MAIS UMA VEZ NA AMÉRICA

E se os verdadeiros gênios da mise-en-scène estiverem trabalhando dentro do sistema dos grandes estúdios hollywoodianos, escorados e estimulados criativamente, de um lado, pela facilidade tecnológica e pela solidez da estrutura e, do outro, pelas limitações que uma produção industrial requer? Essa pergunta já foi feita – e respondida – há cinqüenta anos atrás, é verdade. Mas e se, destacando o momento prodigioso que vive a série americana, o mesmo se puder dizer agora da programação televisiva? Poucos hão de discordar que, em matéria de seriados, comédias ou mesmo minisséries, a proliferação de bons resultados não tem paralelo, quantitativo ou qualitativo, em qualquer outra parte do mundo: nos canais de tv norte-americanos, assim como muito cedo se configurou para o cinema, existe hoje um casamento perfeito da conjuntura sócio-econômica com a habilidade de ficcionalizar o presente.

O cinema americano, enquanto isso, atravessa nada menos do que uma fase brilhante: originais talentos surgidos nos últimos anos (Sofia Coppola, Wes Anderson, irmãos Farrelly), diretores que precocemente se confirmam figuras essenciais (Shyamalan, Tarantino, Todd Haynes), obras começadas nos anos 80 que agora desfrutam um misto de maturidade e inventividade máxima (Gus Van Sant, Spike Lee, Abel Ferrara, Michael Mann, alguns momentos de Soderbergh), uma nova turma de comédia com forte conteúdo crítico e excepcional carisma (Ben Stiller, Jay Roach, Todd Phillips, Vince Vaughn, irmãos Wilson), medalhões que, com maior ou menor estrada, não cansam de levar seus cinemas para novos e insuspeitos rumos (Eastwood, Scorsese, Lynch, De Palma, Joe Dante) – e, movimentando tudo, uma máquina comercial incessante, que se adaptou melhor do que qualquer um poderia imaginar (do ponto de vista técnico-mercadológico) às transformações das últimas décadas. Faz-se hora, portanto, para um balanço desse momento em que as vertentes cinematográfica e televisiva das ficções americanas respiram, cada uma a seu modo, uma admirável atmosfera criativa (o que vai do domínio narrativo e artesanal até a gestão intelectual dos temas).

Essa edição de Contracampo se compõe de duas partes comunicantes: o lançamento simultâneo de Menina de Ouro e O Aviador, filmes que – para além de qualquer disputa de estatuetas – consolidam uma nova etapa de cinema para Clint Eastwood e Martin Scorsese, dois dos maiores cineastas contemporâneos; e a avaliação histórico-crítica da série televisiva americana, que de uma década para cá vem incrementando a boa forma atingida no meio dos anos 90. No que diz respeito às séries, nossa abordagem, ainda que se pretenda ao mesmo tempo histórica e antenada ao imenso volume de objetos de interesse atual, não tem a ilusão de abarcar toda a produção televisual que hoje ocupa as grades de programação. Seria uma empresa falida no exato momento em que abrisse suas portas. Buscamos, de todo modo, uma primeira análise de conjunto que no mínimo materializa um interesse que procuramos sistematizar e distribuir em textos. As perspectivas de análise, contrariando fatores limitantes, poderiam até extrapolar o escopo inicial, promovendo associações inusitadas – seria bastante interessante, por exemplo, avaliar a coexistência de uma certa estética de balneário em Summerland e na já extensa linhagem de produtos da teledramaturgia da Globo ambientados em locais de praia, de Malhação a Corpo Dourado (novela recentemente reprisada), passando por dezenas de afins. O interesse que surge a partir da abordagem estética das séries televisivas dá margem a um tipo de admiração cinéfila (na falta de um termo melhor) que em muito se parece com aquela alimentada nos anos 50 e 60 em relação a alguns cineastas hollywoodianos. No caos composicional (troca-troca de roteiristas e diretores, entrada e saída de personagens), no conjunto de forças coercitivas (imposições não apenas de produtores e empresários, mas também de patrocinadores, de resposta da audiência, de um tipo específico de star system) e no desenvolvimento/acompanhamento gradual (ao longo de episódios, meses, temporadas) que o universo das séries envolve, achar os traços estilísticos, as preferências estéticas que formam assinaturas pessoais, pode significar tanto uma adaptação ingênua da política dos autores quanto um estudo de campo bastante frutífero.

