O TERROR DAS MULHERES
Jerry Lewis, The Ladies Man, EUA, 1961

Uma das cenas mais celebradas de O Terror das Mulheres mostra o jovem Herbert H. Heebert (o "H" é de um segundo "Herbert", motivado pelo fato de que sua mãe tinha que chamá-lo sempre duas vezes quando ele era criança) preparando-se para sua primeira noite na casa em que finalmente arranjou um emprego, depois de muita procura para conseguir conciliar sua necessidade (de ocupação) com sua nova condição, a de homem que tem aversão às mulheres (o plot do filme, notório, é o de que ele adotou essa postura radical depois de ter visto a namorada, no dia de sua formatura, quando ia pedir-lhe a mão em casamento, traindo-o com um jogador de futebol americano, o protótipo do modelo músculos-que-suplantam-os-que-têm-cérebro no cinema americano).

Herbert entra em seu quarto no pensionato (que ainda não sabe ser habitado apenas por jovens mulheres em busca de empregos no show bizz) e se depara com uma cama beliche. Juvenil, parece que vemos seus olhos brilharem com a animação do "dormir no andar de cima". Coloca a mala no de baixo e, num salto, deita-se no alto para testar o colchão. O choque, acompanhado pela trilha sonora, é imediato: ele atravessa o nível da cama e vai parar no andar de baixo. A parte de cima do beliche é falso. A partir dali, uma série de peripécias com o móvel darão o tom da seqüência, que reestruturará o personagem. Ele desmontará o segundo nível da cama, se deitará no colchão e nele afundará. Daquele momento em diante, Lewis contracenará, mais do que com as atrizes do filme, com o cenário.

O jogo com a cama é apenas uma preparação para tudo que o filme realizaria a seguir. A primeira cena a realizar totalmente a proposta da película para o cenário viria depois, quando ele finalmente descobre a natureza de seu novo ambiente de trabalho: ao se deparar com o batalhão de mulheres no salão do café da manhã, ele se tranca no quarto e segura a porta. Quando a governanta que o contratou vem dissuadi-lo de sua reclusão, ele segura a porta. Quando a câmera amplia o campo de visão, vê-se que ele colocou todos os móveis possíveis e imagináveis diante da porta. Depois de um breve diálogo, a mulher empurra a porta e, com ela, todos os móveis, que deslizam, sem atrito, em um tapete, no chão liso.

Mas não se trata apenas de performatismo chanchadesco. Lewis, herdeiro direto no cinema falado do que Keaton e Chaplin faziam no mudo, nutre, neste trabalho, duas de suas formas de expressão mais marcantes, ao mesmo tempo, e em flagrante competição: é o histrionismo de sua fala associado, ao mesmo tempo, a gags mudas. Nesse sentido, ele se endivida em particular com dois filmes, um de Keaton, O Cameraman, dirigido por Edward Sedgwick em 1928, e outro de Chaplin, A Conquista do Ouro, de 1925. Em ambos os filmes, o cenário é um importante determinante não apenas das ações do personagem, mas também de sua personalidade. No filme de Keaton, o personagem, apaixonado, começa a geografar o mundo que o cerca com uma câmera para impressionar a moça que ama. Os dois, objeto amado e objeto amante, são, no fundo, observadores do espaço e são definidos por ele. No caso do filme de Chaplin, aliás, é no espaço exíguo de uma casa (que tomba de um lado para o outro) que se definem os personagens: Carlitos, de um lado, e Big Jim, barbudo, de outro. Os dois companheiros que tentam encontrar ouro, mas são vencidos pelo espaço.

Igualmente Herbert, porque o confinamento na casa, da qual é impedido de sair por uma inusitada perseguição das moças cada vez que ele ameaça deixá-las, é o centro de sua definição, justamente porque ele é constantemente vencido pelo espaço. No limite, todo o drama de Herbert é corporificado pelo cenário. Um bom exemplo disso é a seqüência das borboletas, em que ele, mostra-se mais uma vez desajeitado, ao limpar um quadro de coleção de borboletas. Ao abri-lo, é surpreendido por uma revoada dos insetos, que vão embora. Mesmo que ele, em um rompante de malandragem, as faça retornar, isso não retira dele a responsabilidade de ter sido mais uma vez enganado pela geografia daquela casa.

Ele é o personagem que o percurso pelos corredores de quartos que se dão à câmera sem paredes em um grande cenário quase teatral produz. Mais que isso, é na economia dos jogos de entrada e saída que se definem as relações entre ele e seus objetos, no fundo, de desejo.

Isso porque ele é, no limite, o novo homem que a nova mulher dos anos 60 começava a produzir: ela independente, ele mais frágil, mais doce. E o estilo clown de Lewis é perfeito para incorporar esse personagem.

Mas sobre a economia dos espaços, o exemplo supremo da maneira como Lewis trabalha a relação entre personalidade e cenário é, claro, a seqüência do quarto da senhorita em cujo dormitório ele estava proibido de entrar. Ora, quando isso finalmente acontece, ele encontra um mulher que se pendura de ponta-cabeça no teto e o espaço do quarto, que deveria ser exíguo, dadas as proporções da casa, é amplo e alvo, e nele uma big band produz o som que o faz dançar com a moça. Ora, nessa cena, Herbert aparece, do nada, de smoking, sugerindo o tom fantasioso que aquela reinvenção do cenário impõe ao personagem. Mas logo depois, em um momento definitivo, revela-se o quão o tal acontecimento, impossível de se dar, deu-se de fato (inclusive produzindo mais uma tentativa do rapaz de deixar a casa).

O terço final do filme é dedicado à transformação da casa em cenário de um programa de televisão. Seria um especial sobre a dona da casa, que apóia jovens artistas iniciantes. Pois num jogo de metalinguagem, o que é um cenário de fato, constituído confessamente diante das câmeras de Lewis, vira cenário de fantasia, constituído dramaticamente diante das câmeras da emissora que filma o programa. Nesse momento, revelam-se os mais fortes traços da relação entre Herbert, o homem que ajuda as mulheres, com as meninas da casa, em uma seqüência de minishows feitos por eles, com o apoio de Herbet. E mostra-se cada vez mais a aproximação entre ele e uma jovem que se considera fracassada porque não passa em nenhum teste.

Um momento, entretanto, parece ser o elo entre a construção essencialmente psicológica do personagem com sua montagem física. Curiosamente, é um momento traçado em três tempos. Trata-se das três seqüências envolvendo Baby, o animalzinho de estimação da casa. A primeira, se me permitem o tom absolutamente pessoal, é uma das mais inspiradas e engraçadas seqüências de Lewis: a de Herbert alimentando o animal, que fica fechado em um quarto e cujo rugido faz parecer que se trata de um leão. Em uma segunda "aparição", Baby, que não aparecia antes, era apenas os efeitos produzidos em Herbert, como, por exemplo, ficar totalmente molhado com leito ao tentar alimenta-lo, aparece de fato. E para a surpresa de todos, é apenas um cachorrinho (ele escapa e, quando todas as mulheres correm, em um clima de cinema catástrofe, Herbert se salta e se agarra a uma viga). Na última cena, entretanto, o animal reaparece, desta vez como um leão de fato. Surrealista, o momento remete novamente para a regra elementar de Lewis no filme: ilusionismo. Às vezes com uso do espaço interno, às vezes com uso do externo.


Alexandre Werneck