DESPERATE HOUSEWIVES
Marc Cherry, Desperate Housewives, EUA, 2004
(primeira temporada)

Sony Entertainment Television: quintas-feiras, às 21h, com reprises sextas-feiras à 01h e domingos às 22h)

Para começarmos a entender um pouco melhor o fenômeno Desperate Housewives - atualmente a campeã de audiência entre as séries na televisão aberta dos EUA - devemos nos remeter às palavras de Marc Cherry, criador e principal roteirista do programa, em seu discurso ao receber o Globo de Ouro para melhor série cômica em janeiro último. Cherry afirmou que sua idéia era fazer uma paródia ou crítica de um setor da classe média suburbana dos EUA e a melhor forma de vender tal idéia seria apropriando-se do formato das soap operas, novelas intermináveis exibidas no horário vespertino das emissoras americanas. Mesmo assim, foi rejeitado por praticamente todas as networks antes de ter seu piloto aceito pela rede ABC.

Seu argumento central parte de uma morte misteriosa – no caso o suicídio sem maior razão aparente da dona de casa Mary Alice Young (Brenda Strong), morta mas presente em todos os episódios como narradora – que acabaria por detonar a revelação de sombrios segredos nas vidas das pessoas que a cercavam, em especial suas quatro melhores amigas, as donas-de-casa desesperadas. Não deixa de vir à tona a lembrança de outro seriado que, no início da década de 90, revirava os esqueletos ocultos nos armários de uma pequena cidade, partindo, por sua vez, de um homicídio: a genial Twin Peaks, de David Lynch e Mark Frost. Tal comparação não se faz nem um pouco despropositada ao sabermos que a primeira atriz escalada para a personagem Mary Alice foi Sheryl Lee, a intérprete de Laura Palmer.

Encerram-se por aí as semelhanças entre os dois seriados. Pois se, o mínimo que poderia ser dito sobre Twin Peaks era que este buscava subverter das mais diversas formas os clichês estabelecidos e frustrar as expectativas da audiência quanto a soluções narrativas convencionais – razão pela qual passou a ser rejeitado pelo público a partir de sua segunda temporada e foi, conseqüentemente, cancelado de forma prematura – , no caso de Desperate Housewives, a opção de Cherry parece ter sido trabalhar e reforçar os clichês. Nada contra essa opção, uma vez que o programa é vendido como uma paródia. Só que, tomando por base o piloto, os clichês quanto à história e às personagens foram apresentados da forma mais óbvia possível e o pretenso humor, quando presente, vinha de forma bem rasteira. Durante o segundo e terceiro episódio a visão cômica e satírica parecia aflorar de forma um pouco mais intensa e uma decolagem se fez sugerir. Porém daí em diante, embarcou-se na mesmice e a cada novo episódio - a Sony exibiu até o momento o 11º - o programa só faz, a meu ver, piorar.

Vejamos, por exemplo, as quatro personagens-título. Susan Mayer (Teri Hatcher) é uma divorciada totalmente desajeitada e trapalhona, tem uma filha adolescente que age como se fosse ela a responsável por sua mãe abilolada. Lynette Scavo (Felicity Huffman – a melhor das atrizes) é uma executiva outrora bem-sucedida que largou tudo em pról da família e que pena para controlar seus três pivetes endiabrados. Bree Van De Kamp (Marcia Cross) - que Mark Cherry afirma ter sido inspirada por sua própria mãe - é uma esposa com mania de perfeição, que a tudo controla em favor das aparências e, a princípio, se nega a assumir a falência de seu casamento e de sua relação com a prole, um casal de adolescentes. Finalmente Gabrielle Solis (Eva Longoria, gostosérrima e aparecendo em várias cenas vestindo lingerie), a mais jovem das três, uma ex-modelo de orígem latina, casada com um machão e que tem como amante o garotão jardineiro. Mais esteriotipadas, impossível.

