Warner
Channel: de segunda a sexta, às 12:30, 19h30
e 03h; sábados e domingos às 13h30 e 03h
Como todo objeto cultural que alcança
a aceitação pública e o sucesso
que alcançou, a série Friends é
completamente passível de um estudo sociológico
que revelará coisas sobre a série e sobre
a sociedade contemporânea. Seis pessoas brancas,
três homens e três mulheres, todos eles
heterossexuais, nenhuma grande questão social
e política levantada pela vida cotidiana deles,
uma bandeirinha americana plantada na parede logo após
os ataques de setembro 2001, nenhuma droga, nenhuma
promiscuidade. Tudo isso, a princípio, pode causar
muitas fúrias: "típico conservadorismo
americano", "a América asseptizada
que todas as pessoas de classe média gostariam
que existisse", jogos de identificação
sublimada com o espectador (os infinitos testes "qual
friend é você?") e com um universo,
o da vida partilhada entre o recanto Central Perk e
os apartamentos vizinhos num mesmo andar. Mainstream
dos mainstreams, o conceito e a popularidade
de Friends fazem da série um compêndio
do que é a pura ideologia americana nos anos
90, assim como de certa forma os filmes com Katherine
Hepburn e Spencer Tracy representavam o mainstream
das então novas relações entre
casal nos anos 50. Friends, de fato, é
tudo isso que se fala da série; tudo isso, no
entanto, não consegue dar conta do que é
a série como fenômeno e, ao menos naquilo
que nos interessa aqui, como fenômeno de interesse
estético.
O mínimo que se pode falar sobre Friends
é que trata-se de um mainstream que como
poucos abriu janelas para seus delírios fantasmáticos,
para um universo heterogêneo (o outro) que volta
e meia irrompia na trama: Ross e Joey descobrindo que
é aconchegante dormir juntos, Chandler às
voltas com seu pai que fez operação de
mudança de sexo, Phoebe e seu passado de trombadinha,
sem-teto e junkie... Monica Geller, a chef
de cozinha control freak; Ross Geller, o acadêmico
nerd desajeitado; Rachel Green, a patricinha
consumista; Chandler Bing, o burocrata engraçadinho;
Joey Tribbiani, o ator mulherengo e estúpido;
e Phoebe Buffay, a doidivanas new age. Juntos,
os seis amigos passaram por dez anos de camaradagem
"panelinha" a forma como cada novo(a)
namorado(a) de alguém do grupo é analisado
pelos outros cinco sendo adoráveis em
seus maiores defeitos, se fechando para o resto do mundo,
num ambiente de perfeita harmonia interna mesmo
que sujeita a desempregos, términos de relacionamento,
péssimos momentos familiares. Uma buddy série
que funciona em seu índice reiterativo e tautológico
o conforto em saber que tudo estará sempre
lá, que "I'll be there for you", como
diz a detestável música de abertura ,
mas que a todo momento parece querer abrir-se para um
outro e reconhecer sua natureza de instância separada
(na acepção filosófica do termo).
Porque, ao contrário de diversas outras sitcoms
conservadoras em que as instâncias de legitimação
das personagens são as instituições
sociais o casamento, o emprego, a prole: já
perceberam como séries como The Nanny
ou Mad About You não circulam senão
sobre esses temas? , Friends sabe fazer deboche
de tudo que entra nesses circuitos. Adultos com adolescência
prolongada, os friends não passam pelos moldes
de normalização social sem deixar sua
marca bizarra que faz rir da instituição:
Phoebe que tem filhos que não são dela,
Monica e Chandler que são um casal estéril
e precisam adotar, Ross e Rachel que têm uma filha
mas só se confirmam como casal no último
capítulo da série, anos depois de terem
casado totalmente embriagados, sem nenhuma lembrança
da cerimônia, em Las Vegas. Não há
reconhecimento da Lei social nem no casamento: o padre
que rege o casamento de Monica e Chandler o único
casamento "sério" da sitcom
é Joey, como se a benção do ritual
só pudesse ser dada por um igual, não
por alguém de fora. Afora isso, logo no primeiro
capítulo há dois casamentos que dão
errado: o de Rachel, que aparece no Central Perk fugida
do noivo, e o de Ross, que chora as mágoas de
ter sido abandonado pela esposa, que acabara de descobrir
que era lésbica. Mais tarde, num dos momentos
mais importantes de toda sitcom, Ross Geller
diz o nome de Rachel no altar quando está casando
com Emily (em movimento reverso, Rachel diz "sim"
para Joey quando este apenas se abaixava para pegar
o anel de noivado que Ross havia comprado para Rachel).
