Uma
das cenas mais celebradas de O Terror das Mulheres
mostra o jovem Herbert H. Heebert (o "H" é
de um segundo "Herbert", motivado pelo fato
de que sua mãe tinha que chamá-lo sempre
duas vezes quando ele era criança) preparando-se
para sua primeira noite na casa em que finalmente arranjou
um emprego, depois de muita procura para conseguir conciliar
sua necessidade (de ocupação) com sua
nova condição, a de homem que tem aversão
às mulheres (o plot do filme, notório,
é o de que ele adotou essa postura radical depois
de ter visto a namorada, no dia de sua formatura, quando
ia pedir-lhe a mão em casamento, traindo-o com
um jogador de futebol americano, o protótipo
do modelo músculos-que-suplantam-os-que-têm-cérebro
no cinema americano).
Herbert entra em seu quarto no pensionato (que ainda
não sabe ser habitado apenas por jovens mulheres
em busca de empregos no show bizz) e se depara
com uma cama beliche. Juvenil, parece que vemos seus
olhos brilharem com a animação do "dormir
no andar de cima". Coloca a mala no de baixo e,
num salto, deita-se no alto para testar o colchão.
O choque, acompanhado pela trilha sonora, é imediato:
ele atravessa o nível da cama e vai parar no
andar de baixo. A parte de cima do beliche é
falso. A partir dali, uma série de peripécias
com o móvel darão o tom da seqüência,
que reestruturará o personagem. Ele desmontará
o segundo nível da cama, se deitará no
colchão e nele afundará. Daquele momento
em diante, Lewis contracenará, mais do que com
as atrizes do filme, com o cenário.
O jogo com a cama é apenas uma preparação
para tudo que o filme realizaria a seguir. A primeira
cena a realizar totalmente a proposta da película
para o cenário viria depois, quando ele finalmente
descobre a natureza de seu novo ambiente de trabalho:
ao se deparar com o batalhão de mulheres no salão
do café da manhã, ele se tranca no quarto
e segura a porta. Quando a governanta que o contratou
vem dissuadi-lo de sua reclusão, ele segura a
porta. Quando a câmera amplia o campo de visão,
vê-se que ele colocou todos os móveis possíveis
e imagináveis diante da porta. Depois de um breve
diálogo, a mulher empurra a porta e, com ela,
todos os móveis, que deslizam, sem atrito, em
um tapete, no chão liso.
Mas não se trata apenas de performatismo chanchadesco.
Lewis, herdeiro direto no cinema falado do que Keaton
e Chaplin faziam no mudo, nutre, neste trabalho, duas
de suas formas de expressão mais marcantes, ao
mesmo tempo, e em flagrante competição:
é o histrionismo de sua fala associado, ao mesmo
tempo, a gags mudas. Nesse sentido, ele se endivida
em particular com dois filmes, um de Keaton, O Cameraman,
dirigido por Edward Sedgwick em 1928, e outro de Chaplin,
A Conquista do Ouro, de 1925. Em ambos os filmes,
o cenário é um importante determinante
não apenas das ações do personagem,
mas também de sua personalidade. No filme de
Keaton, o personagem, apaixonado, começa a geografar
o mundo que o cerca com uma câmera para impressionar
a moça que ama. Os dois, objeto amado e objeto
amante, são, no fundo, observadores do espaço
e são definidos por ele. No caso do filme de
Chaplin, aliás, é no espaço exíguo
de uma casa (que tomba de um lado para o outro) que
se definem os personagens: Carlitos, de um lado, e Big
Jim, barbudo, de outro. Os dois companheiros que tentam
encontrar ouro, mas são vencidos pelo espaço.
Igualmente Herbert, porque o confinamento na casa, da
qual é impedido de sair por uma inusitada perseguição
das moças cada vez que ele ameaça deixá-las,
é o centro de sua definição, justamente
porque ele é constantemente vencido pelo espaço.
No limite, todo o drama de Herbert é corporificado
pelo cenário. Um bom exemplo disso é a
seqüência das borboletas, em que ele, mostra-se
mais uma vez desajeitado, ao limpar um quadro de coleção
de borboletas. Ao abri-lo, é surpreendido por
uma revoada dos insetos, que vão embora. Mesmo
que ele, em um rompante de malandragem, as faça
retornar, isso não retira dele a responsabilidade
de ter sido mais uma vez enganado pela geografia daquela
casa.
Ele é o personagem que o percurso pelos corredores
de quartos que se dão à câmera sem
paredes em um grande cenário quase teatral produz.
Mais que isso, é na economia dos jogos de entrada
e saída que se definem as relações
entre ele e seus objetos, no fundo, de desejo.
Isso porque ele é, no limite, o novo homem que
a nova mulher dos anos 60 começava a produzir:
ela independente, ele mais frágil, mais doce.
E o estilo clown de Lewis é perfeito para incorporar
esse personagem.
Mas sobre a economia dos espaços, o exemplo supremo
da maneira como Lewis trabalha a relação
entre personalidade e cenário é, claro,
a seqüência do quarto da senhorita em cujo
dormitório ele estava proibido de entrar. Ora,
quando isso finalmente acontece, ele encontra um mulher
que se pendura de ponta-cabeça no teto e o espaço
do quarto, que deveria ser exíguo, dadas as proporções
da casa, é amplo e alvo, e nele uma big band
produz o som que o faz dançar com a moça.
Ora, nessa cena, Herbert aparece, do nada, de smoking,
sugerindo o tom fantasioso que aquela reinvenção
do cenário impõe ao personagem. Mas logo
depois, em um momento definitivo, revela-se o quão
o tal acontecimento, impossível de se dar, deu-se
de fato (inclusive produzindo mais uma tentativa do
rapaz de deixar a casa).
O terço final do filme é dedicado à
transformação da casa em cenário
de um programa de televisão. Seria um especial
sobre a dona da casa, que apóia jovens artistas
iniciantes. Pois num jogo de metalinguagem, o que é
um cenário de fato, constituído confessamente
diante das câmeras de Lewis, vira cenário
de fantasia, constituído dramaticamente diante
das câmeras da emissora que filma o programa.
Nesse momento, revelam-se os mais fortes traços
da relação entre Herbert, o homem que
ajuda as mulheres, com as meninas da casa, em uma seqüência
de minishows feitos por eles, com o apoio de Herbet.
E mostra-se cada vez mais a aproximação
entre ele e uma jovem que se considera fracassada porque
não passa em nenhum teste.
Um momento, entretanto, parece ser o elo entre a construção
essencialmente psicológica do personagem com
sua montagem física. Curiosamente, é um
momento traçado em três tempos. Trata-se
das três seqüências envolvendo Baby,
o animalzinho de estimação da casa. A
primeira, se me permitem o tom absolutamente pessoal,
é uma das mais inspiradas e engraçadas
seqüências de Lewis: a de Herbert alimentando
o animal, que fica fechado em um quarto e cujo rugido
faz parecer que se trata de um leão. Em uma segunda
"aparição", Baby, que não
aparecia antes, era apenas os efeitos produzidos em
Herbert, como, por exemplo, ficar totalmente molhado
com leito ao tentar alimenta-lo, aparece de fato. E
para a surpresa de todos, é apenas um cachorrinho
(ele escapa e, quando todas as mulheres correm, em um
clima de cinema catástrofe, Herbert se salta
e se agarra a uma viga). Na última cena, entretanto,
o animal reaparece, desta vez como um leão de
fato. Surrealista, o momento remete novamente para a
regra elementar de Lewis no filme: ilusionismo. Às
vezes com uso do espaço interno, às vezes
com uso do externo.
Alexandre Werneck
|