FRIENDS
Friends, David Crane, Marta Kauffman, EUA, 1994
(completa, dez temporadas)

Warner Channel: de segunda a sexta, às 12:30, 19h30 e 03h; sábados e domingos às 13h30 e 03h

Como todo objeto cultural
que alcança a aceitação pública e o sucesso que alcançou, a série Friends é completamente passível de um estudo sociológico que revelará coisas sobre a série e sobre a sociedade contemporânea. Seis pessoas brancas, três homens e três mulheres, todos eles heterossexuais, nenhuma grande questão social e política levantada pela vida cotidiana deles, uma bandeirinha americana plantada na parede logo após os ataques de setembro 2001, nenhuma droga, nenhuma promiscuidade. Tudo isso, a princípio, pode causar muitas fúrias: "típico conservadorismo americano", "a América asseptizada que todas as pessoas de classe média gostariam que existisse", jogos de identificação sublimada com o espectador (os infinitos testes "qual friend é você?") e com um universo, o da vida partilhada entre o recanto Central Perk e os apartamentos vizinhos num mesmo andar. Mainstream dos mainstreams, o conceito e a popularidade de Friends fazem da série um compêndio do que é a pura ideologia americana nos anos 90, assim como de certa forma os filmes com Katherine Hepburn e Spencer Tracy representavam o mainstream das então novas relações entre casal nos anos 50. Friends, de fato, é tudo isso que se fala da série; tudo isso, no entanto, não consegue dar conta do que é a série como fenômeno e, ao menos naquilo que nos interessa aqui, como fenômeno de interesse estético.

O mínimo que se pode falar sobre Friends é que trata-se de um mainstream que como poucos abriu janelas para seus delírios fantasmáticos, para um universo heterogêneo (o outro) que volta e meia irrompia na trama: Ross e Joey descobrindo que é aconchegante dormir juntos, Chandler às voltas com seu pai que fez operação de mudança de sexo, Phoebe e seu passado de trombadinha, sem-teto e junkie... Monica Geller, a chef de cozinha control freak; Ross Geller, o acadêmico nerd desajeitado; Rachel Green, a patricinha consumista; Chandler Bing, o burocrata engraçadinho; Joey Tribbiani, o ator mulherengo e estúpido; e Phoebe Buffay, a doidivanas new age. Juntos, os seis amigos passaram por dez anos de camaradagem "panelinha" – a forma como cada novo(a) namorado(a) de alguém do grupo é analisado pelos outros cinco – sendo adoráveis em seus maiores defeitos, se fechando para o resto do mundo, num ambiente de perfeita harmonia interna – mesmo que sujeita a desempregos, términos de relacionamento, péssimos momentos familiares. Uma buddy série que funciona em seu índice reiterativo e tautológico – o conforto em saber que tudo estará sempre lá, que "I'll be there for you", como diz a detestável música de abertura –, mas que a todo momento parece querer abrir-se para um outro e reconhecer sua natureza de instância separada (na acepção filosófica do termo).

