Jerry
e os inanimados
Jerry Lewis é um grande artista do desmanche.
Depois de desmantelar completamente, tanto como ator
como quanto diretor, o cenário de um pensionato
para moças (em O Terror das Mulheres,
1961), Lewis deixa de operar por metáforas e
toma como objeto, ou melhor, alvo, as próprias
instalações de um estúdio de cinema,
no caso a Paramutual (a produtora para a qual Lewis
fazia seus filmes sendo a Paramount): agora é
o cinema, suas convenções e suas generalidades,
que vai ser o objeto do embaralhamento lewisiano. Todos
os comportamentos pré-determinados, tudo que
se encaixa num gênero ou num procedimento padrão
pode ser passível de riso. Mocinho Encrenqueiro
começa fazendo tábula rasa da glamourização:
mostrando como o caubói na verdade cavalga um
cavalo falso, como o casal de apaixonados vive brigando
ou como a beldade que apanha do gângster é
na verdade um ex-lutador de boxe. "This is Hollywood",
diz a voz-off, enquanto sobrevoa os galpões,
os estúdios, e a entrada da Paramutual. Um problema:
nessa bagunça radical de todos os signos, em
quem confiar, quem pode servir de amigo? Em Mocinho
Encrenqueiro, não há uma menina linda
e tímida para Jerry confessar seus sentimentos,
nem um amigo para conversar, nem ninguém para
desabafar. Todas as outars pessoas são superiores
mandões, gente intolerante ou que no mínimo
pouco se importam com a vida dele. "Ele",
é Morty S. Tashman, afixador de outdoors da Paramutual
que é contratado, por sua estupidez, para malgré
lui-même servir de espião para os chefões
do estúdio e descobrir quem anda gastando além
da conta e fazendo da companhia uma empresa deficitária
mesmo com altos índices de popularidade dos filmes.
Nesse mundo sem piedade, a convivência do herói
lewisiano só pode se dar com objetos, não
com pessoas.
E é um mundo todo inanimado que brota de
Mocinho Encrenqueiro: as caixas que precisa levar
de um lugar a outro, uma jarra cheia de jujubas, um
bebedouro, as armaduras enfileiradas que caem no chão,
a estátua de Sansão, e sobretudo os dois
"bonecos" que Morty "encontra" no
almoxarifado. Da mesma forma que o mundo de Morty é
deserto de personagens, o mundo do filme é deserto
de narrativa. Uma vez instituído o princípio
motor da história que dá crédito
ao personagem para circular por todo o estúdio,
o filme se esquece completamente que existe um propósito
narrativo e se perde deliciosamente numa infinidade
de gags visuais que pouco fazem a intriga andar, mas
que funcionam se acumulando um ao outro ao ponto da
dispersão total: é o momento delicioso
em que à selvageria e incompatibilidade do personagem
de Lewis com aqueles que o rodeiam corresponde um total
e irrestrito desrespeito às convenções
cinematográficas da narrativa clássica.
Ao bom andamento regrado e comum do começo do
filme, segue-se um ritmo imprevisível, exigente
em sua simplicidade, mas que faz o humor se desgarrar
da história e apresentar-se nu a nós,
espectadores. Menos tábula rasa da ficção
do que entrada selvagem modernista façon
dada poder-se-ia dizer no terreno do anti-conformismo
da narrativa convencional, a viagem de Mocinho Encrenqueiro
é um objeto visual absolutamente estranho no
panorama de 1961 (um pouco como os filmes de McG com
as Panteras hoje, sobretudo o segundo), experimental
no ritmo e na condução.
Jerry Lewis adorava atuar consigo mesmo: os dois personagens
em O Professor Aloprado, todos os familiares
postulantes à herança em Uma Família
Fuleira. Em Mocinho Encrenqueiro, trata-se
de um protótipo e de uma variação.
Porque de fato não há nenhum outro
de Lewis, mas é porque não há
nenhum outro, ponto final. Morty é contratado
para espionar, mas não sai nem de si mesmo: não
consegue decorar os nomes dos técnicos, não
consegue falar quando se depara com grandes astros do
cinema, e tampouco age quando consegue a proeza de estar
a sós com uma glamurosa atriz. Existe uma força
centrípeta que puxa tudo que está dentro
do filme para Morty/Jerry, e isso se dá de forma
mais eficiente quando Jerry se vê às voltas
com um mundo rodeado de objetos que ou resistem a ele,
ou podem ser tangidos por ele e ser submetidos a sua
força anárquica. O bebedouro e a jarra
de jujubas são exemplos do primeiro; a dublagem
da música do filme e a queda de Sansão
são exemplos do segundo. Ou então o convívio
com as pessoas assume ares de absurdo inanimado: o palito
e o charuto na cena do elevador para o primeiro, a cena
em que ele é extra e sai cantando, destruindo
a cena (para uma platéia petrificada, inclusive
o diretor e a equipe técnica), para o segundo.
Contra esse centro magnetizado que parece atrair tudo
para ele, nem Hollywood é páreo. Assim,
Morty com sua falta de jeito destrói meticulosamente
tudo aquilo que toca, aparecendo em filmes de época,
salões elegantes ou em faroestes com roupa de
faz-tudo de estúdio, cantando com sua voz gasguita
uma música dublada, passeando com um carrinho
cheio de vagões pelos galpões do estúdio
ou finalmente destruindo com o esguicho de uma
champanhe de dimensões monstruosas uma
festa para a diva que estrela o filme. Um humor rebelde
que se arma contra aquilo que é convencional:
Mocinho Encrenqueiro se revela um pouco como
uma cópia em negativo de O Otário,
pois um acaba da mesma forma que o outro começa
e ambos, de uma certa maneira, poderiam ser vistos
como reapropriações de Vampiros de
Almas/Invasion of the Body Snatchers. Enquanto Morty
é visto como uma excrescência, um fantoche,
é assim que ele responde, como um robô
em mau estado de funcionamento. É só quando
notam sua expressividade o fato de que ele não
é uma armadura, um bebedouro ou um jarro de jujubas
que o estúdio pode voltar ao normal, Morty
virar estrela de cinema e o estúdio voltar a
lucrar com seus filmes. Enquanto isso não acontece,
o jeito é conspirar com os inanimados para infernizar
a vida dos "vivos" e conseguir sua própria
vida às custas deles. O mesmo se dá no
percurso de Lewis como cineasta: para suportar seu cinema,
para suportar seu estilo, o filme também deverá
passar por modificações estruturais, perder
convencionalidade, ganhar vertigem e personalidade.
Mocinho Encrenqueiro é uma prova disso.
Ruy Gardnier
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