Sony
Entertainment Television: quintas-feiras, às
21h, com reprises sextas-feiras à 01h e domingos
às 22h)
Para começarmos a entender um pouco melhor o
fenômeno Desperate Housewives - atualmente
a campeã de audiência entre as séries
na televisão aberta dos EUA - devemos nos remeter
às palavras de Marc Cherry, criador e principal
roteirista do programa, em seu discurso ao receber o
Globo de Ouro para melhor série cômica
em janeiro último. Cherry afirmou que sua idéia
era fazer uma paródia ou crítica de um
setor da classe média suburbana dos EUA e a melhor
forma de vender tal idéia seria apropriando-se
do formato das soap operas, novelas intermináveis
exibidas no horário vespertino das emissoras
americanas. Mesmo assim, foi rejeitado por praticamente
todas as networks antes de ter seu piloto aceito
pela rede ABC.
Seu argumento central parte de uma morte misteriosa
– no caso o suicídio sem maior razão aparente
da dona de casa Mary Alice Young (Brenda Strong), morta
mas presente em todos os episódios como narradora
– que acabaria por detonar a revelação
de sombrios segredos nas vidas das pessoas que a cercavam,
em especial suas quatro melhores amigas, as donas-de-casa
desesperadas. Não deixa de vir à tona
a lembrança de outro seriado que, no início
da década de 90, revirava os esqueletos ocultos
nos armários de uma pequena cidade, partindo,
por sua vez, de um homicídio: a genial Twin
Peaks, de David Lynch e Mark Frost. Tal comparação
não se faz nem um pouco despropositada ao sabermos
que a primeira atriz escalada para a personagem Mary
Alice foi Sheryl Lee, a intérprete de Laura Palmer.
Encerram-se por aí as semelhanças entre
os dois seriados. Pois se, o mínimo que poderia
ser dito sobre Twin Peaks era que este buscava
subverter das mais diversas formas os clichês
estabelecidos e frustrar as expectativas da audiência
quanto a soluções narrativas convencionais
– razão pela qual passou a ser rejeitado pelo
público a partir de sua segunda temporada e foi,
conseqüentemente, cancelado de forma prematura
– , no caso de Desperate Housewives, a opção
de Cherry parece ter sido trabalhar e reforçar
os clichês. Nada contra essa opção,
uma vez que o programa é vendido como uma paródia.
Só que, tomando por base o piloto, os clichês
quanto à história e às personagens
foram apresentados da forma mais óbvia possível
e o pretenso humor, quando presente, vinha de forma
bem rasteira. Durante o segundo e terceiro episódio
a visão cômica e satírica parecia
aflorar de forma um pouco mais intensa e uma decolagem
se fez sugerir. Porém daí em diante, embarcou-se
na mesmice e a cada novo episódio - a Sony exibiu
até o momento o 11º - o programa só
faz, a meu ver, piorar.
Vejamos, por exemplo, as quatro personagens-título.
Susan Mayer (Teri Hatcher) é uma divorciada totalmente
desajeitada e trapalhona, tem uma filha adolescente
que age como se fosse ela a responsável por sua
mãe abilolada. Lynette Scavo (Felicity Huffman
– a melhor das atrizes) é uma executiva outrora
bem-sucedida que largou tudo em pról da família
e que pena para controlar seus três pivetes endiabrados.
Bree Van De Kamp (Marcia Cross) - que Mark Cherry afirma
ter sido inspirada por sua própria mãe
- é uma esposa com mania de perfeição,
que a tudo controla em favor das aparências e,
a princípio, se nega a assumir a falência
de seu casamento e de sua relação com
a prole, um casal de adolescentes. Finalmente Gabrielle
Solis (Eva Longoria, gostosérrima e aparecendo
em várias cenas vestindo lingerie), a
mais jovem das três, uma ex-modelo de orígem
latina, casada com um machão e que tem como amante
o garotão jardineiro. Mais esteriotipadas, impossível.
Também estereotipadas são todas as situações
que envolvem a região de Wisteria Lane e seus
demais moradores. Um corpo e uma crança possivelmente
morta na infância na casa de Mary Alice, ocultados
por seu viúvo sinistro e desonesto. Bree se dando
conta das infidelidades do marido. Lynette se viciando
em estimulantes para cumprir com eficácia as
funções maternas. Gabrielle escondendo
seu adultério do marido violento e da sogra enxerida.
O assassinato de uma vizinha que parecia saber um pouco
mais sobre Mary Alice. O marido de Gabrielle preso por
negociatas escusas. Por aí vai. E a comédia?