Porque, ao contrário de diversas outras sitcoms conservadoras em que as instâncias de legitimação das personagens são as instituições sociais – o casamento, o emprego, a prole: já perceberam como séries como The Nanny ou Mad About You não circulam senão sobre esses temas? –, Friends sabe fazer deboche de tudo que entra nesses circuitos. Adultos com adolescência prolongada, os friends não passam pelos moldes de normalização social sem deixar sua marca bizarra que faz rir da instituição: Phoebe que tem filhos que não são dela, Monica e Chandler que são um casal estéril e precisam adotar, Ross e Rachel que têm uma filha mas só se confirmam como casal no último capítulo da série, anos depois de terem casado totalmente embriagados, sem nenhuma lembrança da cerimônia, em Las Vegas. Não há reconhecimento da Lei social nem no casamento: o padre que rege o casamento de Monica e Chandler – o único casamento "sério" da sitcom – é Joey, como se a benção do ritual só pudesse ser dada por um igual, não por alguém de fora. Afora isso, logo no primeiro capítulo há dois casamentos que dão errado: o de Rachel, que aparece no Central Perk fugida do noivo, e o de Ross, que chora as mágoas de ter sido abandonado pela esposa, que acabara de descobrir que era lésbica. Mais tarde, num dos momentos mais importantes de toda sitcom, Ross Geller diz o nome de Rachel no altar quando está casando com Emily (em movimento reverso, Rachel diz "sim" para Joey quando este apenas se abaixava para pegar o anel de noivado que Ross havia comprado para Rachel). Vendo de longe, há mais material em Friends para Douglas Sirk (esterilidade, filhos adotivos, desemprego, incompatibilidade do casamento, problemas familiares) do que para Frank Tashlin. E certamente esse mainstream já é um mainstream modificado: nenhum casal é modelo, nenhum personagem é sem problemas graves.

Mas o que Friends conseguiu em popularidade deve-se a, mais do que a seu formato, a sua forma. Vida cotidiana tida ora como heróica, ora como farsesca, que reconhece os movimentos da vida em sociedade mas erige como seu foco a vida endógena de grupo. Talento grande da equipe de criadores, mas também da equipe de redatores: um número expressivo de piadas e brincadeiras nunca esteve tão próximo da vida cotidiana, coisas banais como brincar de jogos de tabuleiro viram manancial humorístico para um episódio inteiro (o jogo dos 50 estados americanos, por exemplo). Agilidade das cenas, pouco blablablá meloso, onde até as inevitáveis deslizadas no drama se dão com uma piada ou outra, o esqueleto de Friends permite uma maleabilidade grande, que, associada à postura adorável de todos os personagens, faz o diferencial da série. Uma maleabilidade que exige uma teorização sobre valência em sitcoms e do sucesso e longevidade das sitcoms a partir da idéia de valência.

Em química, aprendemos que os elementos apresentam estabilidade relativa, isso devido à quantidade de elétrons na última camada, e que o carbono precisa de quatro ligações para se estabilizar, ao passo que o hidrogênio precisa apenas de uma. A valência do carbono, assim, é 4, ao passo que a do hidrogênio é 1. Nas séries, vale a maior valência: maior capacidade dos personagens se adaptarem a novas realidades, novos universos captados por eles, novos cenários, novas pessoas, novas proposições: não à toa, quase todos eles passam a maior parte da sitcom solteiros, alguns sem emprego, e mesmo os que têm emprego saltam de um para outro. Como Seinfeld, seu duplo mais selvagem e melhor (menos por ter protagonistas menos adoráveis do que pela acidez absoluta das piadas, e pelo virtuosismo da escrita e o trabalho físico sensacional dos atores), Friends tem a máxima valência possível para uma série mainstream, e isso faz toda sua particularidade dentro do cenário das sitcoms (é impreciso falar de Friends ou Seinfeld como séries; tratam-se de comédias de situação, com claques [risos pré-gravados], filmadas em cenários fixos com poucas variações e com episódios de 25min): entre o molde e a exceção, entre o conservador e seu outro, entre o convencional e a ousadia, Friends conquistou o seu lugar bizarro ao mesmo tempo como parâmetro e como resposta ao parâmetro, e no percurso fez sua história e se inscreveu na história de seu tempo por estar em sintonia com ele. Se não há o brilho de uma voz ou de uma visão de mundo (um autor), há ao menos um testemunho (a compreensão e o reflexo da ideologia) sincero e autêntico da regra e de seu desvio. Tudo talentosamente empacotado com agilidade e humor para todo mundo conseguir acompanhar. Algo que, é de se confessar, o cinema americano não consegue com suas comédias há alguns anos. Pode dar trabalho, mas recompensa parar de se preocupar e amar Friends.

Ruy Gardnier