmo trabalhando dentro do esquema imposto
pelos grandes estúdios, deram vazão a
projetos altamente pessoais e de estilos inconfundíveis.
Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Norte-Americano
é a chave para se compreender O Aviador, uma
vez que há o "contrabandista" Martin Scorsese
filmando as aventuras e desventuras do "iconoclasta"
Howard Hughes. Se, ao contrário de Coppola (sem
sucesso) com a Zoetrope, e de Lucas e de Spielberg (com
sucesso) com a Lucasfilm e a com a Dreamworks, Scorsese
não se tornou ele mesmo executivo da indústria
cinematográfica, mantendo-se à parte e
independente das corporações que imperam
em Hollywood, Gangues de Nova York e O Aviador
marcam, paradoxalmente, o mergulho do diretor nas superproduções
e nos superespetáculos, mas a fim de subvertê-los:
trata-se de continuar na exploração, seja
pelo ultrapessoal Gangues de Nova York, seja
pelo filme de encomenda O Aviador, de personagens
conflitantes e contraditórios que rumam às
trevas do isolamento e da obsessão, ao mesmo
tempo em que radicaliza experimentos narrativos e de
montagem, ao abandonar dramatizações psicológicas
nas quais o protagonista desajustado se volta contra
a realidade opressiva, a fim de abraçar a fusão
do anti-herói ao contexto onde se insere, preenchendo
superfície complexa que se estende para todas
as direções e que apaga a separação
entre figura e fundo.
É a questão da modernidade, que a postura
ousada e inovadora de Hughes antecipa, posto que o cinema
moderno passa, necessariamente, pelo estabelecimento
da produção independente, fora dos sistemas
industriais e financeiros dominantes. Esporádica
antes da Segunda Guerra Mundial, ela explode com o neo-realismo
italiano e dá origem, nas décadas seguintes,
aos cinemas novos em todo planeta. Através do
pioneiro Howard Hughes (como poderia ser por meio de
Orson Welles, ou de Humberto Mauro no Brasil), Scorsese
exalta as gerações de diretores comprometidos
em contestar, sobretudo depois de armados pela Cahiers
du Cinema com a "política dos autores", os
centros de poder cinematográficos, sejam nacionais
ou internacionais (Hollywood, no caso) – a nouvelle
vague francesa, o cinema novo brasileiro, o novo cinema
alemão, os cinemas novos no Japão e na
Polônia, a já citada nouvelle vague americana.
Não que a modernidade fílmica, para Scorsese,
signifique a recusa sistemática ao clássico
– como não representa para os demais autores
do pós-guerra –, pois está em jogo a apropriação
dos gêneros, dos clichês e dos modelos institucionalizados
com o intuito de fundar novas relações
imagéticas que escapem às convenções
as quais subjugam o cinema aos interesses comerciais
da máquina mercadológica, embora esta
se apresente sob formas variadas ao longo do tempo.
Todas as imagens, segundo Kubrick, já foram feitas,
de sorte que cabe aos cineastas faze-las agora um pouco
melhores: assim como em O Aviador Scorsese explora
os mitos de formação dos EUA, retomando
a temática favorita de John Ford (cujo tratamento
dado aos personagens – simbólicos, não
psicologizados e sujeitos às forças sociais
que os atravessam – é moderno, não clássico),
em Caminhos Perigosos, Os Bons Companheiros
e Cassino, por exemplo, ele atualiza o gênero
"filme de gângster", o qual, em Uma Viagem
Pessoal pelo Cinema Norte-Americano, é identificado
aos musicais enquanto produto que surge com a Grande
Depressão a fim de divertir a massa desempregada.
Filme é filme, não é a realidade,
diz Hepburn a Hughes. Scorsese sempre trabalhou não
com o "real", mas com a mitologia cinematográfica,
a qual se encontra e se confunde, em Gangues de Nova
York e em O Aviador, com os mitos que edificaram
a própria América. Ao inverso, contudo,
da limpidez fordiana, com sua câmera narrativa
e seu espaço cênico construído pela
ação dos personagens sobre o ambiente,
prevalece no cinema de Martin Scorsese a exuberância
visual de Luchino Visconti e de Max Ophüls, que
se caracteriza, por um lado, pela câmera sensória,
que circula independente da história contada
na tela (Visconti), e, por outro, pela desconstrução
do espaço, cuja continuidade existe por intermédio
de descontinuidades radicais inseridas tanto através
dos enquadramentos quanto da montagem (Ophüls).
Gustav Mahler, em resposta às críticas
sobre sua orquestração das sinfonias de
Beethoven, escreveu que, se os instrumentos modernos
(do início do século XX) já existissem,
o mestre de Bonn os teria usado. A partir de Beethoven,
Mahler, na verdade, afirmava o próprio discurso
musical, pautado, entre outros elementos, na absurda
expansão da orquestra sinfônica. No zoom
in de O Aviador, Martin Scorsese igualmente,
em consonância à modernidade fílmica,
apropria-se do conceito de espetáculo vigente
na época (transição do cinema mudo
ao sonoro) para adequá-lo à era atual
dos blockbusters, que se baseiam nos efeitos digitais
e na janela scope. Como é possível que
Hell’s Angels, superprodução mais
cara do período, sucesso de bilheteria, não
tenha sido filmado em 2.35:1?, pergunta Scorsese. Porém,
enquanto homenageia e se submete ao cinemão,
o diretor também o desmonta, pois O Aviador
enaltece a ousadia, o risco e o pioneirismo (não
somente pelo tema, mas pela própria forma sobre
a qual se estrutura) caros tanto ao cinema de autor
quanto aos filmes experimentais.
Cinema clássico, pois feito para se ver, mas
também moderno, o qual antevê, O Aviador
reúne tais registros antagônicos que, no
entanto, não se excluem. No plano que leva do
full ao scope, é o letreiro "Howard
Hughes Presents" que desaparece restando apenas o filme.
Clássico ou moderno, narrativo ou sensório,
autoral ou comercial, não importa: para Martin
Scorsese, o que vale é a paixão pelo cinema,
qualquer que ele seja.
Paulo Ricardo de Almeida
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