Fato notável, alguns dos nomes esquecidos e ultimamente marginalizados no circuito hollywoodiano são justamente os que dialogam mais puramente com os códigos dos gêneros (John McTiernan, Brian De Palma, John Carpenter). Num cenário que parece difundir um certo medo da ficção folhetinesca, e diante da dificuldade cada vez maior de encontrar público para o puro cinema de gênero, é curioso que a tv, ao menos no caso americano, reafirme o lugar da pluralidade dos objetos visuais e enriqueça o espectro da ficção de entretenimento "fácil" (não era a televisão que iria uniformizar os gostos?). Não à toa, nenhum thriller político ou documentário investigativo captou melhor a paranóia pós-11/09/2001 do que a série 24 Horas, que não trabalha senão na união da linguagem de reportagem com a dramaturgia de folhetim audiovisual. Desde os clássicos seriados ingleses dos anos 60 (destaque para O Prisioneiro) até o videoclipe e os dispositivos do reality show e das séries mais arriscadas esteticamente, sem esquecer do celeiro de craques que foi Miami Vice, assistiu-se a uma crescente complexidade do material televisivo. Isso tem sua explicação pela história das formas de expressão audiovisual, evidentemente, mas há também outros fatores: de duas décadas para cá, a televisão é vista como fornecedora de mercadorias pagas, e não mais como a torneira que abrimos e pela qual, ao invés de sair água, correm imagens. A questão deixa de ser urbanística (isto é, não se trata mais de fazer parte de uma mesma infra-estrutura que, além de imagens/sons, nos fornece água, eletricidade, telefone, gás de rua) e adentra ao primado do consumo (a proliferação da tv a cabo por assinatura talvez tenha sido o grande catalisador do sentimento de consumidor por parte do telespectador: uma vez que paga para ter os canais, ele se sente no direito de reclamar pela qualidade da programação). Não há como negligenciar o lado mercadológico da questão: aumentou consideravelmente a concorrência, e nunca houve anteriormente tamanha preocupação com o controle de qualidade das séries, tal como se vê hoje.

Nesse contexto aqui destacado, algumas séries, em seu conjunto ou mesmo em temporadas isoladas, representaram mais para a cultura visual americana dos anos 90 do que muita coisa tida como especial no cinema. Entre salvar de um incêndio a temporada 1997-98 de Friends e a maior parte do que o cinema independente americano então fazia (Todd Solondz, Neil Labute, Gummo, Hal Hartley em fase deplorável, produtos sub-Tarantino, as comédias românticas low-key de Edward Burns), certamente ficaríamos com a primeira opção. Essa importância conquistada no território da cultura americana como um todo traz algo à lembrança: rápido surgimento de uma tradição, vontade de experimentação, indústria consolidada, savoir-faire, união de talento com artesanato: não foram esses, entre outros, os fatores que permitiram que se falasse do cinema dos anos 30-50 como um cinema clássico?

A true underdog story

Ao mesmo tempo em que o cinema de mega-orçamentos redescobre o épico – menos por efeitos digitais que dispensam milhões de figurantes do que por um retorno ao eixo ético-religioso, que as novas frentes de batalha norte-americanas como que revolveram do fundo e trouxeram de volta à superfície –, a tv reinveste nos múltiplos focos narrativos colocados à altura do indivíduo: nas séries, as decisões – sejam elas de cunho pessoal-afetivo ou de peso político internacional – recaem sempre sobre a consciência e a circunstância individuais (24 Horas e Alias são atravessados de lado a lado pela política e operam desse modo). Essa recusa ao universalismo e essa colocação da narrativa no plano do indivíduo, por sinal, estão na base de Menina de Ouro e de O Aviador – ainda que este último seja uma visão do sonho americano (uma visão pessoal, porém conectada a um destino coletivo).

Há um aspecto nos últimos trabalhos de Eastwood e Scorsese que poucos se dispõem a ver: os enormes riscos que ambos, veteranos que são, optam por correr, ao contrário de se fechar no campo seguro dos enfadonhos projetos com cara de "cinema maduro". As duas incursões de Scorsese pela revisão de mitos fundadores norte-americanos possuem todo o perfil de projetos, de certa maneira, experimentais (o equívoco está em querer encará-los como uma passagem natural e serena ao grande orçamento mainstream). Tanto que algumas peças ainda carecem de ajuste, a ambição da empreitada ainda é maior que a sua resolução final. Se há um diálogo, por exemplo, que Scorsese precisa afinar melhor nessa nova fase é aquele com sua montadora de longa data, Thelma Schoonmaker. Assim como ocorrera em Gangues de Nova York, os problemas de ritmo em O Aviador são bastante evidentes, e o filme soa mais confuso do que gostaria de ser.