Também estereotipadas são todas as situações que envolvem a região de Wisteria Lane e seus demais moradores. Um corpo e uma crança possivelmente morta na infância na casa de Mary Alice, ocultados por seu viúvo sinistro e desonesto. Bree se dando conta das infidelidades do marido. Lynette se viciando em estimulantes para cumprir com eficácia as funções maternas. Gabrielle escondendo seu adultério do marido violento e da sogra enxerida. O assassinato de uma vizinha que parecia saber um pouco mais sobre Mary Alice. O marido de Gabrielle preso por negociatas escusas. Por aí vai. E a comédia? E a sátira? Sumindo gradativamente à medida que o sucesso tornou necessária a criação de novos enredos, uma vez que uma série originalmente planejada para apenas 10 capítulos foi alongada para uma temporada de extensão normal (cerca de 24 episódios). E com isso, várias bolas levantadas ao longo dos capítulos vão sendo aos pouco abandonadas, acumulando-se, assim, linhas narrativas soltas. Sim, tais poderão ser retomadas mais à frente, mas com grande risco de perda de sua eficácia dramática, uma vez que até lá muito provavelmente tenham sido esquecidas pelo espectador.

O principal filão remanescente da comédia em Desperate Housewives acaba sendo a personagem Susan. Com um casamento recentemente desfeito, tenta conquistar o novo e galante morador de Wisteria Lane: o encanador Mike Delfino, um dos raros solteiros disponíveis. Um dos mistérios da série é criado quanto aos reais motivos que levaram Delfino ao bairro, já que desde o início fica claro que sua profissão é apenas uma fachada. Voltando a Susan, ela disputa a atenção de Mike com Edie Britt (Nicolette Sheridan), uma vizinha assanhada. Mas a cada episódio, seu jeito desajeitado de ser leva Susan a se envolver inevitavelmente em alguma situação constrangedora. Ela, por exemplo, já causou involuntariamente um incêndio na casa de Edie, já ficou trancada nua do lado de fora de sua casa (numa situação similar à do clássico conto de Fernando Sabino), já pisou a passarela de um desfile de moda com a roupa rasgada, já foi atirada de um touro mecânico e por aí vai. Mas tais situações resultam - muito provavelmente por sua rarefeita sutileza e pela falta de timing dos responsáveis pela direção da série - em cenas bastante desprovidas de graça. Mas, ao que parece, os americanos adoram e Teri Hatcher, apesar da atuação meio robotizada, tem visto crescer em muito sua popularidade e recebido prêmios de melhor atriz cômica pela personagem.

Mas por quê, mesmo com todas as fragilidades apontadas acima, Desperate Housewives vem se estabelecendo cada vez mais como um imenso sucesso? É muito provável que, justamente, por causa delas. Um fator a ser apontado é que, nos últimos anos, as séries de horário nobre das televisões abertas vinham perdendo um pouco de audiência em favor de uma novidade que foram os reality shows. Surgiram, concomitantemante, séries dramáticas calcadas num intenso realismo como CSI e seus congêneres. O programa criado por Marc Cherry resgata uma dramaturgia bastante convencional, seguindo, no fundo, a fórmula do bom e velho folhetim. Se vende como comédia e crítica para, no fim das contas, apresentar uma série de clichês dramatúrgicos entremeados por alguns "alívios cômicos" e pitadas de sexualidade compatíveis com a audiência conservadora que é o grande público norte-americano. Para falar a verdade, Desperate Housewives não passa de um programa "denorex", ou seja, parece mas não é. É apresentado como sátira ou paródia, mas, no frigir dos ovos, ressalta e afirma justamente aquilo de que deveria estar debochando. E acaba por ser um produto absolutamente inócuo à caretice da faixa de espectadores pela qual é consumido e que vem fazendo dele um êxito estrondoso.

Também não podemos deixar de considerar que Desperate Housewives parece buscar ocupar uma lacuna nas séries protagonizadas/assistidas por figuras femininas, surgida com o final de Sex and the City que, mesmo sendo exibido por emissora a cabo, gozava de bôa popularidade. O novo programa poderia ser visto como uma espécie de "Sex (?) and the Suburbs". Desprovido, no entanto, dos palavrões e das cenas de sexo e nudez presentes nas histórias vividas por Carrie Bradshaw e companhia, impensáveis nas televisões abertas dos EUA. Como ressaltou o companheiro Ruy Gardnier, uma versão ainda mais piorada, que não tem sexo nem tem cidade. Mas que, justamente por isso, goza do potencial de atingir uma platéia bem mais ampla.

Para encerrar, só resta dizer que, mesmo com todo seu sucesso e seu verniz de "produto inteligente", Desperate Housewives, pelo que foi visto até agora, não passa de uma novelazinha das mais vagabundas. E novela por novela, como estamos cansados de saber, por aqui a gente faz melhor.

Gilberto Silva Jr.