E a sátira? Sumindo gradativamente à medida
que o sucesso tornou necessária a criação
de novos enredos, uma vez que uma série originalmente
planejada para apenas 10 capítulos foi alongada
para uma temporada de extensão normal (cerca
de 24 episódios). E com isso, várias bolas
levantadas ao longo dos capítulos vão
sendo aos pouco abandonadas, acumulando-se, assim, linhas
narrativas soltas. Sim, tais poderão ser retomadas
mais à frente, mas com grande risco de perda
de sua eficácia dramática, uma vez que
até lá muito provavelmente tenham sido
esquecidas pelo espectador.
O principal filão remanescente da comédia
em Desperate Housewives acaba sendo a personagem
Susan. Com um casamento recentemente desfeito, tenta
conquistar o novo e galante morador de Wisteria Lane:
o encanador Mike Delfino, um dos raros solteiros disponíveis.
Um dos mistérios da série é criado
quanto aos reais motivos que levaram Delfino ao bairro,
já que desde o início fica claro que sua
profissão é apenas uma fachada. Voltando
a Susan, ela disputa a atenção de Mike
com Edie Britt (Nicolette Sheridan), uma vizinha assanhada.
Mas a cada episódio, seu jeito desajeitado de
ser leva Susan a se envolver inevitavelmente em alguma
situação constrangedora. Ela, por exemplo,
já causou involuntariamente um incêndio
na casa de Edie, já ficou trancada nua do lado
de fora de sua casa (numa situação similar
à do clássico conto de Fernando Sabino),
já pisou a passarela de um desfile de moda com
a roupa rasgada, já foi atirada de um touro mecânico
e por aí vai. Mas tais situações
resultam - muito provavelmente por sua rarefeita sutileza
e pela falta de timing dos responsáveis
pela direção da série - em cenas
bastante desprovidas de graça. Mas, ao que parece,
os americanos adoram e Teri Hatcher, apesar da atuação
meio robotizada, tem visto crescer em muito sua popularidade
e recebido prêmios de melhor atriz cômica
pela personagem.
Mas por quê, mesmo com todas as fragilidades apontadas
acima, Desperate Housewives vem se estabelecendo
cada vez mais como um imenso sucesso? É muito
provável que, justamente, por causa delas. Um
fator a ser apontado é que, nos últimos
anos, as séries de horário nobre das televisões
abertas vinham perdendo um pouco de audiência
em favor de uma novidade que foram os reality shows.
Surgiram, concomitantemante, séries dramáticas
calcadas num intenso realismo como CSI e seus
congêneres. O programa criado por Marc Cherry
resgata uma dramaturgia bastante convencional, seguindo,
no fundo, a fórmula do bom e velho folhetim.
Se vende como comédia e crítica para,
no fim das contas, apresentar uma série de clichês
dramatúrgicos entremeados por alguns "alívios
cômicos" e pitadas de sexualidade compatíveis
com a audiência conservadora que é o grande
público norte-americano. Para falar a verdade,
Desperate Housewives não passa de um programa
"denorex", ou seja, parece mas não é.
É apresentado como sátira ou paródia,
mas, no frigir dos ovos, ressalta e afirma justamente
aquilo de que deveria estar debochando. E acaba por
ser um produto absolutamente inócuo à
caretice da faixa de espectadores pela qual é
consumido e que vem fazendo dele um êxito estrondoso.
Também não podemos deixar de considerar
que Desperate Housewives parece buscar ocupar
uma lacuna nas séries protagonizadas/assistidas
por figuras femininas, surgida com o final de Sex
and the City que, mesmo sendo exibido por emissora
a cabo, gozava de bôa popularidade. O novo programa
poderia ser visto como uma espécie de "Sex
(?) and the Suburbs". Desprovido, no entanto, dos
palavrões e das cenas de sexo e nudez presentes
nas histórias vividas por Carrie Bradshaw e companhia,
impensáveis nas televisões abertas dos
EUA. Como ressaltou o companheiro Ruy Gardnier, uma
versão ainda mais piorada, que não tem
sexo nem tem cidade. Mas que, justamente por isso, goza
do potencial de atingir uma platéia bem mais
ampla.
Para encerrar, só resta dizer que, mesmo com
todo seu sucesso e seu verniz de "produto inteligente",
Desperate Housewives, pelo que foi visto até
agora, não passa de uma novelazinha das
mais vagabundas. E novela por novela, como estamos cansados
de saber, por aqui a gente faz melhor.
Gilberto Silva Jr.
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