O Aviador é um típico filme da era do designing (gráfico, de som, de produção), no que reside uma de suas principais diferenças em relação a Menina de Ouro. Enquanto a fotografia de Robert Richardson para O Aviador – assim como para todo trabalho seu – segue um paradigma lux (de uma luz que provém do olho e anima os objetos, sendo um "produto do espírito" o que dá a textura do mundo e de suas coisas), Menina de Ouro adota um outro princípio de luminosidade, um paradigma lúmen, que pressupõe uma luz já existente nas coisas e passível de ser captada pelo olho (ou pela câmera, no caso). Afinal de contas, um filme fala de um personagem, Howard Hughes, que a todo momento deseja agir sobre o mundo, transformá-lo, ao passo que o personagem de Clint Eastwood, o veterano treinador de boxe Frankie Dunn, se vê compelido a agir sobre o que está no mundo não necessariamente por conta de sua vontade. Da mesma forma, Menina de Ouro alimenta uma – hoje em dia – incomum devoção pelo som direto, o som ambiente: cada tilintar de talheres, cada arrastar de pés pelo chão tem uma importância absurda para o filme. Trata-se de um mundo povoado por vozes, por infinitos sons, e no qual o homem deve agir e tomar decisões. Esses sons, ao pedirem a participação constante do entorno, afirmam que os personagens do filme são, antes de mais nada, "seres no mundo". Eastwood prepara desde cedo o terreno para uma redução do filme ao plano moral de um personagem, um indivíduo confrontado com o mundo. E não é só o desencanto com a religião o que resulta desse confronto: também a ciência é alvo de um discurso desacreditado (a inexistência de cura para Maggie, a descrença de Frankie em relação aos médicos cuidarem dela de forma especial). Estará Eastwood dizendo que vivemos em um universo surdo à "nossa música", um universo indiferente aos nossos sonhos, às nossas paixões, aos nossos crimes? O que há no reverso das blue notes dessa canção de abandono composta por ele?

Erro crasso achar que Eastwood se apóia numa tradição à qual simplesmente dá continuidade: muito antes disso, ele põe à prova essa tradição. Se o melodrama irrompe da narrativa de Menina de Ouro, principalmente na segunda metade do filme, é para que seus códigos sejam não apenas reverberados, mas também submetidos a um teste de esforço. O diretor-ator segue, em grande medida, a lógica do falsificacionismo popperiano: seus três últimos filmes trazem o risco, essencial ao jogo experimental a que se lançam, da procura pelas hipóteses mais perigosas, as que mais deixam dúvidas. Quanto mais uma teoria abre possibilidades de ser refutada – e, obviamente, à medida que sobrevive aos ataques –, mais ela se mostra sólida (cf. Karl Popper, A Lógica da Descoberta Científica). É mais ou menos essa a estratégia de Eastwood, para quem os códigos do cinema de gênero não são um porto seguro, e sim um terreno que ele reconhece como sendo tão perigoso quanto atraente. A vilã caricata, a música altamente manipuladora, os clichês do filme de boxe, a decupagem excessivamente dramática da cena em que Maggie vai à lona, a narração em off com a voz grave e paternal de Morgan Freeman: tudo isso saboreia um tom de desafio dentro do filme. Assim como o dilema moral plantado no cerne da narrativa é um desafio sob qualquer ponto de vista. Sem falar na persona de Eastwood, em seu rosto, em suas rugas, também a desafiar o tempo e buscar uma adaptação. Tudo que no filme há de refutável está lá de forma consciente.

Menina de Ouro é, como no subtítulo original de Com a Bola Toda, uma autêntica história da América underdog (o ginásio de Eastwood bem poderia ser o do personagem de Vince Vaughn na comédia de Rawson Marshall Thurber). E essa história recebe um tratamento certamente sombrio, mas em nada frio, pois a verdade é que desde As Pontes de Madison Eastwood não filmava de coração tão aberto (é impressionante como basta Hilary Swank aparecer pela primeira vez para que a câmera se apaixone por ela), o que resultou num dos seus filmes mais bonitos, e que justificaria não uma, mas muitas pautas que falassem do cinema americano a partir dele. Ao lado de O Aviador e de algumas séries em particular, uma excelente justificativa para o entusiasmo (mais uma vez) despertado pela conhecida propensão americana às ficções, aos sonhos fabricados à luz do dia. Em Menina de Ouro, essa luz nada mais é do que um intervalo entre sombras, e esse espaço preenchido por luz é o suficiente para que caiba um corpo – o corpo que num momento seguinte irá sumir: os personagens do filme são também eles intervalos entre fantasmas. Nossa pauta é também uma homenagem a esses seres fugidios que, se numa primeira aparição parecem feitos de pedra, posteriormente se tornam apenas um vulto atrás de um vidro manchado; esses seres que, às vésperas de desaparecer, reservam-nos seu lugar o mais próximo possível do coração.


Luiz Carlos Oliveira Jr.