Vendo de longe, há mais material em Friends
para Douglas Sirk (esterilidade, filhos adotivos, desemprego,
incompatibilidade do casamento, problemas familiares)
do que para Frank Tashlin. E certamente esse mainstream
já é um mainstream modificado:
nenhum casal é modelo, nenhum personagem é
sem problemas graves.
Mas o que Friends conseguiu em popularidade deve-se
a, mais do que a seu formato, a sua forma. Vida cotidiana
tida ora como heróica, ora como farsesca, que
reconhece os movimentos da vida em sociedade mas erige
como seu foco a vida endógena de grupo. Talento
grande da equipe de criadores, mas também da
equipe de redatores: um número expressivo de
piadas e brincadeiras nunca esteve tão próximo
da vida cotidiana, coisas banais como brincar de jogos
de tabuleiro viram manancial humorístico para
um episódio inteiro (o jogo dos 50 estados americanos,
por exemplo). Agilidade das cenas, pouco blablablá
meloso, onde até as inevitáveis deslizadas
no drama se dão com uma piada ou outra, o esqueleto
de Friends permite uma maleabilidade grande, que, associada
à postura adorável de todos os personagens,
faz o diferencial da série. Uma maleabilidade
que exige uma teorização sobre valência
em sitcoms e do sucesso e longevidade das sitcoms a
partir da idéia de valência.
Em química, aprendemos que os elementos apresentam
estabilidade relativa, isso devido à quantidade
de elétrons na última camada, e que o
carbono precisa de quatro ligações para
se estabilizar, ao passo que o hidrogênio precisa
apenas de uma. A valência do carbono, assim, é
4, ao passo que a do hidrogênio é 1. Nas
séries, vale a maior valência: maior capacidade
dos personagens se adaptarem a novas realidades, novos
universos captados por eles, novos cenários,
novas pessoas, novas proposições: não
à toa, quase todos eles passam a maior parte
da sitcom solteiros, alguns sem emprego, e mesmo os
que têm emprego saltam de um para outro. Como
Seinfeld, seu duplo mais selvagem e melhor (menos
por ter protagonistas menos adoráveis do que
pela acidez absoluta das piadas, e pelo virtuosismo
da escrita e o trabalho físico sensacional dos
atores), Friends tem a máxima valência
possível para uma série mainstream,
e isso faz toda sua particularidade dentro do cenário
das sitcoms (é impreciso falar de Friends
ou Seinfeld como séries; tratam-se
de comédias de situação, com claques
[risos pré-gravados], filmadas em cenários
fixos com poucas variações e com episódios
de 25min): entre o molde e a exceção,
entre o conservador e seu outro, entre o convencional
e a ousadia, Friends conquistou o seu lugar bizarro
ao mesmo tempo como parâmetro e como resposta
ao parâmetro, e no percurso fez sua história
e se inscreveu na história de seu tempo por estar
em sintonia com ele. Se não há o brilho
de uma voz ou de uma visão de mundo (um autor),
há ao menos um testemunho (a compreensão
e o reflexo da ideologia) sincero e autêntico
da regra e de seu desvio. Tudo talentosamente empacotado
com agilidade e humor para todo mundo conseguir acompanhar.
Algo que, é de se confessar, o cinema americano
não consegue com suas comédias há
alguns anos. Pode dar trabalho, mas recompensa parar
de se preocupar e amar Friends.
Ruy Gardnier
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